O risco da guetificação no processo coletivo: breve reflexão sobre a legitimidade defensorial coletiva – o NCPC e a ADI n. 3943 – Por Maurilio Casas Maia

07/05/2015

Guetificar”, simplificadamente, significa segregar, separar e isolar social e geograficamente determinada parte da população. Pois é preciso alertar: o risco de guetificação rodeia também o Processo Coletivo brasileiro. Transitam no cenário jurídico interpretações que conduzem o processo coletivo à guetificação a partir da legitimidade de agentes públicos. Ora, haveria um legitimado público para os “pobres” e um outro legitimado público para a “sociedade”? Afinal de contas, em que cenário jurídico se poderia admitir um inconstitucional “Apartheid” processual coletivo na 2ª onda de acesso à Justiça e ao Judiciário (art. 5º, XXXV, Constituição)?

Guetificação – leciona Zygmunt Bauman (2003, p. 109) –, é medida paralela e complementar à criminalização da pobreza, sendo um modo de confinar e imobilizar os indesejáveis segundo determinada sociedade. No contexto processual coletivo, a “guetificação” ocorreria a partir de interpretação da legitimidade coletiva dos agentes públicos com enfoque na capacidade econômica dos beneficiados por suas ações coletivas. Com efeito, tal medida resultaria em redução da força dos pleitos processuais dos mais carentes, os quais teriam maiores dificuldades de batalhar por seus direitos ao lado de outros membros da sociedade – situação na qual os clamores dos necessitados seriam ouvidos mais facilmente, porquanto em coro e harmonia com todo o corpo social. Muitas vezes, apartar os pleitos dos desfavorecidos dos demais membros da sociedade representará a possibilidade de rejeição mais simplória dos pedidos provenientes desses ghetos processuais artificiais, tudo isso sem sofrer impacto negativo na parcela da sociedade formadora e multiplicadora de opinião.

Certamente, aceitar a criação de “guetos processuais coletivos” causaria um perene risco (ainda que inconsciente) de leitura judiciária da causa a partir da indevida distinção entre a sociedade e seu gueto – situação essa também indesejada e não igualitária.

Em foco, a tese limitadora e excludente da legitimidade coletiva da Defensoria Pública, proposta via ADI nº. 3.943, pela CONAMP (Vide, ao fim, nota de atualização). Aliás, não seria demasia ressaltar, a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAM) buscou ingressar como amicus curiae na referida ADI, sendo tal pleito indeferido pela Ministra relatora Cármen Lúcia em 20.12.2009. Indaga-se: Seria difícil usar a imaginação para entender qual o interesse institucional das referidas Instituições Financeiras em uma demanda que debate legitimidade coletiva da “incômoda” (a certos interesses econômicos) Defensoria Pública?

Pois bem, ainda há mais. Expõe-se aqui uma tentativa silenciosa de guetificação processual coletiva na Lei Federal n. 13.105/2015 – o novo Código de Processo Civil (NCPC) –, que, ao estipular o regramento paras as ações possessórias e positivar a chamadas ações possessórias coletivas passivas, expôs: “Art. 554.(...) § 1o No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública”. No item, destaca-se o termo “hipossuficiência econômica”, não previsto na Constituição.

Em verdade, o NCPC está limitando o que não foi constitucionalmente limitado. Percebe-se no trecho acima que o legislador do CPC/2015 aparentemente tentou vincular a Defensoria Pública Coletiva à tutela de coletividades padecidas de hipossuficiência do tipo econômica. Resta saber se tal interpretação limitativa pode ser constitucionalmente aceita.

