Por Alan Pinheiro de Paula - 31/08/2016
Tudo começou no dia 6 de junho de 2013, quando um grupo de jovens se reuniu no Centro de São Paulo, no sentido de contestar o aumento de R$ 0,20 (vinte centavos) na tarifa do transporte coletivo municipal. No entanto, o que parecia uma manifestação pontual, tornou-se o marco inicial da maior sequência de protestos no País desde os “Caras-pintadas”, movimento estudantil realizado em 1992, que teve como principal escopo o “impeachment” do então Presidente da República Fernando Collor de Mello.
Pode fazer isso, Doutor? Claro que sim! A liberdade de expressão pode ser manifestada pela reunião de pessoas, direito este reconhecido no art. 5°, XVI, da Constituição Federal: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente” [1].
A partir deste dispositivo, pode-se afirmar que, muito embora não dependa de autorização, o direito de reunião está condicionado a determinados requisitos: a) manifestação pacífica e sem armas; b) em locais abertos ao público, como ruas, praças e avenidas; c) prévio aviso à autoridade competente, para que uma manifestação não venha a frustrar outra previamente convocada para o mesmo local.
Para José Afonso da Silva “aliás, a liberdade de reunião é daquelas que podemos denominar de liberdade-condição, porque, sendo um direito em si, constitui também condição para o exercício de outras liberdades: de manifestação do pensamento, de expressão de convicção filosófica, religiosa, científica e política, e de locomoção (liberdade de ir, vir e ficar) [2].
Ainda em junho de 2013, milhares de pessoas em atuação denominada “Movimento Passe Livre” saíram as ruas, em diversas cidades, reivindicando muito mais do que os R$ 0,20 (vinte centavos). Ocorre que alguns manifestantes passaram a adotar uma estratégia anarquista denominada “Black Bloc”, episódio este que originou uma série de questionamentos, em razão de práticas ilegais e violentas notoriamente difundidas.
Primeiramente, o que significa essa ideologia “Black Bloc”, Doutor? Do inglês “black”, preto e “bloc”, agrupamento de pessoas, “Black Bloc” pode ser conceituado como ação conjunta de diversas pessoas mascaradas e vestidas de preto, que se reúnem em locais abertos ao público para protestar. Esta ideologia surgiu na Alemanha na década de 80, como estratégia adversa aos órgãos policiais e, posteriormente, como negação aos regimes capitalistas. O que diferencia seus integrantes de outros grupos, é a forma violenta de agir, mediante ataques em detrimento de propriedades privadas, além da utilização de roupas e máscaras pretas, com objetivo de garantir o anonimato [3].
Mas eles podem fazer isso, Doutor? Bem, parece óbvio que esses manifestantes jamais poderiam depredar patrimônio alheio, ainda que na defesa de possíveis direitos. Em que pese o reconhecimento da liberdade de expressão no texto da Constituição, nenhuma norma é absoluta, devendo ser preservado, desta forma, o direito de propriedade. Nesta linha de raciocínio, o Código Penal, em seu art. 163, prevê como crime a conduta de “Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”, sendo cominada pena de “detenção, de um a seis meses, ou multa” [4]. Diante da colisão de direitos fundamentais em uma situação fática, deve-se ser buscada uma solução razoável e de forma ponderada, como leciona Robert Alexy [5]. Neste caso, é de conhecimento público que, principalmente na capital paulista e carioca, houve frequentes ocorrências de repressão dos órgãos de segurança pública, sendo registrado, de um lado, um quebra-quebra provocado pelos manifestantes e, de outro, violência policial.
À roda de toda essa polêmica, no mesmo ano da eclosão das manifestações de rua, foi instituída no Rio de Janeiro a Lei Estadual n° 6.528 de 11 de setembro de 2013, que proibiu expressamente o uso de máscara ou qualquer outra forma de ocultar o rosto dos manifestantes [6]. Mas pode isso, Doutor? Pois é, muito embora a liberdade de pensamento seja um direito individual, a própria Constituição, em seu art. 5°, IV, “in fine”, repudia o anonimato como meio de manifestação [7]. Na doutrina de David Araújo e Vidal Serrano, o indivíduo “pode manifestar-se por meio de juízos de valor (opinião) ou da sublimação das formas em si, sem se preocupar com o eventual conteúdo valorativo destas” [8]. Não obstante, como ressalta Reis Friede, “...a liberdade de exteriorização do pensamento, em particular – a exemplo de outros direitos fundamentais -, não pode ser, de nenhum modo, interpretada de forma absoluta, posto que, em certas situações, poderá haver efetivo prejuízo social no que tange, entre outros, ao sinérgico desrespeito aos valores éticos da pessoa e da família” [9].
Sem qualquer surpresa, a Lei n° 6.528/2013 do Rio de Janeiro foi questionada quanto à sua constitucionalidade perante o Tribunal de Justiça daquele Estado. Em defesa de sua constitucionalidade, a Procuradoria-Geral do Rio de Janeiro argumentou que o uso de máscaras durante manifestações públicas seria uma forma de anonimato e violaria a Constituição. Foi registrado ainda que o objetivo dos mascarados seria dificultar a atuação policial e se furtar de eventual responsabilização.
E qual foi a decisão daquele Tribunal, Doutor? Conforme acórdão de seu Órgão Especial, a famigerada Lei que proíbe máscaras em manifestações foi declarada constitucional, conforme publicação do dia 10 de novembro de 2014. De acordo com o voto da desembargadora Nilza Bitar, “O direito de baderna não é constitucional” [10]. Que bordoada hein, Doutor? Pois é.
Como era de se esperar, foi interposto Recurso Extraordinário com Agravo do citado acórdão, que não foi unânime, perante o Supremo Tribunal Federal, sob registro (ARE) 905149. Conforme publicação do dia 26 de agosto de 2016, foi reconhecida sua repercussão geral. Segundo o relator do processo, ministro Luís Roberto Barroso, o tema deve ser apreciado pelo STF, uma vez que envolve a discussão sobre os limites da liberdade de manifestação do pensamento e de reunião. Ele ressalta que a questão aborda não apenas a vedação ao anonimato (previsto no inciso IV, artigo 5º da Constituição Federal), como também a relação com a segurança pública [11].
E o que vai dar isso aí, Doutor? O tema constitucional é irrefutável, devendo a Suprema Corte defender a promover os direitos fundamentais em questão. Vamos aguardar as cenas do próximo capítulo. “O Máskara” que seu cuide...
Notas e Referências:
[1] Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5°, XVI
[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 ed, São Paulo: Malheiros, 2005, p. 244.
[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Black_bloc
[4] Código Penal Brasileiro, art. 163
[5] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. 669 p.
[6] Lei n° 6.528 de 11 de setembro de 2013. Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
[7] Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5°, IV
[8] ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 143.
[9] REIS FRIEDE, (2002:154)
[10] http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/5118?p_p_state=maximized
[11] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=323970
.Alan Pinheiro de Paula é Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Especialista em Gestão de Segurança Pública pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Professor de Direito na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Professor convidado em diversos cursos preparatórios para concursos públicos. Professor da Academia de Polícia Civil do Estado de Santa Catarina (ACADEPOL). Delegado de Polícia.
Imagem Ilustrativa do Post: máscara branca. // Foto de: dfactory // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/dannyfactory/15681086464/
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.