Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 07/10/2015
Olá a todos!!!
Na semana passada, o Parlamento do Município de Curitiba aprovou Lei Municipal revogando a Lei n°. 11.381/2005, que até então regulamentava o tráfego dos veículos movidos a tração animal. Doravante, ficou proibido, com o novel texto legislativo, tanto o uso de veículos de transporte de cargas, quanto a própria exploração dos animais (equinos, asininos, muares, caprinos e bovinos), sendo autorizadas apenas as atividades com animais em haras, corridas de cavalos, hipismo, equoterapia, cavalgadas e das forças públicas, militares ou civis que tenham cavalarias. As penas, quando e se aplicadas, variarão de advertência por escrito a multas que variam de R$200,00 a R$200.000,00 mil, conforme a infração[1].
Vereadores, em maioria, e protetores dos animais se uniram em comemoração à aprovação do texto normativo, salientando que a aplicação da lei garantiria o fim dos maus-tratos aos animais, utilizados, sobretudo, por catadores de papel – aliás, 150 famílias, segundo dados expostos pelos próprios Parlamentares –, que passarão a contar com amparo por órgãos da Prefeitura Municipal. Os animais, por sua vez, tão logo recolhidos pelo órgão competente e encaminhados ao Centro de Controle de Zoonoses e Vetores de Curitiba para exames, serão microchipados e alojados até futura – e incerta – adoção.
O caso destacado na coluna desta semana remete à discussão a respeito do motivo pelo qual se segue uma regra, com uma pitada de problemática afeta às teorias da justiça.
Ao que se pode perceber da questão agora normatizada com o modal deôntico da proibição, há um elemento axiológico de fundo cuja abordagem não se pode prescindir para concluir no sentido do acerto, ou desacerto da legislação Municipal: a justiça da deliberação Municipal. Abordando a questão de outra maneira e com outro título: a proibição agora determinada se afigura razoável?
A definição de razoabilidade se revela muito conflituosa. Um bom indicativo encontra amparo no entendimento de Neil MacCormick, segundo qual “(...) O direito precisa sopesar estes valores, e ele expressa esse equilíbrio ao prescrever que um certo cuidado precisa ser tomado tal qual seria por uma pessoa razoável e prudente. Entretanto, assim como isso implica, em termos gerais, num sopesamento entre valores da relativa segurança contra danos e o da relativa liberdade a fazer o que for de sua preferência, isso também aponta, em situações particulares, para uma ordenação crítica dos valores relevantes nas suas manifestações particulares. Assim, para o mencionado autor, irrazoável seria tratar como relevante o que deveria ser ignorado, acentuando que “desde que a autoridade decisória fundamente sua decisão com base numa avaliação geral dos fatores relevantes, e não tenha atribuído nenhum peso a considerações irrelevantes, a decisão não pode ser invalidada judicialmente porque errada “no mérito”. A decisão poderia ser revista e invalidada judicialmente somente se nenhuma pessoa razoável, com base em qualquer avaliação razoável, pudesse alcança-la”[2].
Para Alexandre de Moraes, interligando o princípio do devido processo legal, em seu sentido material ao princípio da razoabilidade, o princípio em foco “pode ser definido como aquele que exige proporcionalidade, justiça, adequação entre os meios utilizados pelo Poder Público, no exercício de suas atividades – administrativas ou legislativas - , e os fins por ela almejados, levando-se em conta critérios racionais e coerentes”[3].
Finalmente, John Rawls pontua que “(...)Somente quando há um consenso sobreposto razoável a concepção política de justiça da sociedade política pode ser publicamente – embora nunca em definitivo – justificada. Admitindo que devemos levar em conta os juízos ponderados de outros cidadãos razoáveis, o motivo disso é que um equilíbrio reflexivo amplo e geral com relação à justificação pública oferece a melhor justificação da concepção política que podemos alcançar em dado momento”[4].
Adotando, neste particular, a compreensão da razoabilidade na forma como exposta pelos Autores mencionados[5], forçoso convir que o elemento interno que correlaciona a razoabilidade à justiça diz respeito à própria compreensão social acerca do que seria aceitável. Comportamentos, ações, inações e até mesmo a interpretação destes movimentos devem ser vistos a partir de uma perspectiva dialética, tendo como manancial a discussão travada no seio social e a correspondente aceitabilidade do resultado procedimentalmente obtido ao final.