Volvendo-se os olhos à Constituição, percebe-se que o mandamento constitucional exposto no artigo 134 vincula o Estado Defensor à tutela dos necessitados nos seguintes termos: “Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal”. E indica-se ainda o inciso LXXIV do artigo 5º da Constituição enquanto referência para as atribuições defensoriais: “LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;”

A partir das redações constitucionais acima transcritas, percebe-se a intimidade entre as atribuições do Estado Defensor, os “necessitados” e a “insuficiência de recursos”. Todavia, em nenhum momento constitucional se observa a limitação a uma adjetivação de índole “econômica” – sim, a Constituição jamais almejou uma guetificação processual, principalmente no Processo Coletivo –, e isso exatamente para não se criar indevidos óbices ao atendimento de certas graves vulnerabilidades de cunho material ou processual, como ocorre no atuar do curador especial (Processo Civil) e na indisponível defesa penal (Processo Penal). Ademais, as circunstâncias que tornam “necessitadas” as coletividades humanas representam a hipossuficiência organizacional, porquanto é presumível nesse quadro fático que as referidas coletividades não vêm reunindo recursos suficientes para fazer valer seus direitos, justificando-se então o atuar coletivo do Estado Defensor.

Com efeito, há um silêncio constitucional eloquente: a ausência constitucional da adjetivação “econômica” aos termos “necessitados” e “insuficiência de recursos” ocorreu exatamente para evitar a segregação e seleção antecipada (e arbitrária) de quais tipos de necessitados mereceriam a tutela pelo Estado Defensor. A recomendação constitucional é uma só: os diversos níveis de vulnerabilidade e necessidades devem ser aferidos no caso concreto a fim de se sustentar a legitimidade da Defensoria Pública.

A interpretação não “pré-adjetivada” dos necessitados (art. 134, CRFB/88) e dos recursos “hipossuficientes” (art. 5º, LXXIV, CRFB/88) já é visualizada na doutrina brasileira. Nesse sentido consultar, por exemplo: (I) Rodolfo de Camargo Mancuso[1], para quem o termo necessitado não deve ser interpretado restritivamente, devendo abranger outros tipos de vulnerabilidades sociais; (II) Ada Pellegrini Grinover[2], em parecer sobre o tema, ressaltando a existência dos necessitados organizacionais, vistos pelo ponto de vista coletivo; (III) Os sempre lembrados Fredie Didier Jr. e Hermes Zanetti Jr.[3], defendendo também a existência do necessitado jurídico; (IV) Daniel Amorin Assumpção Neves[4], lembrando da existência dos hipossuficientes organizacionais; (V) Eudóxio Cêspedes Paes[5], citando a Defensoria Pública e sua legitimidade coletiva quanto aos necessitados de organização política, socialmente vulneráveis; (VI) Alexandre Freitas Câmara[6], no sentido de que a Defensoria Pública deve tutelar o necessitado jurídico, independente de sua condição econômica; (VII) E Cássio Scarpinella Bueno[7], com a visão de que a amplitude da legitimidade da Defensoria Pública é em muito semelhante ao Ministério Público.

A partir do reforço dos mecanismos da 2ª onda de acesso à Justiça (coletivização das macrolides), percebe-se cada vez mais que a Constituição jamais limitou as atribuições defensoriais ao aspecto individual e que também nunca houve obrigatoriedade constitucional taxativa de interpretar a “insuficiência de recursos” e os “necessitados” sempre pelo viés econômico. Daí porque se defende a ocorrência de mutação constitucional[8] referente à interpretação do art. 134 e inciso LXXIV do art. 5º, da Constituição, frente aos avanços sociais e da luta pela construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Assim, a conclusão constitucionalmente aceitável é a de que a intervenção defensorial em processos coletivos – versando sobre necessidades e necessitados sociais –, não esteja conectada somente ao critério meramente econômico, mas sim a qualquer espécie de coletividade carente de direitos (“necessitados”) – ressalte-se que a interpretação ora construída, além de ampliar a garantia fundamental de defesa pública coletiva, tem por base a noção de máxima eficácia da 2ª onda de acesso à Justiça, ou seja, do Processo Coletivo.

