O NOVO CRIME DE FRAUDE COM A UTILIZAÇÃO DE ATIVOS VIRTUAIS, VALORES MOBILIÁRIOS OU ATIVOS FINANCEIROS

12/01/2023

No dia 21.12.2022 foi sancionada a Lei n. 14.478, que dispõe sobre diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais, além de trazer mudanças no Código Penal, na Lei n. 7.492/86 (que define os crimes contra o sistema financeiro nacional) e na Lei n. 9.613/98 (que dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores).

A nova lei foi publicada no DOU em 22.12.2022, tendo um período de “vacatio legis” de 180 dias.

A Lei n. 14.478/22 já foi batizada de “Marco Regulatório dos Criptoativos”, regulamentando o mercado de criptomoedas, com definição de ativos virtuais e fixando diretrizes para a prestação de serviço de ativos virtuais.

A nova lei define ativo virtual como a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento. Ficam fora desse enquadramento moedas tradicionais (nacional e estrangeiras); moeda eletrônica; instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade; e representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros.

Caberá ao órgão regulador (Banco Central) estabelecer as condições e prazos, não inferiores a seis meses, para a adequação às novas regras por parte das prestadoras de serviços de ativos virtuais (corretoras de criptoativos). Estas poderão prestar exclusivamente o serviço de ativos virtuais ou acumulá-lo com outras atividades, na forma da regulamentação a ser editada.

Entre outros pontos, a lei acrescenta ao Código Penal uma nova modalidade de estelionato, no art. 171-A, denominada “fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros”, com pena de reclusão de 4 (quatro) a 8 (oito) anos e multa.

A descrição típica do novo crime é a seguinte:

“Art. 171-A. Organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.”

O novo tipo penal veio em boa hora, uma vez que já havia intenso debate, na doutrina e na jurisprudência, acerca da possibilidade de enquadramento das chamadas “pirâmides financeiras”, focadas em investimentos em criptomoedas, como crime de estelionato.

O Superior Tribunal de Justiça, analisando a questão, em mais de uma oportunidade, entendeu que as “pirâmides financeiras” constituem crime contra a economia popular, previsto no art. 2º, inciso IX, da Lei n. 1.521/51 (Lei de Economia Popular) e não crime de estelionato.

Nesse sentido:

“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL X JUSTIÇA ESTADUAL. INQUÉRITO POLICIAL. INVESTIMENTO DE GRUPO EM CRIPTOMOEDA. PIRÂMIDE FINANCEIRA. CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.

  1. O presente conflito negativo de competência deve ser conhecido, por se tratar de incidente instaurado entre juízos vinculados a Tribunais distintos, nos termos do art. 105, inciso I, alínea ‘d’ da Constituição Federal - CF.
  2. ‘A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976’ (CC 161.123/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 5/12/2018).
  3. Conforme jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, ‘a captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da Lei n. 7.492/1986, amoldando-se mais ao delito previsto no art. 2º, IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular) (CC 146.153/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 17/5/2016).
  4. Na espécie, o Juízo Estadual suscitado discordou da capitulação jurídica de estelionato, mas deixou de verificar a prática, em tese, de crime contra a economia popular, cuja apuração compete à Justiça Estadual nos termos da Súmula 498 do Supremo Tribunal Federal - STF.” (CC 170.392/SP – Rel. Min. Joel Ilan Paciornik – Terceira Seção – DJe 16.06.2020).

Agora, com a criação do novo crime de “fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros”, a questão restou pacificada, podendo as “pirâmides financeiras” que se valem, por exemplo, de investimentos em criptomoedas, ser enquadradas nessa modalidade de estelionato.

O novo crime tem como objetividade jurídica primordialmente a tutela do patrimônio, uma vez que visa o agente a obtenção de vantagem ilícita, em prejuízo alheio. A proteção legal recai, subsidiariamente, sobre o sistema financeiro nacional (no particular aspecto da credibilidade das instituições financeiras), utilizado pelo agente para organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros, de maneira fraudulenta.

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. Dada a natureza da sanção penal cominada, evidentemente somente pode ser autor do delito a pessoa natural (física), não havendo responsabilização penal da pessoa jurídica, não obstante a nova Lei n. 14.478/22 considerar prestadora de serviços de ativos virtuais a pessoa jurídica que executa, em nome de terceiros, serviços de ativos virtuais, tais como troca entre ativos virtuais e moeda nacional ou moeda estrangeira, troca entre um ou mais ativos virtuais,  transferência de ativos virtuais, custódia ou administração de ativos virtuais ou de instrumentos que possibilitem controle sobre ativos virtuais, ou participação em serviços financeiros e prestação de serviços relacionados à oferta por um emissor ou venda de ativos virtuais.

Caso uma ou mais das condutas típicas seja praticada por pessoa jurídica, o enquadramento deverá recair sobre a pessoa física que atuar como gestor e/ou responsável pelas operações de organização, gestão, oferta ou distribuição de carteiras ou intermediação das operações.

Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, física ou jurídica, que sofra o prejuízo patrimonial decorrente das condutas típicas. Secundariamente, também é sujeito passivo do crime o Estado, responsável pela fiscalização, regulamentação e controle do sistema financeiro nacional.

A conduta típica vem expressa pelos verbos “organizar” (ordenar, arrumar, estruturar), “gerir” (administrar, dirigir, coordenar, comandar), “ofertar” (oferecer, disponibilizar, ceder), “distribuir” (entregar, conferir, dividir) e “intermediar” (mediar, intercalar, intermear). Trata-se de tipo misto alternativo, em que o agente, ainda que pratique mais de uma modalidade de conduta, estará incurso em um só crime. A conduta deve ter como finalidade a obtenção de vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.

“Carteira” é termo geralmente empregado para denominar o conjunto de aplicações em ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros que compõem um “pool” de investimentos no sistema financeiro nacional.

Um dia após a publicação da Lei n. 14.478/22, a CVM - Comissão de Valores Mobiliários editou a Resolução 175 inserindo os criptoativos na definição de ativos financeiros passíveis de investimento pelos fundos de investimento financeiro (FIF), em seus diferentes tipos (ações, cambial, multimercado ou renda fixa), constante do Anexo Normativo I.

Trata-se de crime doloso, atuando o agente com a vontade livre e consciente de praticar uma ou mais modalidades de conduta. Além disso, o tipo penal exige um elemento subjetivo específico, consistente na finalidade de obter vantagem ilícita em prejuízo alheio, para tanto induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.

A consumação ocorre com a prática de uma ou mais modalidades de conduta (organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros), com o fim de obter vantagem ilícita, independentemente da sua efetiva obtenção. Trata-se de crime formal, não havendo necessidade, para a consumação, da efetiva ocorrência do resultado naturalístico (obtenção de vantagem ilícita, em prejuízo alheio). Caso o agente obtenha a vantagem ilícita em prejuízo alheio, terá ocorrido o exaurimento do crime. A tentativa é admissível, uma vez que se trata de crime plurissubsistente, cujo “iter criminis” é fracionável.

A ação penal é publica incondicionada.

Pela posição topográfica do novo tipo penal, trata-se de crime contra o patrimônio, não obstante afete, ainda que indiretamente, o sistema financeiro nacional. Assim, em regra, a competência é da Justiça Estadual. Salvo na hipótese em que a conduta for praticada em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, quando a competência será da Justiça Federal.

 

 

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