O raciocínio encontra-se formalmente perfeito, porém substancialmente incompleto. Não se trata de fazer apologia ao direito dos animais, ou analisar sua função sob o viés utilitário-pragmático, mas considerar que a definição do acerto da questão referente à proibição dos veículos de tração animal, entre tantas outras passíveis de exame, perpassa pela compreensão da justiça que se encontra em seu âmago, impondo-se a análise prévia do acertado a fazer, se é que existe algo neste sentido.
Esta problemática pode ser explorada sob diversos pontos de vista, cada qual correspondendo a uma escola do pensamento jurídico[6]: i) o direito dos animais se insere em um catálogo que açambarca todos os direitos positivados; ii) haverá tal direito se e somente se a lei dispuser nesse sentido; iii) ainda que previsto legalmente, a existência do direito haverá de se ligar umbilicalmente ao pensamento e à manifestação social a respeito da temática; iv) há valores que não necessitam se ligar a qualquer ordenamento, tendo sua importância por si só.
O catálogo poderia se estender em muito, mas, por ora, prefiro deixar assentado que seja sob o manto da justiça, seja sob a forma da razoabilidade, ou ainda, invocando-se a perspectiva dialética que caracteriza a ação comunicativa, não há como deixar de reconhecer dificuldade na definição do que seria adequado, ou não. Por outro lado, o jogo democrático parece, neste ponto, circunscrever todo o ponto nodal da discussão à legitimidade de quem profere o ato objurgado.
Mas, quem o faz simplesmente assim procede enquanto instrumento catalisador da vontade já existente, a partir de razões já assentadas e previamente expostas? Ou, quem sabe, assim procede adotando uma linha de ação apriorística – e de certa maneira heurística – a respeito de determinado assunto. Suas valorações intrínsecas importam ao momento de sua manifestação externa?
A filosofia da razão prática pode oferecer, se bem aplicada, justificativa racional para estas agruras. Seguir uma regra contém em seu interior muito mais do que a regra em si; e mais, sua positivação enquanto direito objetivo tampouco configura elemento essencial para sua observância. De outro flanco, porém, estes apontamentos axiológicos que parecem definir a questão não podem ser ignorados.
Então, como compatibilizar: valores (justiça – razoabilidade), movimentos sociais dialéticos, legitimidade de quem produz o ato normativo (ou decisório) e a regra?
Darei seguimento ao assunto mais à frente. Por ora, vamos evitar utilizar veículos com tração animal em Curitiba.
Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!
Notas e Referências:
* O título faz alusão à comparação feita por Herbet Marcuse entre os hipopótamos e a filosofia, que pode ser conferida no documentário “Herbert’s Hippopotamus: A story about revolution in Paradise”, filmado em 1996 pelo cineasta dinamarquês Paul Alexander Juutilainen.
[1] Íntegra da notícia pode ser encontrada em http://www.cmc.pr.gov.br/ass_det.php?not=25463#&panel1-1. Acesso em 04 outubro de 2015.
[2] MACCORMICK, Neil. Retórica e o Estado de Direito. Tradução de Conrado Hübner Mendes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 224-226.
[3] MORAES. Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 5ª ed., 2005
[4] RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. 459
[5] Sem levar em conta, obviamente, as diferenças estruturais nas teorias preconizadas e a inserção da linha de pensamento deste e daquele Autor nesta e naquela escola do pensamento jurídico.
[6] Exemplificativamente mencionando.
Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Integrante do grupo Justiça, Democracia e Direitos Humanos, sob a coordenação da Professora Doutora Claudia Maria Barbosa. Integrante do Núcleo de Fundamentos do Direito sob a coordenação do Professor Doutor Cesar Antônio Serbena, UFPR. Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.”
Imagem Ilustrativa do Post: Whips and Wheels Prairie Home Carriage Festival: Horse Drawn Plowing // Foto de: Pete Markham // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/pmarkham/4589657099/
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.