OMISSÃO NA COMUNICAÇÃO DE VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE – NOVO CRIME PREVISTO NO ART. 26 DA LEI 14.344/22 – LEI HENRY BOREL

07/07/2022

O crime de omissão na comunicação de violência contra criança ou adolescente vem previsto no art. 26 da Lei n. 14.344/22 (Lei Henry Borel), tendo como objetividade jurídica a proteção integral a criança ou adolescente contra a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina ou o abandono de incapaz. Trata-se de um dos aspectos que envolvem a garantia de efetividade à preservação dos direitos das crianças e dos adolescentes, insculpidos no art. 226 da Constituição Federal, que devem ser colocados à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Estabelece o art. 26 da Lei n. 14.344/22:

“Art. 26. Deixar de comunicar à autoridade pública a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra criança ou adolescente ou o abandono de incapaz:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos.

§1º A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta morte.

§2º Aplica-se a pena em dobro se o crime é praticado por ascendente, parente consanguíneo até terceiro grau, responsável legal, tutor, guardião, padrasto ou madrasta da vítima.”

Em princípio, é relevante destacar que se trata de crime omissivo próprio ou puro, em que o comportamento nuclear, a conduta, vem caracterizada por um “não fazer”. Implicitamente, o dispositivo penal estabelece um dever de comunicação à autoridade pública a todos aqueles que se deparem, presenciem ou tenha conhecimento da prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra criança ou adolescente ou de abandono de incapaz.

Nesse aspecto, a norma penal em análise fornece eficácia ao mandamento estampado no art. 23 da mesma Lei Henry Borel, que estabelece o dever de qualquer pessoa que tenha conhecimento ou presencie ação ou omissão, praticada em local público ou privado, que constitua violência doméstica e familiar contra criança e adolescente, de comunicar o fato imediatamente ao serviço de recebimento e monitoramento de denúncias, ao Disque 100 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ao Conselho Tutelar ou à autoridade policial, os quais, por sua vez, deverão tomar as providências cabíveis.

Importante destacar que a violência a que se refere o art. 23 é a “doméstica e familiar”, nos precisos moldes do que estabelece o art. 2º da lei, ou seja, qualquer ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano patrimonial no âmbito do domicílio ou da residência da criança e do adolescente, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que compõem a família natural, ampliada ou substituta, por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; ou em qualquer relação doméstica e familiar na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independentemente de coabitação.

Mas o escopo da proteção normativa trazida pelo crime do art. 26 vai além, encampando a prática de violência (de todas as formas – vide art. 4º da Lei n. 13.431/17), de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina e o abandono de incapaz.

Cuidando o “caput” do art. 26 de um dever genérico de comunicação, imposto a qualquer pessoa que tenha conhecimento ou presencie ação ou omissão, praticada em local público ou privado, que constitua violência doméstica e familiar contra criança ou adolescente, o crime se torna comum. Deveras, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime, que é de concurso eventual, podendo admitir pluralidade de agentes, ocasião em que o dever de comunicar recairá sobre todos, que responderão igualmente pelo crime. No caso de um deles comunicar a violência à autoridade, os demais ficam isentos de fazê-lo, inocorrendo o crime.

Ainda com relação ao sujeito ativo, o §2º determina a aplicação da pena em dobro se o crime é praticado por ascendente, parente consanguíneo até terceiro grau, responsável legal, tutor, guardião, padrasto ou madrasta da vítima. Note-se que, nesse caso, se poderia vislumbrar, por parte das pessoas relacionadas, também um dever específico de agir, que as colocaria naquela hipótese prevista na alínea “a” do §2º do art. 13 do Código Penal (obrigação legal de cuidado, proteção e vigilência). Mas há uma ressalva importante a fazer: a omissão de comunicação praticada pelas pessoas relacionadas no §2º do art. 26 não transforma o crime em omissivo impróprio (ou comissivo por omissão), porque o dever de agir continua sendo genérico, emprestando o dispositivo maior gravidade à inércia daqueles omitentes determinados.

Isso em razão de ser o crime em análise de mera conduta, não descrevendo a lei qualquer resultado naturalístico. Mas se um ascendente, por exemplo, ou um parente consanguíneo até o terceiro grau, com sua omissão em comunicar a violência à autoridade pública, der causa à morte de uma criança ou adolescente, responderá pelo crime de homicídio, doloso (se desejou ou condescendeu com a morte) ou culposo (se negligenciou a produção do resultado). Até mesmo por esta razão é que, a nosso ver, a causa de aumento de pena prevista no §1º não se aplica às pessoas indicadas no §2º.

Com relação ao sujeito passivo, é a criança ou o adolescente em situação de risco, ou seja, vítimas de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina ou de abandono de incapaz.

O crime é punível apenas a título de dolo, não se admitindo a modalidade culposa. O dolo pode ser direto, quando o agente quis deixar de fazer a comunicação, ou eventual, quando o agente aceita ou aquiesce com a situação de risco.

Tratando-se de crime omissivo próprio, a consumação ocorre no momento da omissão, ou seja, com a abstenção de comportamento, independentemente de qualquer resultado que possa decorrer da ausência de comunicação por parte do sujeito ativo. Justamente por consistir em crime omissivo próprio, não se admite a tentativa, por impossibilidade de fracionamento do “iter criminis”.

É crime de perigo abstrato, presumindo-se o risco a que é exposta a criança ou o adolescente vítima de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra criança ou adolescente ou de abandono de incapaz.

Conforme já mencionado anteriormente, o §1º prevê que a pena seja aumentada da metade se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta morte. Vale lembrar que, nestes casos, a lesão corporal de natureza grave ou a morte não foram causadas pelo agente, sendo equivocada a redação do dispositivo, uma vez que a sua omissão, a rigor, não pode ter dado causa ao resultado naturalístico. Mesmo assim, a lei impõe o agravamento da pena, sendo imprescindível, nestes casos, a análise de uma relação de não impedimento (de causalidade) entre a omissão e o resultado lesão corporal de natureza grave ou morte.

Por fim, a ação penal é pública incondicionada e o procedimento será o comum sumário, podendo o processo se desenvolver perante os juizados ou varas especializadas, criadas nos termos do disposto no art. 23 da Lei n. 13.431/17.

 

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