A função defensorial (Custös vulnerabilis et plebis[9]) jamais se confundirá com a função ministerial (Custös legis et iuris), por mais que possuam ponto de contato. Cada instituição tem sua própria matriz constitucional e é preciso dar fim a qualquer resquício de confusão entre o interesse institucional de cada uma delas – isso será assunto para um próximo texto, porquanto exista relevância na referida temática.

Desse modo, conclui-se pelo grave déficit de constitucionalidade – com lastro na 2ª onda de acesso à Justiça –, de qualquer interpretação que conduza à guetificação e ao apartheid no processo coletivo brasileiro. Entende-se também pela insuficiência constitucional do § 1º do artigo 554 do NCPC, razão pela qual se propõe a interpretação do termo “hipossuficiente econômico” do multicitado dispositivo com caráter meramente exemplificativo, a fim de não se restringir onde a Constituição não o fez: nos parâmetros de qualificação e adjetivação dos necessitados coletivos – por certo, o silêncio constitucional foi e permanece eloquente com vista à mudança e melhoria do social, a fim de se construir uma sociedade genuinamente livre, justa e solidária.


Nota de atualização:

No dia 6 de maio de 2015, iniciou-se o julgamento da referida ADI n. 3943 no STF. Seguindo o relatório, realizaram-se as sustentações orais na seguinte ordem: (1) Associação Nacional dos Membros do Ministério Público - CONAMP, por Aristides Junqueira Alvarenga; (2) Advocacia-Geral da União, por Grace Maria Fernandes Mendonça (Secretária-Geral de Contencioso), opinando pela constitucionalidade da atribuição coletiva ao Estado Defensor. A partir daí, sobrevieram as manifestações a título de "amicus curiae" – todas contrárias à procedência da ADI da CONAMP –, das seguintes entidades: (3) Associação Nacional dos Defensores Públicos da União - ANDPU, por Rafael Da Cás Maffini; (4) Associação Direitos Humanos em Rede - Conectas Direitos Humanos, por Marcos Roberto Fuchs; (5) a Associação Nacional de Defensores Públicos - ANADEP, por Pedro Lenza. Ao fim, o Ministério Público Federal, por Rodrigo Janot Monteiro de Barros, proferiu suas razões favoráveis à procedência da ADI. Foi suspenso então o julgamento que teve continuidade na sessão do dia seguinte. Após a publicação do presente artigo, no dia 7 de maio de 2015, o julgamento da ADI n. 3943 foi dividido em três partes: (I) Preliminar de legitimidade ativa: por maioria, entendeu-se que a CONAMP seria parte legítima para a propositura da multicitada ação - vencido o Ministro Marco Aurélio; (II) Preliminar de prejudicialidade da ação: rejeitada, vencido o ministro Zavaski; (III) Mérito: a partir do voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, julgou-se – por unanimidade –, improcedente o pedido formulado na ADI n. 3943 e, dessa forma, a favor da constitucionalidade da ampla legitimidade coletiva da Defensoria Pública. Justificadamente, ausentes os ministros Fux e Toffoli. Assim, o STF parece ter ouvido os clamores pela "não guetificação do processo coletivo" e pela abertura democrática do cenário jurídico-processual ao pluralismo de vozes. Novos tempos se aproximam. Ganhou a Democracia; ganhou o Povo; ganhou a República.


Notas e Referências:

Bauman, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

Bueno, Cássio Scarpinella.  Curso de Direito Processual Civil. V. 2, t. III. São Paulo: Saraiva, 2013.

Câmara, Alexandre Freitas. Legitimidade da Defensoria Pública para ajuíza Ação Civil Pública: um possível primeiro pequeno passo em direção a uma grande reforma. In: Sousa, José Augusto Garcia de. A Defensoria Pública e os Processos Coletivos: Comemorando a Lei Federal 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008

Didier Jr., Fredie. Zaneti Jr., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. V. 5. 9ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2014.

