Ônus da Prova no Tráfico de Drogas: a “fórmula matemática” do tráfico resiste por também desconsiderar a Crítica Hermenêutica do Direito (Parte 2)

31/10/2015

Por Rodrigo Régnier Chemim Guimarães - 31/10/2015

No último artigo publicado nesta coluna do Caderno Justiça & Direito da Gazeta do Povo, o problema envolvendo a chamada “fórmula matemática” do tráfico de drogas foi analisado criticamente e à luz da Psicologia Cognitiva. Conforme se explicou, não raras vezes, nos casos probatórios limítrofes, isto é, naqueles em que o sujeito é preso em flagrante, decorrência de notícia anônima, portando pequenas quantidades de droga e alguns valores trocados em dinheiro, sua conduta acaba sendo apressadamente tipificada como tráfico de drogas, mesmo que ele alegue ser apenas usuário e não se flagre nenhuma conduta de comércio da droga. Isto se dá, notadamente, em razão do encurtamento do processo decisório mental que costuma prevalecer no ser humano. Este parco conjunto de provas é suficiente para operar uma heurística da representação na mente de boa parte dos atores jurídicos (sejam delegados, promotores, juízes, procuradores ou desembargadores) que resulta na compreensão de que o sujeito “só pode ser traficante”. Enfim, a somatória de fatores capazes de representar o estereótipo do tráfico pode ser sintetizada na fórmula: notícia anônima + pequena quantidade de droga + notas trocadas de dinheiro no bolso = tráfico de drogas (leia aqui).

Sucede que neste tema dos casos limítrofes entre a conduta ser tipificada como tráfico de drogas ou como porte para consumo, a questão não se esgota na referida “fórmula” e por vezes o encurtamento do processo decisório mental é facilitado pelo equivocado modo de interpretar o ônus da prova no processo penal presente em vários recentes julgados das Cortes estaduais brasileiras.

Como se sabe ter o ônus da prova significa ter o encargo, ter o dever de provar. O tema vem regrado desde 1941 no artigo 156 do Código de Processo Penal nos seguintes termos: “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”. Numa interpretação gramatical, própria do positivismo exegético (Escola da exegese francesa) do início do século XIX, ninguém duvidaria em afirmar que tudo aquilo que o acusado alegar em sua defesa ele deve provar. Afinal, nessa linha de interpretação, se foi ele quem alegou e a regra do Código determina que quem alega deve provar, é dele o encargo de produzir a prova. É, de fato, nestes moldes que boa parte da doutrina de processo penal que se pode chamar de mais “tradicional”, porém ainda contemporânea, interpreta a regra.

Acontece que a Constituição da República de 1988 trouxe uma importante garantia ao cidadão brasileiro consagrada no princípio da presunção de inocência previsto no inciso LVII do artigo 5º: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Dispositivo similar é encontrado no art. 8.2 do Pacto de San José da Costa Rica (também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos), vigente no Brasil desde 1992 (pelo Decreto 678), que diz: “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. Ou seja: nos termos da Constituição da República brasileira e do Pacto de San José da Costa Rica todas as pessoas no Brasil são inocentes até que contra elas advenha sentença condenatória criminal “transitada em julgado” (isto é: esgotados todos os recursos). Assim, enquanto estiver pendente um recurso, tecnicamente o acusado mantém seu status jurídico de inocente. E, se é inocente, por presunção constitucional, não precisa provar sua inocência. Assim, quando se realiza a filtragem constitucional e o controle de convencionalidade do art. 156 do Código de Processo Penal, a prova da culpa – ou seja, a prova de que o quadro fático se caracteriza como tráfico de drogas, deve ser feita pelo Ministério Público, com auxílio da Polícia Civil.

Mesmo assim, o que se tem visto com preocupante frequência em diversos julgados das Cortes brasileiras é que mesmo quando há apenas a apreensão de pequena quantidade de droga que seria igualmente compatível com a figura do usuário e há dúvida razoável de que a droga possa se destinar apenas ao consumo pessoal, os Tribunais não raras vezes enveredam por exigir do acusado a prova de que ele seria “mero usuário” e não traficante. O ônus de provar que é apenas usuário é jogado para o acusado, já que foi ele quem alegou nesse sentido. Invertem a presunção de inocência e o in dubio pro reo e passam a raciocinar sob a ótica da presunção de culpa.

Com efeito, para ilustrar o modo hermenêutico que se revela em parte das Cortes brasileiras, destaca-se a seguinte fundamentação colhida do corpo de Acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná proferido em julgamento ocorrido em 02 de outubro de 2014, no qual se discutia justamente a tese defensiva de que o apelante seria mero usuário de drogas e não traficante. Disse o Tribunal: “A teor do art. 156 do Código de Processo Penal, a defesa atrai para si o ônus de provar qualquer tese defensiva alegada em favor do réu, seja por documentos, testemunhas, exames pericias/toxicológico ou outros meios de prova admitidos em direito, sob pena de se ter um álibi não comprovado, como no caso”[1]. Não se trata de caso isolado, infelizmente. A postura se repete em diversos outros julgados da mesma Corte e também em diferentes Tribunais estaduais.

