Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 14/12/2015
Olá a todos!!!
Imagine-se em um barco afundando. Água por todos os lados, desespero no ar; clima de confronto entre os possíveis autores dos enormes rombos causados no casco da embarcação, em razão de uma nada diligente navegação por águas turbulentas; tripulação dividida entre tentar se salvar, discutir os motivos do rompimento do casco, ou punir os responsáveis; ninguém se entende e, a par da situação já caótica, existem aqueles que agravam ainda mais o cenário estimulando as brigas e jogando pessoas ao mar. Caos total!
Eis que, em dado momento, alguém tem uma ideia: que tal se utilizássemos as madeiras dos botes salva-vidas para tentar consertar o rombo no casco? A proposta não é imediatamente bem compreendida, eis que o desastre é iminente; surgem desde logo aqueles contrários à sugestão, dizendo que se procedessem tal qual mencionado, não teriam nem o barco original, nem o bote salva-vidas e, assim, todos pereceriam. De outro lado, outros se manifestem dizendo que cada segundo é precioso e que, por isso, não há espaço para qualquer alternativa senão a fuga da embarcação nos botes salva-vidas; finalmente, há aqueles que adotam uma posição intermediária, dizendo que caberia ao capitão decidir a respeito, por ser aquele que melhor conhece a embarcação e, principalmente, a densidade das madeiras do bote e do casco.
O capitão é, de fato, o mais capacitado para decidir a respeito, mas, alguns problemas surgem a propósito do caminho que seguirá: i) aquele segmento mais revoltado dificilmente se contentará com o decidido, preferindo exercer a sua vontade pessoal, baseado em seus interesses e objetivos, ainda que em prejuízo de quaisquer outros; ii) aqueles dispostos a se arriscar em vista da decisão a ser adotada, olham desconfiados para a legitimidade do capitão; e, por isso, optam por um comportamento estratégico de aceitar o decidido enquanto lhes for conveniente; iii) e, por último, há aqueles que reconhecem a legitimidade do decisor, mas questionam a sua força coercitiva, emparedando o direito à força bruta.
O que ocorrerá?
Voltando ao mundo real...
No dia 08 de dezembro de 2015, o Ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, proferiu decisão monocrática em que, atendendo a pedido formulado pelo Partido Comunista do Brasil, determinou a suspensão da formação da Comissão Especial em decorrência da decisão da Presidência da Câmara dos Deputados de constituí-la por meio devotação secreta. Argumentou o Ministro que a decisão objetiva: “(i) evitar a prática de atos que eventualmentepoderão ser invalidados pelo Supremo Tribunal Federal, (ii) obstar aumento de instabilidade jurídica com profusão de medidas judiciais posteriores e pontuais, e (iii) apresentar respostas céleres aos questionamentos suscitados” [1].
A decisão, diga-se logo, é lúcida, cautelosa e equilibrada, promovendo não apenas a estabilização de comportamentos institucionais no âmbito do Executivo, Legislativo e, inclusive, Judiciário (ao salientar que evita a profusão de medidas judiciais pontuais); mas também apta a incrementar a discussão jurídica em momento em que o melhor argumento aparentemente cedeu passo às emoções, retomando, portanto, o clima de discussão de opiniões discursivamente válidas.
Mas há mais nesta decisão.
Até que fosse proferida, predominavam comportamentos estratégicos questionáveis no sentido da tramitação a todo custo e de qualquer forma ou maneira do procedimento de impeachment no âmbito da Câmara dos Deputados [2]. Nada mais se discutia no Brasil, quer a nível institucional, quer midiático, ou mesmo na sociedade. O palco estava definitivamente montado para que a forma de atuar mais egoística, privada, afeta aos interesses pessoais e lastreada em cobiças ou objetivos escamoteados e não disponíveis ao público, senão em círculos de achacada moralidade, fossem trazidos à tona, tal qual aqueles que tomam para si os botes salva-vidas não permitindo sequer a discussão acerca do que fazer para evitar que a embarcação afunde.
Neste particular, lembro-me de passagem de Maquiavel (1467-1527) que, nos albores do Renascentismo italiano de muito questionável moralidade, em sua famosa obra “O Príncipe”, assim sugeriu: “É necessário, contudo, ser capaz de disfarçar muito bem o próprio caráter, assim como ser grande fingidor e dissimulador; ademais, são tão rudes os homens, e tão prontos a obedecer às necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se permita ser enganado” [3]. Soa atual, não?!
Isto é o que parece ter ocorrido até o momento da decisão proferida pelo Ministro Fachin. Interesses institucionais em rota de colisão com objetivos pessoais propiciaram um agir estratégico que não engana nem mesmo o mais incauto que eventualmente tenha chegado neste país “Ornitorríntico” e tenha se dado conta que vivemos um momento ímpar: aquele em que nada se faz, brada-se ao extremo e finge-se como nunca.
Também sob este ponto de vista a decisão foi importante. Diria eu que algo de Spinoza fora trazido à tona para corrigir o comportamento Maquiavélico até então levado a cabo. Spinoza (1632-1677) foi um filósofo que viveu o que pregou. E o que pregou foi, nada mais nada menos, do que a observância do “todo” mesmo quando apenas o parcial, o imediato e o presente se faziam visíveis. Em sua obra “Ética” [4] postula, imbricando Deus ao Universo, que tudo o que acontece é a manifestação de uma natureza maior. De fora parte a sua abordagem da divindade, ressai como uma de suas importantes contribuições a teoria dos afetos, lembrada por Bertrand Russell como “aquilo que é real e positivo em nós é o que nos une ao todo, e não aquilo que preserva a aparência da separação” [5].
Esta é a reflexão que gostaria de propor a partir da situação vivenciada pelo país a respeito da decisão proferida pelo Ministro Edson Fachin. A cautela que adotou foi principalmente baseada no olhar do todo, tanto em nível procedimental, como institucional e social. Ao direcionar o fluxo da discussão para o ambiente judicante, serenou os ânimos nos demais Poderes, permitiu que a emoção cedesse à razão e, principalmente, que a Constituição prevalecesse ao casuísmo, ineditismo e decisão ad-hoc lastreada no ensinamento de Maquiavel supramencionado. A partir do decidido, retomou-se, conquanto de maneira efêmera, alguma calma política, movimentação de outros temas no aparelho público e, ainda, pequena confiabilidade nos Poderes constituídos, nomeadamente no Supremo Tribunal Federal.
Mais de Spinoza e menos de Maquiavel é o que se pode pedir ao STF neste momento de angústia social, política e econômica; menos de descalabro e mais de racionalidade; mais de certeza e menos de insegurança.
Ainda temos tempo de evitar que a embarcação afunde. Mas, para tanto, devemos decidir: confiaremos na decisão técnica, ou partiremos para a força? O Direito cederá à ideologia, à força bruta, ou aos interesses pessoais?
O tempo dirá, mas, sinceramente, espero que não.
Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!
Notas e Referências:
[1] Íntegra da decisão pode ser obtida em http://s.conjur.com.br/dl/despacho-fachin-suspendendo-comissao.pdf. Acesso em 13 dezembro de 2015.
[2] Reservo-me ao direito de “suspender o juízo” no tocante ao mérito do procedimento.
[3] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 112-113.
[4] SPINOZA, Baruch de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2009.
[5] RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental – Livro 3 – A Filosofia Moderna. Tradução de Hugo Langone. Rio de Janeiro: editora Nova Fronteira, 2015, p. 109.
Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.
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