Por Cyro Marcos da Silva - 26/03/2015
I. Na penumbra:
Passo à apresentação de uma possibilidade: de um encontro, como todo bom encontro, na penumbra, sempre faltoso, meio desencontro, entre Direito e Psicanálise, numa tentativa de leitura da subjetividade, ou seja, da questão do falante frente à dimensão jurídica das leis de Direito e da lei do Desejo.
Neste exato ponto, trago a observação de Alexandra Papageorgiou Legendre, colaboradora no Laboratório Europeu para Estudo da Filiação.
“Uma objeção fácil seria dizer que trata-se aí, conjuntamente, de uma psicologização do direito e de uma jurisdicização da psicanálise, objeção a fazer economizar, aos contraditores eventuais, de reconhecer a novidade que este trabalho se esforça em colocar em marcha”(FILIATION – Fayard – Paris).
Não se trata pois de psicologizar o Direito ou jurisdicizar a Psicanálise, o que seria engarrafar este trânsito. É que o Direito, encarregado de conservar a civilização, a cultura, regulando o mal-estar, o gozo, como diz Lacan, comporta em seu postulado ético — ou deveria comportar — a questão da constituição e reprodução subjetivas. Então, já neste ponto, podemos tentar colher efeitos frutíferos de um encontro sobre este terreno, terreno do sujeito, terreno ético-psico-jurídico. Direito e psicanálise interpretam e endereçam inscrições, lugares, servindo-se ambos da palavra.
E qual é a palavra neste nosso encontro aqui em Vitória? A questão escolhida é PAI. E pai, já sabemos, - e é por essas veredas que ingressaremos no sertão escuro da função,- não tem muito a ver com vitória, pendendo mais para a falta. Sabemos que a vitória do pai é poder transmitir sua falta, seu silêncio, seu calar, e que, por outro lado, o pai da vitória é aquele que se teme pela fúria que transporta. A este pai não se brinda, a ele suplica-se que afaste do filho este cálice de vinho tinto de sangue, como diz o poeta.
PAI. Por quais portas do Direito poderei entrar para visitar o pai?
Pai pode vir de outro pai, de pater. Em sentido próprio, diz um dicionário jurídico, é toda pessoa que dá origem a outro ser e, mais especificamente, conforme De Plácido e Silva,” é o ascendente masculino de primeiro grau”. Ainda segundo o mesmo dicionário, a classificação do pai, isto é, se é legítimo, natural, etc., (consideração jurídica agora irrelevante diante das novas legislações) enfim a classificação de um pai se daria segundo a situação jurídica na qual se encontra em relação à mãe de seu filho.
Nota-se, já por aí, o dedo da mulher, agora também mãe, como aquele que aponta o pai. Ainda que a modernidade, a ciência e seus progressos nos cheguem pelo DNA a afirmar paternidade biológica com 99,99% de possibilidades conforme se pode ler nos laudos, não há laudo algum que tenha ousado 100%. Há portanto, no mínimo, um por fora de cem para fundar o pai, mesmo o biológico, a rigor derrisório quando encontrado no espermatozóide, já que somos todos filhos de um nome, algo além do espermatozóide. No entanto não podemos deixar mesmo de notar que espermatozóide já é um nome, ainda que não próprio.
Parece não estar ainda perdida, no Direito, a paternidade como presunção: “ist est pater quaem justae nuptiae demonstrant”.
A marca vem pois de uma demonstração, de uma origem, algo presente no derivado país, que por sua origem traz a marca da terra ou região. De pai vai-se ainda a pais--agem, posição de terreno, considerado em seu aspecto estético ou agradável que se pode ver ou divisar de determinada porção.
Mas que pais-agem oferece o Direito? Tomemos o art. 384 do Código Civil, na regulação do pátrio poder (melhor seria pátrio dever) para conhecermos o que o Direito espera do pai: que crie, eduque, guarde e acompanhe, represente, assista, reclame de que injustamente detenha os filhos, que exija prestação de obediência, respeito e serviços próprios da condição e ainda administração dos seus bens.
