Os Necessitados de Carnelutti: entre a execução penal e o processo coletivo, uma

18/07/2015

Por Maurilio Casas Maia - 18/07/2015

“(...) Também estes lhe perguntarão: - Senhor, quando foi que te vimos (...) na prisão e não te socorremos?”.

Evangelho segundo São Mateus, cap. 25, v. 44-45

Em tempos nos quais aflora a insensibilidade em desfavor dos prisioneiros das masmorras brasileiras e as práticas processuais penais vem sendo taxadas como “medievalescas”, reanalisar e redimensionar a importância do papel do processo coletivo para a intervenção na política carcerária pode ser uma eventual luz no fim do túnel.

No contexto supranarrado, a edição da Lei Federal n. 12.313/2010, incluindo o artigo 81-A na Lei de Execução Penal (LEP), foi um importante passo. O referido diploma legislativo avançou na tutela dos direitos humanos dos encarcerados quando expressamente legitimou o Estado Defensor à tutela dos custodiados em todos os graus e instâncias, inclusive do modo coletivo. O referido dispositivo pode ser compreendido como um esmiuçar da Lei n. 11.448/2007, encontrando-se reforçado atualmente por meio da nova redação conferida ao art. 134 da Constituição pela EC n. 80/1994.

A expansão da 2ª onda de acesso à Justiça (Coletiva) permitiu o julgamento favorável ao atuar transindividual da Defensoria Pública (STF – ADI n. 3943). Nessa senda, o defensor público poderá se valer de todas as espécies de ações para a defesa de coletividades necessitadas, vulneráveis e hipossuficientes – sendo essa a dicção de diversos dispositivos legais (LC n. 80/1994, art. 4º, VII, IX e X e CDC, art. 83 c/c art. 21 da Lei 7.347/1985), inclusive à luz do que se tem denominado de “cláusula legal de potencial benefício dos hipossuficientes” (LCF n. 80/1994, art. 4º, VII) e ainda do princípio “in dubio pro justitia socialis” – o qual preserva a garantia de julgamento de mérito das causas coletivas. Há relatos, por exemplo, do uso de “Pedidos Defensoriais de Suspensão (PDS)” direto à presidência dos Tribunais, a fim de tutelar o interesse público que socorre coletividades vulneráveis. Noutra senda, o uso de “Habeas Corpus Coletivo” também é objeto de debate enquanto garantia de acesso célere, econômico e transindividual à Justiça Criminal.

Apesar dos avanços no acesso à Justiça coletiva, há diversos relatos de incompreensão judicial ou doutrinária sobre a missão coletiva do Estado Defensor. Muitas vezes, confunde-se o interesse social de tutela do necessitado (subjetiva individual ou coletiva) com a proteção (objetiva) da ordem legal. Em verdade, na 2ª onda de acesso à Justiça, o interesse final da Defensoria Pública sempre será beneficiar coletividades de alguma maneira necessitadas, ainda que tal meta perpasse por propostas de reinterpretação do ordenamento jurídico. Portanto, a missão defensorial está intimamente conectada ao interesse dos necessitados e não ao interesse que surge da ordem jurídica positivada, ponto no qual se diferencia substancialmente do Ministério Público.

Nesse contexto, indaga-se: para fins de tutela coletiva, o encarcerado pode ser considerado um necessitado nos termos do artigo 134 da Constituição? A resposta bebe em fonte carneluttiana.

Quem seria o “necessitado de Justiça coletiva” em caso envolvendo os encarcerados? Os cidadãos totalmente desprovidos de recursos econômicos? Se a resposta for sim, resta a seguinte questão: a Constituição, quando se referiu aos necessitados, indicou que sua natureza seria econômica? Quando se mencionou a expressão “insuficiência de recursos”, afirmou-se que tal insuficiência seria a financeira? Convém refletir a temática, desbravando as fronteiras de um senso comum jurídico, ainda carecedor de estudos aprofundados.

Com efeito, a vinculação estrita da Defensoria Pública à hipossuficiência meramente econômica é resultado de reiterada (e irrefletida) lição doutrinária pouco aprofundada sobre o tema, principalmente no que tange ao Processo Coletivo. Logicamente, não se almeja aqui invadir a zona de atuação da Advocacia Privada ou do Ministério Público – até porque a releitura da comentada legitimidade coletiva deverá ocorrer, nos termos democráticos e constitucionais, no território da socializada segunda onda de acesso à Justiça.

