O paradoxo da investigação preliminar – Por André Sampaio

25/12/2016

Não se pode negar que o processo penal traz imanente uma dimensão penalógica inarredável. Seu ritual carrega um marcador de sofrimento endógeno, oriundo da perspectiva de uma eventual pena ao seu termo, agregada à iminência de medidas cautelares que se tornam gradativamente um atalho para uma "resolução antecipada da lide". Entretanto ele também possui um segundo marcador, exógeno, sobreposto ao primeiro, que dota o processo penal da característica de "máquina de etiquetamento" (não importando se o réu veio a ser absolvido, pois se fosse realmente um "cidadão de bem" não teria passado por esta liturgia...).

É justamente em virtude da inevitável natureza da pena como sofrimento (travestido em política de segurança), que se erige um processo penal permeado das garantias necessárias para evitar a (quase) todo custo que um inocente seja condenado – tendo o “quase” aqui a função linguística de indicativo do potencial de erro que existe em qualquer agência humana.

Mas se o próprio processo penal pode ser então deslocado de seu espaço de procedimento de evitação da dor injusta para o de provocador de sofrimento, isso não nos remeteria à necessidade de um processo para o processo e, então, de um processo para o processo do processo e assim até o infinito? Sob certa perspectiva sim, porém, diante da evidente impossibilidade de regresso ao infinito, maxime pela necessidade bilateral (ao réu e a sociedade) de fornecer uma prestação jurídica prévia, que temos no nosso modelo processual penal apenas uma fase pré-processual: a de investigação criminal.

Ao mesmo tempo em que o processo penal deve evitar que o inocente seja vitimado por uma condenação injusta, a investigação preliminar age para impedir que aquele contra quem não pairem fundados indícios da prática de um fato tido como criminoso possa ser surpreendido por um processo. Essa é a função democrática da investigação criminal, – aquela que prometíamos abordar na coluna anterior – servir de filtro processual para acusações aventureiras, carentes de suficiente fundamento.

Todavia, ao ser projetado como instrumento administrativo, unilateral – desprovido de contraditório e ampla defesa – sigiloso, o inquérito policial, procedimento de investigação amplamente mais utilizado, apresenta-se incompleto, poroso, ou, em outras palavras, democraticamente frágil, ou seja, despido de utilidade para além daquela para qual fora criado. Eis o grande paradoxo dos atos de investigação – ele precisa ser forte o suficiente para evitar acusações infundadas mas deve ser absolutamente ilegítimo para embasar (ainda que não exclusivamente) uma decisão condenatória!

Desse modo, querer “aprimorar garantisticamente” a fase preliminar se revela um equívoco tão perigoso quanto suprimi-la por completo. Introduzir, como defendem alguns, a ampla defesa e o contraditório na fase investigativa só terá o condão de minar ainda mais a utilidade da fase judicial, que se resumirá estritamente a legitimar e valorar a verdade (re)construída diante da autoridade policial (ou do escrivão de polícia, como sói acontecer em alguns distritos policiais...).

Por outro lado, esclarecendo melhor o que abordamos na coluna anterior, a total supressão da fase investigativa acabaria por obliterar o filtro processual democrático já devidamente delineado, de modo que a melhor configuração democrática possível é a de rígido controle de sua duração tanto quantitativa quanto qualitativamente, preservando, assim, seu caráter de cognição sumária – seguida da extração física dos atos de investigação repetíveis na fase judicial.

Em seu eixo quantitativo deve-se rever o regime de prazos da investigação. É necessário estabelecer prazos mais condizentes com a viabilidade investigativa e variáveis em função de motivos razoáveis – envolvimento de várias pessoas ou por demandar perícias mais complexas, por exemplo – e não caprichosamente retirar ou acrescentar dois ou três dias em função da mera tipificação do fato. Deve-se, outrossim, estabelecer um controle mais rígido em relação à prorrogação do prazo definido por lei, impedindo que haja prorrogações infindáveis, perpetuando o estigma de eterno investigado do cidadão que nele figure como suspeito.

Entretanto pensamos que o maior controle deve se dar em seu segundo eixo, o qualitativo, de forma a impedir que a investigação prossiga para além de sua principal função: fornecer (ou não, caso não existam...) indícios suficientes de autoria e prova do crime para o exercício da ação penal. É espécie de controle mais difícil, por se tratar de elemento relacionado a juízo de valor – do Ministério Público – de modo que retornaremos a ele em uma coluna futura. Porem convém desde já salientar a necessidade de aproximação do Parquet da fase investigativa, bem como exercer maior controle sobre os fundamentos dos pedidos de prorrogação de prazos do inquérito policial.

Administrar uma democracia e, por conseguinte, toda a aparelhagem necessária para colocá-la em curso demanda o esforço, ao menos, de evitação das pulsões autoritárias sempre à espreita. Com efeito, manejar um instrumento como o inquérito, tão delicado sob a perspectiva democrática, impende que sejam fornecidas condições ideais a seus atores, contudo sua ausência jamais poderá ser utilizada como álibi à sucumbência fascista.

A investigação criminal deve ser preservada porque possui uma inegável função democrática, porém, consigo deve ser gerido seu paradoxo, visto ser exatamente ele o elemento democratizador em questão.


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