Por Luis Henrique Braga Madalena e Conrado Gama Monteiro - 11/02/2017 [1]
Não estou nem mesmo dizendo que “política é inconsciente”, mas apenas que o “inconsciente é política”.
Jacques-Marie Émile Lacan
Depois de uma longa pausa, daremos sequência aos singelos textos que apresentamos para o debate acerca do Novo CPC e a discricionariedade. De acordo com o que dito na coluna anterior, aqui responderemos a seguinte questão: O Estado Democrático Constitucional de Direito é compatível e capaz de sobreviver em face da vontade de poder[2] do julgador/intérprete do direito? Esta vontade de poder de fato é livre e incondicionada?
Como forma de melhor organizar nossas ideias, vamos dividir os questionamentos em duas colunas, com o que será possível não tratar as temáticas abordadas de forma demasiada e equivocadamente rasa. Por isso, neste primeiro movimento trataremos da seguinte questão do Estado Democrático Constitucional de Direito versus a liberdade do intérprete autêntico.
Devido a própria natureza do conceito de Estado Democrático Constitucional de Direito a primeira resposta que vem em mente é a de que este não pode conviver com a questão da vontade de poder. Sobre isso já tratamos[3]. Afinal, se se admitir que a Constituição comporta uma enorme elasticidade interpretativa, de modo compreender que princípios devem ampliar as possibilidades do intérprete (autêntico), tem-se que o Direito será aquele dito pelo indivíduo que se coloca na tal posição.[4] Com isso estará morta a democracia. E o que é pior: de forma legítima!
Isso é assim pela simples razão de que não poderá haver democracia constitucional se se ficar a mercê da vontade do indivíduo julgador, não fundado nos pressupostos do Direito (fixador das escolhas políticas). Em tese, a verificação do apego ao Direito deveria ser passível de clara observação por via da fundamentação de cada uma das decisões. Muitas vezes efetivamente o é. O problema reside nos casos limítrofes e na definição de quando se manifesta e influi a vontade de poder.
Em especial nestes casos limítrofes, a decisão e consequente preenchimento da estrutura jurídica da norma não pode ser tida como um ato de vontade do intérprete, conforme inicialmente trazido por Kelsen[5]. Aqui não estamos sendo ingênuos em acreditar que o intérprete será uma alface, um autômato, mero repetidor do que aponta a prescrição normativa, texto, portanto. Se assim fosse, estaríamos admitindo indistinção entre texto e norma, o que de há muito já se sabe superado.
No entanto, não se pode permitir que a Constituição Federal seja “complementada” pela discricionariedade do intérprete/julgador, desvinculada da observância de um princípio democrático, sob pena de se autorizar ativismos. Caso contrário seria permitido ao julgador inclusive criar princípios aptos a derrogar outros dispositivos constitucionais[6]. Trata-se de circunstância que afronta por concreto a ideia de Constituição, como norma constituinte de um Estado Democrático.
Sobre as pretensas permissões dadas ao julgador para a derrogação de dispositivos constitucionais, a “técnica” da ponderação aplicada costumeiramente no Brasil dá azo para este tipo de afastamento de aplicação da Constituição de acordo com o entendimento do julgador. Não estamos afirmando que a ponderação, aquela elaborada por Robert Alexy, por si só autoriza desmandos e autoritarismos judiciais, mas sua desviante aplicação, sim, o faz. Não se pode admitir que haja afastamento de qualquer dispositivo constitucional de determinado caso concreto, caso a hipótese fática clame por sua incidência, sob pena de desrespeito ao projeto de Estado Democrático Constitucional de Direito.
Se assim não o for, a democracia será traída pelo exercício do que Guillermo O’Donnell chama desde há muito de democracia delegativa[7]. Tal conceituação, apesar de não ser algo inovadora, ainda se mostra absolutamente aplicável aos países de modernidade tardia, em especial às democracias latino-americanas...
Aqui vale trazer Zizek para a discussão, especialmente quando afirma que “o que devemos temer não são as incertezas da liberdade e da permissividade, mas, ao contrário, o que experimentamos como uma teia opressora de novos regulamentos”. Aqui a pretensa liberdade interpretativa leva a sedimentação oculta e perversa de antigos “costumes” que derrotam a transformação pretendida pela Constituição, devidamente escorada nestes “novos regulamentos”.[8] Ainda com Zizek a análise que trata da resposta dada por Proust para a questão de “como a aristocracia é possível em tempos democráticos, depois que as marcas externas da hierarquia foram abolidas?”: a complexa rede de costumes informais não escritos, por meio da qual os que estão “dentro” reconhecem “os seus” e identificam os que apenas fingem pertencer ao círculo interno e devem ser relegados ao ostracismo.[9]
Desse modo, faz-se importante, para fins de se compatibilizar decisões ao Estado Democrático Constitucional de Direito, observar a diferença entre escolher, como ato de vontade de poder, e decidir, que envolve o comprometimento e fundamentação de algo construído pela comunidade política e democrática anterior.