Aí, nesse ponto, destaca-se a figura dos necessitados em cárcere, os quais definirão a extensão do atuar coletivo do Estado Defensor na questão da política prisional.

Com efeito, a lição humana do mestre italiano Francesco Carnelutti (p. 28) precisa ser retomada: “uns concebem o pobre na figura de um faminto, outros na de um desabrigado e outros ainda na de um enfermo; para mim, de todos eles o encarcerado é o mais pobre”. Disse ainda Carnelutti que o homem detrás das grades é um “pobre, carente, enfim, necessitado ao extremo” (p. 27).

Francesco Carnelutti, contrariando o senso comum jurídico, foi um dos primeiros a visualizar que o ser necessitado ou pobre pode transcender aspectos meramente econômicos ou financeiros. Nesse sentido, visualiza-se o encarcerado – no que se refere ao acesso à 2ª onda de Justiça –, sempre enquanto um necessitado de justiça e de cuidados frente ao poder punitivo estatal.

Carnelutti (p. 36), ao expor sua visão dos encarcerados, confirma em outro ponto a visão ora projetada: “O preso, essencialmente, é um necessitado”. E mais, conecta sua conclusão ao capítulo 25 do Evangelho segundo São Mateus, no qual o encarcerado é exposto enquanto um excluído e necessitado, ao lado dos enfermos, dos famintos, desabrigados, entre outros segmentos sociais vulneráveis.

Pois bem, é exatamente nessa visão dignificante do ser humano encarcerado que se visualiza a legitimidade defensorial para questões coletivas do sistema carcerário. O encarcerado, rico ou pobre, é sempre um carente de tutela coletiva por parte dos legitimados à tutela coletiva (MP, DP, OAB e outros). É, pois, um sujeito necessitado de Justiça Coletiva contra eventuais ilegalidades e abusos no uso do ius puniendi estatal.

No afã de atualizar a lição carneluttiana, é preciso registrar a doutrina contemporânea, para a qual existem os “necessitados jurídicos” (DIDIER JR., ZANETI JR, 2014, p. 192) e os necessitados organizacionais (GRINOVER, 2014, p. 466) padecendo da vulnerabilidade organizacional para o processo coletivo (TARTUCE, 2012, p. 208-213). Nesse cenário, visualizam-se os encarcerados enquanto necessitados e vulneráveis organizacionais a fim de legitimar o Estado Defensor para a respectiva defesa coletiva dos mesmos.

Ademais, é importante ressaltar que já se tem defendido que a tutela dos direitos humanos – função já exercida pela Defensoria Pública antes mesmo da EC n. 80/2014 –, desvincula-se totalmente do caráter econômico (RAGAZZI; SILVA, 2014) em casos nos quais a Defensoria Pública atuaria em legitimidade extraordinária – e não em substituição ao advogado privado. Direitos humanos são direitos da categoria humana, dos quais todos carecem e são “necessitados”. Aliás, o documento final exarado pela Comissão Nacional da Verdade (“Parte 5” – “Conclusões e Recomendações”, p. 969) registra claramente a missão do Estado Defensor na busca de humanizar o cumprimento de penas e o estado das prisões por todo o Brasil, recomendando o reforço da referida atuação e instituição.

Ser “necessitado” (Constituição, art. 134) e “insuficiência de recursos” (Constituição, art. 5º, LXXIV) são expressões que vêm passando por (re)leitura interpretativa e, pode-se afirmar, por “mutação constitucional” a fim de se garantir acesso à Justiça Transindividual (2ª onda) de modo pleno à sociedade brasileira, em especial quanto aos grupos merecedores de especial tutela pelo Estado.

A doutrina e a jurisprudência, a cada dia, vêm percebendo que limitar os termos supramencionados ao aspecto puramente econômico pode representar um desfavor social à Justiça Transindividual. Conceitos como o de “relevância social” do direito tutelado em juízo e do paradigma hermenêutico “in dubio pro Justitia Socialis” podem representar mecanismos de garantia ao justo para as coletividades de algum modo necessitadas.

Então resta a questão: os encarcerados – vulneráveis frente ao poder punitivo –, são ou não necessitados para fins de legitimação coletiva do Estado Defensor?

