O meu trabalho é no lar

02/09/2016

Por Isis Regina de Paula e Juliana de Alano Scheffer - 02/09/2016

“Qual o seu trabalho? Sou dona (o) do lar.” Respostas como essa, para as gerações mais novas, podem causar espanto e desdém. A reação poderá ser ainda mais impactante se a “dona do lar” for um homem. Como admitir, em pleno século XXI, que alguém escolheu não realizar nenhuma atividade economicamente ativa?

Este aparente julgamento social decorre do fato de que os trabalhos realizados no espaço privado não são valorizados e nem reconhecidos como profissão ou ocupação. Não sendo atividade econômica, o trabalho doméstico voltado à residência familiar sofre problemas de invisibilidade e desprestígio.

Na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) não se encontra referência a este tipo de atividade.[1] Do mesmo modo, o direito trabalhista não o contempla, e volta-se para proteção e regulação do trabalho subordinado enquanto atividade remunerada.[2] A categoria de inatividade econômica do IBGE classifica as pessoas que não trabalham porque vivem de renda, podendo ser: aposentados, pensionistas, estudantes, doentes ou inválidos, ou as pessoas que realizam afazeres domésticos.[3] Desta análise, percebe-se que a estrutura jurídica, política e legislativa concebe o trabalho enquanto atividade geradora de riquezas.

Contudo, uma conceituação mais ampla de trabalho indica que este não é apenas uma atividade sujeita a diferentes valores e criadora de mais valia. No entender da pesquisadora Margareth Rago[4], o trabalho é puramente atividade. Neste contexto, o cuidado com as atividades domésticas e filhos é considerado trabalho.

De acordo com a referida historiadora, essa divisão entre trabalho vs. não trabalho (em que se encaixam as atividades não pagas, as quais são em grande parte atribuídas às mulheres) contribui, dentre outros fatores, para a construção do sistema patriarcal, e não colabora para a igualdade entre os gêneros.

Além de reconhecer que a atividade doméstica familiar também é trabalho, esta merece respeito. Tal consideração é reflexo do direito fundamental de liberdade, previsto no art. 5º da Constituição.[5]

A liberdade da pessoa física ou liberdade individual foi a primeira a ser conquistada pelo ser humano. Neste sentido, o indivíduo possui pelo menos dois tipos de liberdades: a interna e a externa.[6]

A liberdade interna - chamada de liberdade subjetiva - consiste no livre arbítrio para a manifestação da vontade; é o poder de escolha.[7]

Já a liberdade externa é denominada como liberdade objetiva, e exterioriza o querer individual. Esta implica no afastamento de obstáculos e coações, de modo que o ser humano pode agir livremente como bem querer. Para o exercício da liberdade é indispensável estabelecer limites, de forma que as manifestações de um indivíduo não prejudiquem outro.[8]

Portanto, a liberdade constitucionalmente prevista é condição para a realização da felicidade pessoal. E se essa felicidade estiver vinculada a ser “dona (o) do lar”? Deve prevalecer a liberdade individual e direito à decisão.

Esta escolha deve ter caráter subjetivo, cabendo ao indivíduo analisar suas convicções sobre o modo de vida. Não cabe à família, ao cônjuge, ao Estado, e muito menos à sociedade ditar o que lhe é melhor: cada qual deve se autodeterminar.

Todavia, compreende-se que há pessoas que não possuem a opção de se dedicar exclusivamente ao trabalho não remunerado doméstico, por razões econômicas ou de saúde.

Como evidencia o IBGE, 90,7% das mulheres ocupadas no mercado de trabalho convencional realizavam afazeres domésticos e de cuidados, no ano de 2014[9]. Assim, percebe-se um acúmulo de funções, muito mais do que uma substituição. Se a atividade doméstica fosse mais valorizada enquanto forma de trabalho, a sobrecarga e dupla jornada das demais trabalhadoras ficaria ainda mais em evidência.

Outra questão importante é a carga cultural do serviço doméstico como feminino. Por exemplo: no Brasil Colônia, as meninas recebiam instrução voltada aos afazeres domésticos[10]. Nas famílias mais abastadas, nos séculos XVIII e XIX, era sinal de distinção manter as mulheres restritas a estas atividades.[11] Até o Estatuto da Mulher Casada de 1972[12], a brasileira precisava de autorização do marido para escolher sua profissão. Percebe-se que as mudanças são recentes.

