Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 16/09/2015
Olá a todos!!!
Na semana passada tratei do universalismo e particularismo, suas conexões e correlações com a Justiça. Nesta semana exploraria mais o tema. Todavia, motivado pelas recentes declarações do Ministro de Estado da Fazenda, especialmente no sentido de que “você admite pagar mais impostos para conquistar tranquilidade para poder crescer mais e mais rápido”[1], penso ser interessante revisitar a formatação do Estado brasileiro e, ainda, aprofundar um pouco as ponderações de Sua Excelência.
Chico Buarque, na música “Bancarrota Blues”, apresenta-nos um curioso quadro. Tudo se deve a Deus: fazenda, casarão, pé de jacarandá, um verdadeiro “éden tropical”, incluindo “os olhos do meu bem” e “os filhos meus”, mas se pode vender. Lembrando da bela letra da canção, fiquei conjecturando sobre a declaração do Ministro da Fazenda. Aprofundemos o seu pensamento.
Para não ser taxado de míope, admitirei a premissa invocada: doravante, a tranquilidade se conquista com o pagamento de tributos. Ao invés de bens para consumo, ou circulação, teríamos a tranquilidade como moeda. Admito a taxação em percentual maior da minha renda, mas, ao revés de com isso ficar preocupado em saber se terei condições de fazer frente às minhas despesas mensais, fico tranquilo. Aumenta-se a taxação, incrementa-se a tranquilidade. Ficarei completamente extasiado se minha renda for gravada em quase a totalidade; e mais, poderei adquirir tranquilidade de outrem simplesmente pagando a tributação por ele devida.
Então, que tal se simplesmente criássemos um mercado de tranquilidade? Para cada real pago com tributos, teríamos três vezes mais calma e paz. Nesse passo, clínicas de recuperação do stress se converteriam em repartições fiscais, ansiolíticos em guias de recolhimento, meditação em leitura de código de barras de guias impressas de tributo a recolher, alíquotas seriam as palavras mágicas, mantras, capazes de levar o cidadão ao estado alfa e, por fim, o auge, o Estado se converteria, de pronto, em um paraíso em que se entrega de bom grado o produto do esforço oriundo do trabalho em prol da paz de espírito que alimentar os cofres públicos propicia.
Por muito menos já se limitou o poder do soberano e a ele foi imposta um Carta de direitos que inaugurou um pretenso governo de leis e não de homens. Atualmente, parece que o governo de leis se curvou ao governo de homens; a Constituição, tal como o ouro, é poeira... e se pode vender.
Em realidade, o Estado brasileiro tem dificuldades de definição em sua formatação.
Historicamente, as necessidades vivenciadas pela sociedade vêm sendo experimentadas também pelo aparelho estatal, de tal modo que se pode observar um movimento paralelo entre o caminhar social e o desenvolvimento das instituições e aparatos públicos. Se em determinado momento da vida em sociedade fez-se necessário acreditar o ser humano, liberando-o para experimentar seus valores e evoluir de maneira individual, o Estado se mostrou liberal, encolhendo, diminuindo e se enquadrando à exata proporção em que sua ausência se revelava imprescindível[2].
Posteriormente, já por ocasião da afirmação de valores que refugiam ao âmbito do indivíduo e alcançavam envergadura mais complexa e atinentes ao grupo, o Estado veio a suprir carências e aplainar dificuldades, nomeadamente no bojo do segmento mais carente da sociedade. Trata-se do Estado social, prenhe de regras de conteúdo axiológico voltadas à solidariedade[3]. Na sequência dos acontecimentos históricos, no entanto, constatou-se que o distanciamento do Estado, a pretexto de garantir a liberdade, ultimava por impor desigualdade, relegando ao desdém as particularidades dos indivíduos, o que exigia atuação estatal garantidora dos direitos.
Conquanto posteriormente retomada a feição liberal, agora sob o viés regulatório do denominado neoliberalismo, o sistema econômico já se encontrava imiscuído nos meandros estatais de maneira a tornar disforme e, em grande parte desconexa, a atuação dos Poderes constituídos, em especial o Poder Executivo[4].
O Estado brasileiro ostenta uma interessante variação destas estruturas: algo como um ornitorrinco, ou seja, meio ave, meio pato. Ao tempo em que programas sociais recheiam o dia-a-dia, típicos que são do Estado de conteúdo social, exige do cidadão que paga a tributação um comportamento que mais se assemelha ao Estado liberal. O Estado se aproxima do cidadão e dele se distancia em um estranho movimento pêndulo-circular constante, sem nexo ou justificativa. É curiosa, nesta altura dos acontecimentos econômicos brasileiros, pensar na comparação que faz Chico Buarque. Enquanto os diamantes rolam no chão, o ouro é poeira e os filhos meus, assim como os olhos do meu bem foram dados por Deus, posso vendê-los sem qualquer cerimônia ou dificuldade; e tudo em prol da tranquilidade.
Não sei, mas talvez no futuro possamos alcançar um estado tal de ideias a partir deste pensamento em que teremos a solidariedade como princípio, a alteridade como norte e a Justiça como valor supremo.
Enfim, a sociedade ideal, o Estado onírico: um verdadeiro éden tropical!
Mas posso vender...
Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!
Notas e Referências:
[1] http://www.istoedinheiro.com.br/noticias/economia/20150910/levy-diz-que-brasileiro-nao-pode-ser-vitima-miopia-questao-dos-impostos/297645. Acesso em 12 setembro de 2015.
[2] Jorge Reis Novais, esclarecendo acerca da doutrina sustentada por Adam Smith, a separação do Estado-economia e as limitações do Estado Liberal, observa que “garantida, assim, a paz externa e a segurança interna, toda acção política superveniente se revela não só supérflua como, eventualmente, prejudicial, na medida em que surge como ingerência perturbadora de uma ordem natural”. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006, p. 61.
[3] PÉREZ, José Luis Monereo. La defensa del estado Social de Derecho. Espanha, El Viejo Topo, 2009. p. 73.
[4] Gustavo Zagrebelski, em obra intitulada “El Derecho Ductil”, assim explica a vertente liberal do Estado e seu enquadramento social primando pela liberdade: “Pero el Estado liberal de derecho tenía necesariamente uma connotación substantiva, relativa a las funciones y fines del Estado. En esta nueva forma de Estado característica del siglo XIX lo que destacaba em primer plano era ‘la protección y promoción del desarrollo de todas las fuerzas naturales de la población, como objetivo de la vida de los individuos y de la sociedad’. La sociedade, con sus proprias exigencias, y no la autoridad del Estado, comenzaba a ser el punto central para la comprensión del Estado de derecho. Y la ley, de ser expresión de la voluntad del Estado capaz de imponerse incondicionalmente en nombre de intereses transcendentes proprios, empezaba a concebirse como instrumento de garantía de los derechos. (...) Con estas formulacionoes, la tradicional concepción de la organización estatal, apoyada sólo sobre el principio de autoridade, comienza a experimentar um cambio. El sentido general del Estado liberal de derecho consiste en el condicionamento de la autoridad del Estado a la libertad de la sociedad, en el marco del equilibrio recíproco establecido por la ley”. ZAGREBESLKI, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid: Editorial Trotta. Cap. 2, 1995, p. 23.
Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Integrante do grupo Justiça, Democracia e Direitos Humanos, sob a coordenação da Professora Doutora Claudia Maria Barbosa. Integrante do Núcleo de Fundamentos do Direito sob a coordenação do Professor Doutor Cesar Antônio Serbena, UFPR. Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.”
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