Este tipo de interpretação, seguida de um comprometimento com aquilo preconcebido em termos políticos e democráticos como direito, é essencial para preservar a força normativa da Constituição, sob pena de se declarar sua derrocada em face da vontade de poder, com a consequente ruína do Estado Democrático Constitucional de Direito.
Na próxima coluna seguiremos para a resposta do segundo questionamento: A vontade de poder de fato é livre e incondicionada?
Notas e Referências:
[1] SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
[2] Falar-se em “vontade de poder” aqui, necessariamente remete à concepção nietzschiana, mas sempre observada pela abordagem heideggeriana, especialmente provida por específica obra que este último dispensou a tratar do legado da filosofia desenvolvida pelo primeiro. Da mesma forma que realizado na tradução brasileira da obra, realizada por Marco Antônio Casanova, aqui se ressalta a rejeição da tradução da expressão Wille zur Macht como “vontade de potência”, como também ocorre com as traduções francesas, dado que aqui não se adequa por algumas razões, também enxergadas pelo mencionado tradutor. Casanova aponta preliminarmente que o termo utilizado por Nietzsche simplesmente não pode ser traduzido por potência, uma vez que isso não quer dizer, visto que em alemão há ao menos duas palavras para descrever potência: Potenz e Leistung. Nenhuma destas foi utilizada por Nietzsche, que fez uso de Macht, que literalmente significa poder. A tradução para “vontade de potência” muitas vezes é justificada no sentido de escapar de indesejáveis sentidos da palavra “poder”, que aqui não se fazem sentir, muito pelo contrário. Sob o aspecto filosófico, ainda segundo Casanova, a argumentação também não se faz consistente, dado que se fala na aproximação da filosofia de Nietzsche e a noção de potência (dynamis) em Aristóteles, de modo que a “vontade de poder” terá mais em comum com possibilidade e não com a instauração fática das relações de poder. Ao realizar aproximação da filosofia nietzschiana, ver-se-á que o que se buscou foi efetivamente falar da instituição das relações de poder, com ênfase no poder que certas perspectivas exercem sobre outras perspectivas no interior das configurações vitais em geral e não de uma específica estrutura de possibilidade. Tanto é assim, que em diversos fragmentos publicados postumamente, vê-se que Nietzsche substitui a palavra Macht, por Herrschaft ou Beherrschung, que respectivamente significam domínio e dominação.
[3] MADALENA, Luis Henrique. Discricionariedade Administrativa e Hermenêutica. Salvador: Jus Podivm, 2016.
[4] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p 73.
[5] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 209-211
[6] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido Conforme Minha Consciência? 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p 49.
[7] A conceituação trazida por O’Donnell é advinda de uma visão sobre países de modernidade tardia, recém-saídos de regimes autoritários e que recentemente adentraram em regimes democráticos de forma “despreparada”, dada a ausência de firmes instituições democráticas que possibilita que o estilo de governo dos líderes recém eleitos equipare-se a um absolutismo chancelado democraticamente, o que faz com que mesmo à míngua de patentes ameaças ao regime democrático vigente, esse não termine por se consolidar sob o ponto de vista institucional, levando a um afastamento da participação popular nos rumos que toma o Estado e sua administração. Isso faz com que a delegação de poderes prevaleça sobre a representação. Tais características, fortemente calcadas em um individualismo hobbesiano, são marcantes nos países da América Latina, enfaticamente na década de 90 do século passado. Cf. O’DONNELL, Guillermo. Democracia delegativa? In: Novos Estudos Cebrap, n. 31, out/91, p. 25 e segs.
[8] ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 20.
[9] Id.
Luis Henrique Braga Madalena é Coordenador Geral da Academia Brasileira de Direito Constitucional – ABDConst. Doutorando em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ. Mestre em Direito Público pela UNISINOS-RS. Especialista em Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Constitucional da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogado.
. . Conrado Gama Monteiro é advogado, Especialista em Direito Constitucional pela ABDConst e Membro da Comissão de Direito Marítimo, Aduaneiro e Portuário da OAB/PR.. .
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