Ainda que se saiba que o problema nestes casos muitas vezes decorra de uma corriqueira ausência de adequada investigação, o dado que não se pode perder de vista é a mecânica de intepretação que se deu preferência quando se exigiu do acusado que provasse que ele é apenas usuário: ignorou-se o princípio da presunção de inocência e de seu correlato in dubio pro reo, isto é, não se norteou a decisão com a observância do princípio que exigiria, na dúvida, a manutenção da inocência ou a prevalência da interpretação que mais favoreça o acusado.

Esta solução torta que volta e meia aparece tanto em pronunciamentos ministeriais quanto nos julgados das Cortes brasileiras, talvez se explique pela ausência de compreensão por parte de diversos atores processuais de como se deve operar a hermenêutica jurídica. Vale-se aqui das lições da Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Luiz Streck[2], que opera a partir de uma fusão de horizontes entre a Filosofia de Martin Heidegger[3] e Hans-Georg Gadamer[4] com a integridade e coerência defendidas por Ronald Dworkin[5]. Segundo Lenio, a interpretação do Direito não deve ser dividida em “casos fáceis” e “casos difíceis” como propõem H. L. A. Hart[6] e Robert Alexy[7] (este último estabelece que apenas nos “casos difíceis” se buscaria a solução pela via dos princípios[8]), pois, todo caso exige que se considere tanto a regra quanto o princípio, até porque ambos são normas e, como tais, são deontológicos, devendo ser sempre considerados. Ou seja: na hermenêutica filosófica o intérprete deve caminhar do todo (princípio) para a parte (regra) e retornar desta para aquele, circularmente [9]. E isso faz toda a diferença na interpretação da regra do art. 156 do Código de Processo Penal, que não pode ser interpretada de forma isolada, dispensando os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo. Em outras palavras: não se pode aplicar o artigo 156 do Código de Processo Penal “por subsunção”, desconsiderando os referidos princípios, como se fosse um “caso fácil” (ou “claro”) nos moldes sugeridos por Robert Alexy.

Abandonar, portanto, as formas positivistas exegéticas do século XIX e também as soluções positivistas normativistas de Kelsen, Hart e Alexy, para se dar preferência à Crítica Hermenêutica do Direito é uma uma saída para a melhor compreensão hermenêutica do Direito e para evitar decisões como as que acima se referiu. Assim, os operadores do Direito – delegados, promotores, advogados, juízes, procuradores e desembargadores – devem saber o que estão fazendo quando interpretam, sob pena de o Direito se transformar num jogo de subjetividades e discricionariedades e continuar premiando doutrinas e jurisprudências que aparentam ainda não terem abandonado o modo exegético positivista do século XIX.

Portanto, no tema do ônus da prova nos casos que apresentam contornos fáticos limítrofes entre o tráfico de drogas e o porte para consumo pessoal, somados à dúvida razoável do elemento subjetivo diverso do dolo relacionado ao consumo pessoal, o que se percebe é a prevalência de uma tradição inautêntica, uma má-recepção da compreensão do ônus da prova no processo penal por significativa parcela dos atores processuais e por significativa parcela da doutrina e da jurisprudência que decorre de uma mescla entre ausência de estudo e compreensão dos fundamentos do processo – e notadamente dos “fundamentos dos fundamentos”, como refere Jacinto Coutinho[10] – e de uma concomitante dualidade interpretativa doutrinária em vários temas de processo penal.

Assim, para que a “fórmula matemática” do tráfico não se consolide e não seja facilitada também sob este prisma do ônus da prova, é preciso rever posturas e aprofundar estudos de hermenêutica. Um bom caminho é dar maior atenção à Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Luiz Streck.*


Notas e Referências:

[1] Apelação Criminal nº 1216344-9.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

[3] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 2ª ed., tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes, 2007.

[4] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 10ª ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2008.

[5] DWORKIN, Ronald. El Imperio de la Justicia: De la teoria general del derecho, de las decisiones e interpretaciones de los jueces y de la integridade política y legal como clave de la teoría y practica. Tradução para o espanhol de Claudia Ferrari. Barcelona: Gedisa, 2012, pp. 132 e ss..

[6] HART, H. L. A. The Concept of Law. Third Edition. Oxford: Oxford University Press, 2012.

[7] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 127.

[8] ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica. 3ª ed., tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva, Rio de Janeiro: Forense, 2013, pp. 221 e ss..

[9] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3ª ed., São Paulo: RT, 2013, p. 315.

[10] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Por que Sustentar a Democracia do Sistema Processual Brasileiro. Inédito. Texto parcialmente apresentado em palestra proferida no Seminário de Direito Penal, Criminologia e Processo Penal em Homenagem a Winfried Hassemer, Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, Rio de Janeiro, 21.03.14.

* Artigo originalmente publicado no Caderno Justiça & Direito do Jornal Gazeta do Povo, versão on-line.


Rodrigo Régnier Chemim GuimarãesRodrigo Régnier Chemim Guimarães é Procurador de Justiça no Ministério Público do Paraná. Professor de Direito Processual Penal do Unicuritiba – Centro Universitário Curitiba; da FAE – Centro Universitário Franciscano; da FEMPAR – Fundação Escola da Magistratura do Paraná; da EMAP – Escola da Magistratura do Paraná; da ESMAFE – Escola da Magistratura Federal no Paraná. Professor e Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal do Unicuritiba. Mestre em Direito das Relações Sociais e Doutor em Direito de Estado pela UFPR.


Imagem Ilustrativa do Post: Happy Pi Day - P versus NP // Foto de: Takashi Hososhima // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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