A questão parece ter sido respondida há décadas por Francesco Carnelutti, o qual invocara o Cristo na ocasião. É pela descrição carneluttiana que atualmente se indaga sobre a relação entre os encarcerados e a 2ª onda de acesso à Justiça em temos bíblicos: “Senhor, quando foi que te vimos (...) na prisão e não te socorremos?”. A resposta está ali, no mesmo capítulo 25 do Evangelho de São Mateus, recomendado à leitura no clássico de Carnelutti, “As misérias do Processo Penal”.

Com efeito, é preciso visualizar na expansão da legitimidade coletiva do Estado Defensor um importante instrumento do regime democrático e via de acesso à Justiça para cidadãos marginalizados e vítimas de preconceito, carentes do resgate de sua dignidade para o convívio social. Tais cidadãos formam a “comunidade dos encarcerados” que merecem proteção contramajoritária mesmo em face da sociedade, por parte do “amicus communitas”.

Assim, o reconhecimento da ilegitimidade coletiva da Defensoria Pública – ou mesmo de outros órgãos públicos ou de associações privadas em temas socialmente relevantes –, jamais poderá representar uma carta branca para, sem culpa na consciência judiciária, negar-se efetividade à 2ª onda de acesso à Justiça.

Por certo, a negativa de legitimidade coletiva para a defesa de interesses socialmente relevantes é, em última análise, um “não” judicial à própria sociedade, considerando-se esta em seus múltiplos emaranhados de relações sociais.

Portanto, reiterando-se o ensinamento cristão, talvez amanhã a sociedade possa responder às sentenças e aos acórdãos (de hoje) sem julgamento de mérito por conta de uma suposta “ilegitimidade metaindividual”: “foi a mim que deixardes de fazer” –, isso infelizmente sem recuperar as oportunidades perdidas ou impedir, dessa maneira, o silêncio antidemocrático dos necessitados de Carnelutti na esfera judicial, social e política – eis aqui um pedido: “garanta-se o princípio do contraditório e da ampla defesa às vacas”, garanta-se à boiada, nessa “vida de gado”, o acesso à Justiça Coletiva. Esperança democrática é o que fica...


Notas e Referências:

BARBOSA, Rafael Vinheiro Monteiro. A nova face e os novos desafios da Defensoria Pública: fortalecimento e interiorização. Os impactos da Emenda Constitucional 80/2014. . Seleções Jurídicas, Rio de Janeiro, p. 27-29, Jul. 2014.

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. V. 1 – Recurso eletrônico. – Brasília: CNV, 2014.

Bueno, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual. V. 2, T. III. São Paulo: Saraiva, 2013.

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. Campinas (SP): Servanda editora, 2012.

Casas Maia, Maurilio. Custos Vulnerabilis Constitucional: O Estado Defensor entre o REsp 1.192.577-RS e a PEC 4/14. Revista Jurídica Consulex, Vol. 417, p. 55 - 57, 1º jun. 2014.

______. Nota sobre a tutela constitucional da vulnerabilidade agravada do encarcerado: Um novo princípio como guia da execução penal. ADV: Informativo COAD, Rio de Janeiro, fascículo semanal n. 3/2014, p. 28-27, Jan. 2014.

______. Os necessitados de Carnelutti e o mito de Sísifo: a (i)legitimidade coletiva da Defensoria Pública para a tutela dos encarcerados, Revista Jurídica Consulex, Brasília (DF), v. 436, p. 42-45, 15 mar. 2015.

Didier Jr., Fredie. Zaneti Jr., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. V. 4. 9ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2014.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Legitimação da Defensoria Pública à ação civil pública. In: ______. Benjamin, Antônio Herman. Wambier, Teresa Arruda Alvim. Vigoriti, Vicenzo. (Org.). Processo Coletivo: do surgimento à atualidade. São Paulo: Ed.. RT, p. 457-474.

RAGAZZI, José Luiz. SILVA, Renato Tavares da. A Defensoria Pública como instrumento de promoção dos direitos humanos. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, Vol. 88, p. 197-206, Jul.-Set. 2014.

SBROGIO’GALIA, Susana. Mutações Constitucionais e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

 Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=d5gu8FlDhfs


Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM).

Email:  mauriliocasasmaia@gmail.com 


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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