Aspectos interessantes podem se ver por aí. Em primeiro lugar, parece que o Direito não ignora que o pai opera pela palavra, deve ser transmissor de um limite, de um ponto de basta, quando aponta o educar o filho. Por outro lado, sabe o Direito também da importância de uma construção de fantasia de um pai. O mencionado artigo 349 faz um retrato falado deste pai imaginário, herói ao cumprir o modelo, vilão se descumprí-lo. Até aí estamos mais perto dos registros do simbólico, ( pai introdutor da lei ) e do imaginário , pai que parece poder tudo, suposto ter o falo que a mãe parece já não ter, pai tetra, pai penta.
Porém, do pai real, ou do real do pai, ah, o Direito, como bom neurótico — Freud nos diz que os códigos são para os neuróticos —, sabe, mas não sabe que sabe. Sabe, quando prevê, sua emergência, no art. 249 do ECA, mas não quer saber, porquanto diante de poder vê-lo emergir, quer puni-lo, jeito escamoteado de banir, destituir.
Este real do pai, demonstra seu impossível, seu sempre previsível fracasso, sua impossibilidade de que seja escrito, sua castração, enfim, aquilo que escapa à mais formosa imagem do pai imaginário e à mais pretendida boa palavra, já que mesmo a dita boa palavra não diz tudo e só por isto é boa.
Vejamos a respeito o que diz o art. 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069 de 13 de julho de 1990).
“Art. 249. Descumprir, dolosa, ou culposamente os deveres inerentes ao pátrio poder ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação de autoridade judiciária ou Conselho Tutelar. Pena: multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários de referência aplicando-se o dobro em caso de reincidência.”
Os teóricos do Direito ensinam que age dolosamente quem quer e representa a si o resultado pretendido. Age culposamente, aquele que o faz por imprudência ou por negligência ou por imperícia (culpa em sentido estrito).
Não cogitemos aqui do descumprimento doloso dos deveres inerentes ao pátrio poder, hipótese provável de acontecer — com maior probabilidade — em uma estrutura perversa. Cogitemos do culposamente, portanto do neurótico. Perguntemo-nos pois: é possível que o pai seja prudente ? Prudência, juridicamente falando, é agir com a cautela necessária. Faltam na imprudência os poderes inibitórios, enquanto que na negligência não se usam os poderes da atividade, segundo o penalista Riccio, citado por Magalhães Noronha.
Na negligência pois, assombra-nos a inação, a inércia e a passvidade. É possível, portanto, tentar conduzir-se com prudência ou afastar-se da negligência, mas coisa alguma, saber algum, garante a consecução de tal intento. Como nos adverte Baltazar Gracián, em seu Manual da Prudência, no aforisma 201:
“Para ser sábio, não basta parecer sábio, nem muito menos, parecer sábio a si próprio. Você sabe quando pensa que não vê. O mundo está cheio de tolos, mas ninguém se considera um deles, nem receia ser um.”
Ainda não falamos da culpa por imperícia. Imperícia supõe arte ou profissão: “consiste na incapacidade, na falta de conhecimento ou habilitação para o exercício de determinado mister.” (Magalhães Noronha, Direito Penal). Não se pode, pois, falar da profissão. Não há profissão de pai. Há arte de pai? Se pai é o que vela (vel-a), reconheçamos com Ovídio, poeta latino, que pai é arte, pois, no dizer de Ovídio, a arte consiste em ocultar a arte.” Mas aponta outras artes. E socorro-me agora do mineiro Gruimarães Rosa: “Artes que morte e amor têm paragens demarcadas. No escuro.” (Grande Sertão Veredas)
II. No escuro:
No escuro! No escuro, um pai sonha. Um pai sonha um sonho sem pai, um sonho anônimo, chegado até os ouvidos de Freud na sua TRAUMDEUTUNG — Interpretação dos Sonhos, cap. VII. Este pai dorme. Dorme na sala ao lado onde seu filho, morto, é velado por um outro, um velho que também dormiu, quando deveria velar. E, por não zelar ou velar, a vela cai, iniciando chamas por sobre o filho morto que, no sonho do pai, já cansado, surge vivo, em chamas, a chamar: Pai, não vê que estou queimando? E o pai acordado, vê que este, não mais vivo como no sonho, arde. Mas arde na morte. Não na vida. Só em sonhos em chamas, chamava.
