O NCPP e a racionalidade inquisitiva: persistência de um paradigma de justiça? – Por Fauzi Hassan Choukr

30/09/2017

O esforço de construção do NCPP não pode ser desprezado ainda que seu resultado técnico-político fique distante do quanto desejado; ou mesmo que o próprio processo político não chegue a um verdadeiro final. Nenhuma reforma parcial propiciou tamanha densidade de debates, tampouco possibilitou a aproximação à constatação da necessária refundação do processo penal brasileiro. Algo que está para além da reforma.

Por isso, discutir a permanência da racionalidade inquisitiva no NCPP não constitui uma crítica demeritória a tudo quanto foi feito. Essa discussão somente é possível porque o projeto existe e desnudou a imensa dificuldade cultural de superar a “sombra” da inquisitividade na sua contraposição à acusatoriedade.[1]

Se há certo consenso no que toca às características centrais da inquisitividade, notadamente seu histórico apego ao emprego da violência física e àquilo que se poderia denominar contemporaneamente de “objetificação” da pessoa submetida à persecução, não se pode descurar a persistência de uma discussão sobre a permanência desse modelo enquanto alegadamente capaz de entregar a realização de uma maior “justiça material”[2], mesmo em um cenário no qual “todos repiten la consabida apelación a las bondades indiscutibles del sistema acusatorio o adversativo, a modo de invocación que, sin más explicaciones, cierra cualquier juicio desfavorable en torno a su necesidad, o a sus posibles desventajas”[3]

Com efeito, a formação do modelo europeu-continental ainda de base inquisitiva parece seduzir acadêmicos inseridos num pleno modelo adversarial[4] muito menos pelas virtudes inquisitivas e muito mais pelas patologias de concentração de poder que são encontradas em particular no modelo estadunidense que se projeta como um sinônimo reducionista de todo common law numa superficial e equivocada leitura comparada. [5]

E é exatamente pela crítica de concentração de poder que ser quer destacar a face contemporânea da inquisitividade que se encontra caracterizada toda vez que houver uma superposição de poderes ou atribuições em um mesmo interveniente processual conjugada à baixa transparência de suas posturas persecutórias e ao baixo grau de controle ou capacidade de confrontação dos atos praticados.

Historicamente essa concentração de poder foi ocupada pela mescla das funções postulatórias e julgadoras residindo aí sua nota característica em termos de técnica processual[6]. Ademais, esse magistrado foi, em determinado momento, igualmente um investigador, numa estrutura que permeou tanto o modelo anglo-saxão[7] como o europeu-continental.

Focando a concentração de poder como nota inquisitiva predominante da técnica processual ao lado da opacidade de controle das posturas processuais e incapacidade de confrontração substancial busca-se evitar o escorregadio terreno da caracterização dessas estruturas (inquisitiva, adversarial ou acusatória) por outras tantas que podem surgir simbioticamente entre todas elas e pouco ajudam a definir com clareza o funcionamento real do aparato persecutório como, por exemplo, a participação popular na administração da justiça por meio de um tribunal de leigos[8].

Nos trabalhos do NCPP houve intensa disputa por um dos aspectos primários dessa concentração, o da possibilidade da produção de provas de ofício. E, de fato, essa concentração ocupa espaço nodal na identificação sistêmica, mas não isoladamente.

Como se verá na sequência, estruturas capazes de catalisar atos de repercussão processual com grande opacidade de controle dos atos praticados e que geram débil capacidade de confrontação são claras estruturas inquisitivas.  E, nesse ponto, a investigação criminal com suas permanências sensíveis ocupa grande espaço caracterizador da inquisitividade mesmo no NCPP.

O desafio maior será o de analisar o comportamento sistêmico quando forem concentradas as funções investigativas, persecutórias e adjudicatórias num mesmo interveniente, preocupação sentida no direito comparado e cuja resposta ainda se encontra em franca construção.[9]


Notas e Referências:

[1] Para uma visão dessa polarização e suas consequências ver LANGER, Máximo. La larga sombra de las categorías acusatorio-inquisitivo. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 1, n. 1, 2015.

[2] “Indeed, let’s even leave aside the question whether and to what extent the one or the other procedural system may guarantee a higher degree of material justice and formal fairness on the level of domestic jurisdiction”, nas palavras de Eser, A. (2008). The “Adversarial” Procedure: A model superior to other trial systems in international criminal justice? In: Krüssmann, Th. (ed.). ICTY: Towards a Fair Trial (p. 207—227), Wien: Neuer Wissenschaftlicher Verlag. Essa observação servirá como ponto de partida para a discussão de qual o modelo a ser seguido no âmbito da jurisdição penal internacional.

[3] ARMENTA DEU, Teresa. Sistemas procesales penales. La justicia penal en Europa y América. Madrid: Marcial Pons, 2012, pp. 09/10.

[4] MOSTELLER, Robert P. Failures of the American adversarial system to protect the innocent and conceptual advantages in the inquisitorial design for investigative fairness. NCJ Int’l L. & Com. Reg., v. 36, p. 319, 2010.

[5] Mas, também, por aqueles que veem traços humanistas no modelo inquisitivo mesmo em períodos tidos como marcantemente severos: DAMAŠKA, Mirjan. The Quest for Due Process in the Age of Inquisition. The American Journal of Comparative Law, v. 60, n. 4, p. 919-954, 2012.

[6] “Under the historical perspective, it is particularly relevant which party is given prosecutorial power and whether the judge can initiate proceedings motu próprio” ILLUMINATI, Guilio. The Accusatorial Process from the Italian Point of View. NCJ Int’l L. & Com. Reg., v. 35, p. 297, 2009.

[7] Langbein, John H., “The Origins of Public Prosecution at Common Law” (1973). Faculty Scholarship Series. Paper 539. Neste trabalho está assentada a origem histórica do órgão público acusador na Inglaterra, identificando-o com a figura do “juiz de paz” e assim persistiu até a tardia modernização do processo penal inglês com as regras de exclusão probatória que originaram o que se denomina de modelo “adversarial” e que será discutido em texto futuro.

[8] Ver, entre outros, GÓMEZ COLOMER, J.L.: “La reforma estructural del proceso penal y la

elección del modelo a seguir”, Revista española Poder Judicial núm. Especial XIX, Madrid, 2006.

[9] LYNCH, Gerard E. Our administrative system of criminal justice. Fordham L. Rev., v. 66, p. 2117, 1997. E, na esteira dessa fonte, BARKOW, Rachel E. Institutional Design and the Policing of Prosecutors: Lessons from Administrative Law. Stan. L. Rev., v. 61, p. 869, 2008.


Gostou do assunto? Confira aqui a obra Iniciação ao Processo Penal!iniciação ao processo penal


 

Imagem Ilustrativa do Post: Cell // Foto de: Steve Snodgrass // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/stevensnodgrass/3589418304

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura