O Poder Geral de Cautela é incabível no Processo Penal. Quando o STF erra

15/09/2015

Por Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa - 15/09/2015

Poder Geral de Cautela não é compatível com Processo Penal dada a possibilidade de criação de “cautelares” não previstas em lei, violando, por se tratar de liberdade, o devido processo legal substancial (aqui).

Mas o Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, negou seguimento ao Habeas Corpus nº. 130140, afirmando que o Magistrado “pode e deve, ao apreciar o pedido inicial, pautar-se no poder geral de cautela para buscar outros elementos formadores das razões de decidir além daqueles trazidos pela impetração” (grifamos). Tal procedimento, segundo o relator, não caracteriza constrangimento ilegal, abuso de poder ou teratologia.

Mais uma vez repete-se o gravíssimo equívoco de se utilizar categorias do Processo Civil no Processo Penal, ignorando-se que o Direito Processual Civil tem conteúdo próprio, que o difere substancialmente do conteúdo do Direito Processual Penal, motivo pelo qual não é possível aplicar princípios e regras do Processo Civil ao Processo Penal, sob pena de fazermos uma verdadeira e odiosa “processualização civil” do Processo Penal.

Teoria Geral do Processo é inadmissível exatamente porque não há qualquer similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal. Por óbvio que conceitos jurídicos, tais como os de jurisdição (nada obstante, no Processo Penal não se poder falar em lide), processo, órgãos judiciários, competência (com muitas ressalvas), procedimento (idem), atos processuais, prova, etc., servem para as duas disciplinas. A jurisdição, como a função de julgar, é una, por exemplo. A “natureza jurídica” do processo, também, embora possamos duvidar até da legitimidade da discussão essencialista de uma “natureza” de algo criado. Da mesma forma, a garantia ao duplo grau de jurisdição, e assim por diante... Igualmente em relação à teoria de processo, ainda que se conceba o processo como relação jurídica (Oskar von Bülow), como situação jurídica (James Goldschmidt), como instituição (Jaime Guasp), como serviço público (Léon Duguit e Gaston Jèze), processo como procedimento em contraditório (Fazzalari) etc., etc.

Porém, evidentemente, que esta afirmação última jamais pode ter o condão de admitirmos uma Teoria Geral do Processo, mesmo porque, ainda que, por exemplo, o conceito de prova seja o mesmo, trate-se de Processo Civil ou Processo Penal, há uma diferença abissal quando nos aprofundamos no seu estudo no Processo Penal: a questão da carga probatória (para além dos ônus) e da gestão da prova são exemplos irrespondíveis.

A Teoria Unitária é inaceitável exatamente porque não há similitude entre os conteúdos do Processo Civil e do Processo Penal. Eugenio Florian, já em 1927, teve a lucidez de estabelecer a contradição de uma Teoria Geral do Processo. Para ele era inadmissível a tese da identidade dos dois processos: “A nosso juízo, o processo penal e o civil são duas instituições distintas. O objeto essência do processo penal é, como vimos, uma relação de direito público, porque nele se desenvolve outra relação de direito penal. Já no processo civil o objeto é sempre ou quase sempre uma relação de direito privado, seja civil ou mercantil. (...) O processo penal é o instrumento normalmente indispensável para a aplicação da lei penal em cada caso; o civil, ao contrário, não é sempre necessário para atuar as relações de direito privado. (...) No processo civil o juízo está regido exclusivamente por critérios jurídicos puros (...), ao contrário do processo penal em que se julga um homem e, por isso mesmo, o juiz deve inspirar-se em critérios ético sociais. (...) O processo civil tem caráter estritamente jurídico, e o penal, no qual se trata de julgar um homem, tem também caráter ético. (...) Leva-se em consideração, equivocadamente, algumas formas comuns entre o processo civil e o processo penal de mínima importância, descuidando-se de elementos diferentes, que são decisivos. (...) O triunfo da tese unitária conduziria a absorção da ciência do processo penal pela ciência do processo civil, perdendo o primeiro a sua autonomia, resultando profundamente alterado em sua concepção e estrutura.[1] (tradução livre).

Interessante que Ovídio Baptista da Silva, consagrado processualista civil, ao escrever a sua Teoria Geral do Processo Civil (em coautoria com Fábio Gomes), posiciona-se terminantemente contrário à Teoria Unitária do Processo. Após alinhar alguns argumentos de outros autores a favor da tese, afirma: “Não convencem, entretanto, as razões alinhadas em prol da construção de um conceito unitário, bem como da elaboração de uma teoria geral adequada tanto ao processo civil como ao processo penal. Muitos doutrinadores que defendem tal unidade se contradizem logo de início. (...) Os próprios doutrinadores que defendem a unidade fundamental do processo ressalvam a identidade própria dos respectivos ramos, o que, a rigor, encerra uma contradição; a não ser que entendamos esta unidade em termos extremamente finalísticos, mas, então, cair-se-ia no plano da teoria geral do direito. (...) O direito processual civil, como o direito processual penal, juntamente como todos os demais ramos da ciência jurídica, constituem uma vasta unidade, um conjunto harmônico de normas coordenadas, cuja independência, entretanto, deve ser respeitada.”[2]

Sempre é importante a lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: "Por primário, não se há de construir uma teoria, muito menos geral, quando os referenciais semânticos são diferentes e, de consequência, não comportam um denominador comum. Pense-se só nos casos citados, ou seja, entre Direito Processual Penal e Direito Processual Civil o princípio unificador, o sistema e o conteúdo do processo são distintos, resultando daí uma Teoria Geral do Processo plena de furos e equívocos, alguns intransponíveis, no Direito Processual Penal naturalmente. Urge, portanto, uma teoria geral do direito processual penal arredia à falta de ensancha da teoria geral do direito processual civil, pelo menos para poder-se ter uma base mais coerente no momento de uma reforma que pretenda não ser só de verniz.."[3]

Aury Lopes Jr[4] também compreende desta maneira, rejeitando a confusão que se instala, cujo julgado indicado, constitui-se de mais um sintoma da ausência adequada de referenciais teóricos adequados e que desemboca na violação do devido processo legal substancial.

O mais preocupante é o fato de que tal "princípio" foi exatamente utilizado para justificar a não concessão de um Habeas Corpus, ou seja, para manter alguém preso! E logo um Ministro da Suprema Corte.

Para finalizar, vejamos a conhecida Fábula da Cinderela, de Francesco Carnelutti: “Havia uma vez três irmãs que tinham em comum, pelo menos, um dos seus pais. Elas se chamavam a ciência do direito penal, a ciência do processo penal e a ciência do processo civil. Ocorreu que a segunda, em comparação com as outras duas irmãs (que eram mais belas e prósperas), havia tido uma infância e uma adolescência desafortunadas, sofridas. Com a primeira das irmãs, esta segunda dividiu durante muito tempo o mesmo quarto; e aquele teve para si tudo de bom e do melhor ”. (Tradução livre).[5]


Notas e Referências [1] FLORIAN, Eugenio, Elementos de Derecho Procesal Penal, Barcelona, Bosch Editorial, 1933, p. 20-23. [2] Teoria Geral do Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 38-40. [3] "Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: um problema às reformas processuais", http://emporiododireito.com.br/efetividade-do-processo-penal-e-golpe-de-cena-um-problema-as-reformas-processuais-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/, acesso em 23/04/2015 [4] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014. [5] CARNELUTTI, Francesco. Cuestones sobre el Proceso Penal, tradução para o espanhol de Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-América, 1961, p. 15


Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.

 

Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui           


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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