Então, não se pode esperar que de um dia para o outro todas as mulheres ingressem imediatamente no mercado de trabalho (e que a divisão dos afazeres domésticos se distribua igualmente entre os gêneros em um passe de mágica). As mulheres têm capacidade de se autodeterminar, mas também estão conectadas a uma vivência cultural individual. Neste processo é indispensável o respeito às diferenças culturais e intergeracionais.

Ainda que se compreenda que há valor e respeito para o trabalho não remunerado com os afazeres domésticos, a previdência social não o protege. Assim, é importante que as pessoas que trabalham com os cuidados de sua própria casa contribuam com o sistema nacional de previdência social, como segurados facultativos.[13]

O Regulamento da Previdência Social[14] garante às pessoas que não exercem atividade remunerada possam - de acordo com sua vontade - contribuir com o Regime de Previdência Social, assegurando assim os seus direitos previdenciários. No caso das pessoas que são donas (os) do lar, existem três formas de contribuição, com alíquotas variáveis.[15] A contribuição é facultativa, porém de suma importância para garantia da aposentadoria, dentre outros benefícios.[16]

De acordo com o exposto, as tarefas domésticas são um trabalho, em seu sentido amplo, como qualquer outro. Assim, é necessário o reconhecimento de seu valor, com base no respeito à liberdade individual, e de uma compreensão histórica e cultural. Seja do lar ou não, seja mulher ou homem que se dedique de modo integral às atribuições domésticas: cada decisão sobre o modo de vida merece proteção, enquanto expressão da liberdade.


Notas e Referências:

[1] BRASIL. Ministério do Trabalho e Previdência Social. Disponível em: <http://www.mtecbo.gov.br/crosite/oages/downloads.jsf>. Acesso em: 30 ago. 2016.

[2] MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 17.

[3] BRUSCHINI; Cristina. Trabalho doméstico: inatividade econômica ou trabalho não-remunerado? Revista Brasileira de Estudos de População. São Paulo, v. 23, n. 2, p. 331-353, jul./dez. 2006. Disponível em: < https://www.rebep.org.br/revista/article/view/221/pdf_207>. Acesso em: 20 ago. 2016.

[4] RAGO, Margareth. Gênero e História. CNT-Compostela, 2012, p. 7.

[5] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 20 ago. 2016.

[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 239-240.

[7] Idem, p. 234-235.

[8] Ibidem.

[9] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Síntese de Indicadores Sociais 2015 – Uma Análise das Condições da População Brasileira.  São Paulo: IBGE, 2015. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=295011>.  Acesso em: 10 mai. 2016, p. 63.

[10] ARAÚJO, Emanoel. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: DEL PRIORE, Mary (Org); BASSANEZI, Carla (Coord). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004, p. 50.

[11] PEDRO, Maria João. Mulheres do Sul. In: DEL PRIORE, Mary (Org); BASSANEZI, Carla (Coord). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

[12] BRASIL. Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4121.htm>. Acesso em: 19 ago. 2016.

[13] SABÓIA, Maximiliano Silveira. INSS Fácil: Manual de Direito Previdenciário. Conceição: Vale do Mogi Editora, 2010, p. 32.

[14] BRASIL. Decreto 3048/1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3048.htm>. Acesso em: 31 ago. 2016.

[15] No plano normal, a contribuição mensal é de 20%, calculada sobre o valor do salário mínimo vigente até o limite do teto previdenciário. Nessa forma de contribuição são garantidos ao contribuinte todos os benefícios previdenciários. Se o contribuinte optar pelo plano simplificado, a alíquota é de 11% sobre o salário mínimo, e nesse plano não é permitida a aposentadoria por tempo de contribuição. Para as famílias de baixa renda existe a possibilidade da alíquota da contribuição ser de 5%. Neste caso a exigência é que o contribuinte pertença à família de baixa renda cadastrada no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, e que tenha renda familiar de até dois salários mínimos.

[16] As pessoas interessadas devem realizar o cadastro pelo telefone 135, ou acessar ao Portal do Ministério do Trabalho e Previdência Social.


Isis Regina de Paula

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Isis Regina de Paula é Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora do GT Direitos Fundamentais do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” - UFSC. .


Juliana de Alano Scheffer. Juliana de Alano Scheffer é Graduanda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Servidora Pública na UFSC. Pesquisadora do GT Direito do Trabalho do Projeto de Pesquisa e Extensão “Direito das Mulheres” – UFSC. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Holliday in China tomorrow! Time to clean the house and wash clothes // Foto de: Théo Paul // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/theopaul/27466218501

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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