Um outro pai sonha. Este tem nome e se enunciou. Sonha que de uma rude geladeira ainda não elétrica, um gelo derrete, fazendo filete que vai, sorrateiramente, apressando-se lentamente, apagar chamas vizinhas, labaredas perigosas, mas que não devem se extinguir. Devem restar aquecidas em brasas. Chamas de desejo: que não queimem, mas que não se apaguem. Que continuem a chamar.
De que serviu o primeiro sonho narrado? Serviu para que um pai descansasse um pouco e que assim seu filho se mantivesse em vida. Ainda que apenas vida cênica, em tela de cinema, de sonho, tela que recobre o nada. Serviu ainda, paradoxalmente, para que o pai acorde e não permita que o fogo, que já ardeu em demasia, abrase e carbonize o resto. Serviu ainda para fazer do fogo um aviso: não vê que estou queimando? Se não vê, veja!
VEJA, em sua edição de 2 de maio, indaga na capa, referindo-se aos jovens: “Eles precisavam morrer?” A matéria intitulou-se: “Passageiros da agonia”.
E o Direito, quer avisar ou quer punir os pais que nem sempre podem ver a chama, o chamado?
Um caso: Vara da Infância e Juventude em Juiz de Fora. Duas jovens adolescentes, ainda não penalmente responsáveis, são surpreendidas, entre amigos, com material estupefaciente. Contra os pais é lavrado auto de infração. Supostamente, ou agiram com dolo ou com culpa, quer por negligência, ou por imprudência, ou por imperícia. Isto foi feita da forma mais tosca possível, mesmo porque a autuação, lacônica, impossibilitando mesmo qualquer defesa, expressa-se: “As menores aqui qualificadas utilizaram substância toxica.” (chega, pelo menos, a dizer qual foi a substância).
Como diz a defesa dos pais, não foi dito como, nem em que situação tal se deu. Sabe-se apenas a data: quando aconteceu um show musical. Apesar das duas deficiências básicas, a pretensão de punir, ainda que não articulada formalmente de maneira juridicamente idônea, põe em cheque a função paterna. E parece que algo aponta, como pensa aquele advogado, o já mencionado art. 249 do ECA, onde se pensa punir o pai: O pai que falha.
III. Tentando Clarear:
Na contemporaneidade, o Direito, ou quem sabe, seus operadores têm feito eco ao movimento de declínio da paternidade. Curva-se, às vezes medroso, às vertentes mais ferrenhas e histéricas do movimento feminista, protegendo a criança do pai, contra o pai, vendo no pai uma ameaça, um suspeito. Basta vermos os movimentos americanos neste sentido. O pai está sempre suspeito e passível de ser punido. Por outro lado, o desejo da paternidade é desconsiderado, em prol de um biologismo com prestígio absurdo e exacerbado. Presentifica-se uma devoção à paternidade biológica, uma devoção à presunção de haver encontrado o pai da verdade, tentando, assim como a Ciência faz com o sujeito, até mesmo forcluir, não levar em conta a verdade do pai. Troca por qualquer ilusão a verdade do pai pelo suposto pai da verdade. Mas qual seria a verdade do pai?
Quem sabe, não poder ver sempre, infalivelmente, que o filho está queimando: ora pretendendo nem permitir que a chama surja, ora estar dormindo demais e colocando outras e então perigosas máscaras de pai a velar seu filho tardiamente, tentando evitar que queime quando então já morto está. Não podemos nos esquecer que o resto a ser preservado é o usufruir, limitado, do gozo civilizado, na feliz expressão de Colette Soler, e não o resto já cadaverizado. O resto cadaverizado irá valer pelo que nas lápides ou registro, enfim, no simbólico, se pode escrever. E estejamos avisados: nem sempre se escreve para sempre.
