Assim como se deu no cenário comparado e internacional, fundar, refundar ou reformar o processo penal implica numa postura política que acarreta a adoção de um determinado sistema e a sua construção prática[1]. A literatura comparada mostra a fixação dessa discussão na polarização inquisitivo x acusatório e mesmo a criação das regras processuais do Tribunal Penal Internacional passou por essa dinâmica.[2]
No Brasil, como será visto, a dicotomia mencionada se faz presente nos trabalhos do NCPP e será apreciada. Mas, antes dela, a discussão sobre o arcabouço processual deve ser encorpada com a necessária reflexão sobre o macro papel político da legislação processual e como isso irá refletir em suas técnicas. Em outros termos, o que se espera do processo na construção do tecido social.
Aqui, aspectos da literatura estrangeira podem colaborar para abrir o leque de possibilidades de análise. No célebre artigo de Packer[3] são apresentados polos de discussão que se tornaram referências na literatura da common law,[4] particularmente a estadunidense: a existência de um modelo de “devido processo legal” (Due Process Model) e do “controle de criminalidade” (Crime Control Model) para o processo penal. Essa divisão gerou, entre vários desdobramentos[5], a tentativa de construir uma teoria processual cujo “passo inicial [para o estabelecimento de uma teoria processual] é reconhecer a fundamental dicotomia entre a potencial disputa existente sobre “verdade” e “justiça” na resolução de conflitos”.[6]
Sem buscar inovar em qualquer das inúmeras interpretações e superações da dicotomia de Packer pela vasta análise já elaborada, afirma-se que tais modelos (somados aos de Roach também citado) podem ser apresentados a partir da orientação política prioritária para soluções legais que busquem reforçar a aplicação oficial da norma penal material, de um lado ou, de outro, gerenciar os conflitos que surgem a partir da alegada transgressão normativa. Trata-se, assim, de uma postura prevalente e não excludente desses escopos políticos do processo.
Contudo, em modelos sociais de largas desigualdades socioeconômicas somadas à fragilização democrática por força de sua constante ruptura ou incipiente consolidação, essas opções se manifestam de forma potencialmente diversa e são reconhecíveis mais pelas patologias que possuem que, exatamente, pela complementariedade de convivência. E, no momento de (re)forma processual essa fragilidade sobressai.
O modelo processual que reforça a aplicação oficial da norma penal material, aqui identificado com o escopo processual de controle de criminalidade (Packer) tende a se caracterizar por um exponencial papel de debilitação do devido processo legal e, como será visto, por sua assimilação a um determinado modo de encarar o que se entende por “inquisitividade”. Alimenta essa missão processual a construção de um direito material punitivo com características muito específicas, especialmente a abstração do perigo na produção de normas penais e a crescente criação de espaços criminalizáveis no meio social.
Observada a construção histórica do processo penal brasileiro, o CPP até hoje em vigor reproduziu, ao longo dos textos legais que lhe precederam, e persistiu em inúmeros outros que o sucederam, o modelo de um processo afirmador da norma penal material conferindo-lhe um escopo político alheio à solução dos conflitos sociais alegadamente tutelados pelo direito penal material.
Mais ainda, esse processo penal afirmativo da norma penal material, quando estruturado em sociedades de baixa densidade democrática, surge como um viés meramente retórico, de aparente subserviência à legalidade (e mesmo à constitucionalidade ou convencionalidade) e que, essencialmente, cumpre o papel de legitimação para um modelo político de desconformidade ao próprio Estado de Direito.
Ilustra essa afirmação a existência de mecanismos ou técnicas que são introduzidos com o discurso retórico da igualdade (como o “princípio” da obrigatoriedade da acusação penal) mas que cumpre, em si, um papel de seletividade informal do sistema que é operado, sobretudo, por instâncias policiais que, não por acaso, buscam cada vez mais espaço processual na construção legislativa. Afinal, se já selecionam informalmente o funcionamento do processo nada impede que assumam essa seletividade desde uma plataforma formal gerando a crescente policialização da persecução penal.
Naquilo que se apresenta, hoje, como perspectiva de um NCPP essa foi a lógica dominante porquanto, nas estruturas básicas, a permanência de modelo em vigor é visível. O quanto se buscou introduzir de um modelo que viesse a tratar da solução de conflitos – e não de reafirmação da norma – repousou na insistência sobre um determinado modo de compreensão dos modelos processuais a partir do conceito de acusatoriedade no qual a presença oficial num aspecto nuclear – a produção da prova - haveria de ter uma nova dimensão.
No entanto, antes de passar à maneira que se pode dizer “clássica” de enfocar a dualidade inquisitivo x acusatório haverá de ser desdobrada a concepção sobre um processo penal que gerencie conflitos sociais, para além da afirmação da eficácia social da norma penal material, como se verá na sequencia.
Notas e Referências:
[1] Para aspectos das dificuldades operacionais em sistemas em transição ver CAVISE, Leonard L. The transition from the inquisitorial to the accusatorial system of trial procedure: Why some Latin American lawyers hesitate. Wayne L. Rev., v. 53, p. 785, 2007.
[2] AMBOS, Kai. International criminal procedure:" adversarial"," inquisitorial" or mixed?. International Criminal Law Review, v. 3, n. 1, p. 1-37, 2003. Também, Michele Caianiello, Law of Evidence at the International Criminal Court: Blending Accusatorial and Inquisitorial Models, 36 N.C. J. Int'l L. & Com. Reg. 287 (2010)
[3] PACKER, Herbert L. Two models of the criminal process. University of Pennsylvania Law Review, v. 113, n. 1, p. 1-68, 1964.
[4] Com a advertência do autor que se trata de uma divisão abstrata de valores envolvidos no exercício concreto da persecução, valores que são apresentados como “an aid to analysis, not as a program for action”, op. Cit., p. 06.
[5] Um deles é a tentativa de observar o modelo de funcionamento da justiça criminal a partir da ótica das vítimas como faz ROACH, Kent. Four models of the criminal process. J. Crim. L. & Criminology, v. 89, p. 671, 1998. Nele, entre outras considerações, é desdobrado o direito das vítimas e a construção de modelos punitivos e não punitivos e o próprio autor sublinha a convivência desses modelos com outros numa relação não excludente.
[6] THIBAUT, John; WALKER, Laurens. A theory of procedure. Cal. L. Rev., v. 66, p. 541, 1978, p. 541, tradução livre do autor.
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