Grinover, Ada Pellegrini. Legitimação da Defensoria Pública à Ação Civil Pública. In: ______. Benjamin, Antônio Herman. Wambier, Tereza Arruda Alvim. Vigoriti, Vicenzo. Processo Coletivo: do surgimento à atualidade. São Paulo: Ed. RT, 2014, p. 457-474.

Maia, Maurilio Casas. Custos Vulnerabilis Constitucional: O Estado Defensor entre o REsp 1.192.577-RS e a PEC 4/14. Revista Jurídica Consulex, p. 55-57, 1 Jun. 2014.

______.  Os necessitados de Carnelutti e o mito de Sísifo: a (i)legitimidade coletiva da Defensoria Pública para a tutela dos encarcerados. Revista Jurídica Consulex, Brasília (DF), v. 436, p. 42-45, Mar. 2015.

Mancuso, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: Conceito e Legitimação para Agir. São Paulo: Ed. RT, 2011, p. 251.

Neves, Daniel Amorin Assumpção. Tutela Coletiva do Consumidor em juízo. In: ______. Tartuce, Flávio. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método, 2014, p. 640-648.

Paes, Eudóxio Cêspedes. Aspectos processuais. In: Fernandes Neto, Guilherme.  Inquérito Civil e Ação Civil Pública. São Paulo: Ed. Atlas, 2013.

Zufelato, Camilo. A participação da Defensoria Pública nos processos coletivos de hipossuficientes: da legitimidade ativa à intervenção ad coadjuvandum. In: RÉ, Aluisio Iunes Monti Ruggeri. (Org.). Temas aprofundados: Defensoria Pública. 1ª ed. Salvador: Juspodivm, 2013, v. 1, p. 303-332.

[1] Mancuso, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: Conceito e Legitimação para Agir. São Paulo: Ed. RT, 2011, p. 251.

[2] Em parecer apresentado na ADI nº. 3943.

[3] Didier Jr., Fredie. Zaneti Jr., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. V. 5. 9ª ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2014, p. 192.

[4] Neves, Daniel Amorin Assumpção. Tutela Coletiva do Consumidor em juízo. In: ______. Tartuce, Flávio. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método, 2014, p. 640-648.

[5] Paes, Eudóxio Cêspedes. Aspectos processuais. In: Fernandes Neto, Guilherme.  Inquérito Civil e Ação Civil Pública. São Paulo: Ed. Atlas, 2013, p. 61.

[6] Câmara, Alexandre Freitas. Legitimidade da Defensoria Pública para ajuíza Ação Civil Pública: um possível primeiro pequeno passo em direção a uma grande reforma. In: Sousa, José Augusto Garcia de. A Defensoria Pública e os Processos Coletivos: Comemorando a Lei Federal 11.448, de 15 de janeiro de 2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 48.

[7] Bueno, Cássio Scarpinella. Curso de Direito Processual Civil. V. 2, t. III. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 192.

[8] Maia, Maurilio Casas. Os necessitados de Carnelutti e o mito de Sísifo: a (i)legitimidade coletiva da Defensoria Pública para a tutela dos encarcerados. Revista Jurídica Consulex, Brasília (DF), v. 436, p. 42-45, 15 mar. 2015.

[9] A referência à Defensoria Pública ao Custös Plebis e ao Custos Vulnerabilis, pode ser encontrada respectivamente nos seguintes trabalhos: Zufelato, Camilo. A participação da Defensoria Pública nos processos coletivos de hipossuficientes: da legitimidade ativa à intervenção ad coadjuvandum. In: RÉ, Aluisio Iunes Monti Ruggeri. (Org.). Temas aprofundados: Defensoria Pública. 1ª ed. Salvador: Juspodivm, 2013, v. 01, p. 303-332; Maia, Maurilio Casas. Custos Vulnerabilis Constitucional: O Estado Defensor entre o REsp 1.192.577-RS e a PEC 4/14. Revista Jurídica Consulex, p. 55 - 57, 01 Jun. 2014.


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