O Direito, penso, diga-se dele o que se disser, ingênuo não é. Mas também sofre a falha do pai. Seus operadores, estes sim, se deixam levar por vezes pelos ventos frívolos de primeiros modismos ou pelo dernier cri, última moda posta a circular pela mídia. Assim, os legisladores, em abraço de polvo, tentando abraço de povo, querem regular tudo. Seu ponto de basta, que sempre fora a beira da cama, como aponta Lacan no Seminário XX, já não lhe barra tanto, já que, como podemos ver em recentes legislações, pretende-se ir além, regulando o enlaçamento em cima da cama, aquilo que os lençóis velam.
Entretanto, nem todo gozo se deixa civilizar. Há aquele que não tem governo nem nunca terá, que não tem juízo nem nunca terá, o que não dá sossego. Aí o Direito encontra seu limite e aí a Psicanálise vem oferecer outro limite em seu dispositivo ético: fale disto, fale mais, ainda mais, faça disto corpo de significantes, ainda em corpo, encore, en corps.
O oriente ético do Direito está pois, no limite que o real do pai, o que escapa, sempre há de impor. Aí deve o jurídico depor suas armas, rendendo-se ao impossível, pois também está diante daquilo que não cessa de se escrever: - a castração, à qual sempre se tenta responder, quando se tem a chance para tal.
O Direito, além das falácias imaginárias nas quais freqüentemente se perde ao perguntar ao espelho se há algo mais belo que a faceta gaudiana, imaginária de seu discurso, deverá apontar sim, a força do significante, deverá prestigiar a palavra, o simbólico que recobre o real do pai, sabendo assim que a fantasia de um verdadeiro pai é tão só, - e já é muito, - uma fantasia. Cabe aos que operam o Direito esticar a escuta: saber escutar, no caso, o desejo na paternidade, único endosso, paradoxalmente sem garantia, válido como adoção. É que não basta dar um filho, é preciso se dar um filho, em suma, adotar também pelo desejo, o filho biológico. Todo filho, para se tornar sujeito, é pois adotivo: do desejo.
Como adverte Pierre Legendre, cabe aos operadores do Direito tomarem cuidado diante de uma corrente de concepção açougueira da filiação — carne gerando carne — sedutoramente circulando nos corredores dos Fóruns. Digo sedutoramente, porque acena com o fantasma do encontro dos “verdadeiros” pais, enganando a divisão do sujeito e tentando dar resposta última à eterna e enigmática pergunta infantil escutada por Freud: “de onde vêm os bebês ?”
Aqui neste “Colóquio” à beira do mar de Vitória, nos dando conta neste fim de século, do Titanic paterno, podemos perguntar de outro jeito: onde “a”-funda o pai?
O pai se funda e pode a-fundar-se num lugar vazio: desocupado por um outro pai, quando legou sua condição de filho para outro filho que lhe aponta como pai, nomeado por uma mulher feita mãe. Há aí um filho sempre ressuscitando um lugar de pai, há aí a verdade fundadora do pai encontrando sua vida na reedição simbólica do assassinato primevo.
Como nos ensina Lacan, no Seminário da Ética:
“Se Deus está morto para nós, é porque o está desde sempre, e é justamente isso que nos diz Freud. Ele nunca foi o pai a não ser na mitologia do filho, isto é, na do mandamento que ordena amá-lo, ele o pai, e no drama da paixão que nos mostra que há uma ressurreição para o além da morte.”
No ano em que homenageamos o nascimento de Guimarães Rosa, termino o trabalho com um fragmento da Terceira Margem do Rio;
“— Pai, o senhor me leva junto nessa sua canoa?
Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu-se indo — a sobra dela por igual, feita um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente.
Aquilo que não via, acontecia.”
Cyro Marcos da Silva é ex-Promotor de Justiça, ex-Professor de Processo Civil, Juiz de Direito aposentado do TJRJ e Psicanalista. Publica regularmente no Empório do Direito nas quintas-feira.
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