Nesta última terça-feira um voto de um ministro do Supremo Tribunal Federal causou certa comoção social; Gilmar Mendes, em situação de Minerva, votou pela concessão da ordem de Habeas Corpus para José Dirceu, o que subitamente fez com que surgissem acusações de parcialidade imputadas contra si. Não tardou para que Mendes fosse enquadrado na categoria de “petralha”.
O que é ainda mais curioso é que o próprio Ministro em questão já esteve em situações reservadas com políticos de “outras bandas”, como o senador Aécio Neves e o próprio Michel Temer, provocando, nestas outras oportunidades, o clamor do lado oposto, tachando-o de psdbista ou pmdbista.
Esse tipo de “deslocamento de pechas ao apetite do acusador” soa de modo muito semelhante ao comportamento de torcidas calorosas, como em um jogo de futebol, que, ao assinalar uma penalidade máxima ao time adversário, o árbitro é ladrão, mas quando a mesma coisa ocorre ao seu time nada é mencionado, é apenas a justiça sendo feito, visto que a justiça é silenciosa...
Essa “flafluzização” – expressão afetuosamente utilizada pelo professor Rui Cunha Martins em palestras – que há muito excedeu os limites futebolísticos, nunca traz elementos relevantes a análises, pelo contrário, conclusões intermediadas por emoções quentes costumam atingir o alvo apenas casualmente.
Mas por que há tanta confusão relacionada à imparcialidade judicial? Ou, melhor, sob quais condições é possível coexistir discursos tão antagônicos acerca do mesmo tema? Uma hipótese imediata e evidente é o paupérrimo tratamento fornecido pelo CPP à garantia da imparcialidade.
O nosso Código de Processo Penal não dedica um único artigo à conceituação da imparcialidade, ele opta pela abordagem antitética, elencando os casos nos quais o magistrado não poderá julgar, seja por impedimento (art. 252), incompatibilidade (art. 253) ou suspeição (art. 254), mas seria possível compreender nestas hipóteses todas as circunstâncias de parcialidade judicial?
Quando falamos em julgador imparcial estamos nos referindo a um pressuposto de validade subjetiva do processo,[1] ou seja, seria no mínimo ousado querer conter as possibilidades de descumprimento nos parcos limites dos artigos já mencionados. Sua hermenêutica precisa ser aberta e amoldável a contingências.
No âmbito doutrinário já se superou essa tratativa simplória, sendo a imparcialidade abordada também no seu aspecto objetivo. Destaca Aury Lopes Jr., na senda do Tribunal Constitucional espanhol (STC 145/88):
Destaca o Tribunal uma fundada preocupação com a aparência de imparcialidade que o julgador deve transmitir para os submetidos à Administração da Justiça, pois, ainda que não se produza o “pré-juízo”, é difícil evitar a impressão de que o juiz (instrutor) não julga com pleno alheamento. Isso afeta negativamente a confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar nos justiçáveis, especialmente na esfera penal.[2]
É conveniente separarmos dois momentos de atuação do juiz da causa, em sua atividade judicante, ao proferir decisões no bojo do processo, e em seu agir, tanto endógeno (comportamento em audiência, trato com as partes, etc.) quanto exógeno ao processo (contatos com réus/investigados, pronunciamentos públicos na mídia, etc.).
Quanto à motivação das decisões judiciais muito já foi dito e escrito (e, infelizmente, ignorado por ampla maioria da magistratura), em suma, o dever constitucional de motivação das decisões (art. 93, IX da CF) vai muito além do despejo de razões vagas e genéricas, ao ponto de servirem fungivelmente para qualquer caso similar. Aliás, ciente da necessidade de um maior rigor quanto a esse ponto o próprio Novo Código de Processo Civil dispõe em seu art. 489, § 1º:
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Infelizmente o que se tem percebido é a interpretação sumamente restritiva do dispositivo acima, em evidente violação a garantias constitucionais.
No que tange ao comportamento do julgador as exigências que sobre si recaem são de ordem quase sacerdotal; sua postura, dentro e fora do ofício, precisa ser dotada de profundo comedimento e equilíbrio. Não é de bom alvitre, por exemplo, jantar ou viajar com o justiçável, seja ele réu ou apenas investigado; não é razoável dedicar máxima atenção às testemunhas da acusação e sair para espairecer um pouco nas de defesa; é inconveniente o juiz manter uma conversa de “pé de ouvido” durante a audiência com qualquer das partes, para dizer bem menos do que gostaria.
Obviamente que a junção de posturas inadequadas de ambos os jaezes apresente problema de magnitude ímpar. Imaginemos que, por exemplo, a defesa de um determinado réu arrole 87 testemunhas para provar sua inocência e o magistrado do caso, com receio de violar a garantia de ampla defesa do réu, mas enraivecido pelo que aparenta ser uma atitude protelatória, decide, à margem da lei, que o réu solto será obrigado a acompanhar a oitiva de cada uma das 87 testemunhas arroladas; esse exemplo absolutamente fictício traz violações de ordem motivacional, visto que decidida contra legem, e postural, pois dá sinais de certo dissabor com a atitude defensiva, incompatível com a postura sóbria que o julgador precisa sustentar.
O que defendo aqui, em outras palavras, é a aplicação do provérbio “à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”, ou seja, não basta que o juiz seja imparcial – muitas vezes em seu âmago ele verdadeiramente crê que está sendo! – ele precisa, muito mais, parecer imparcial! Ou, ainda, pela total impossibilidade de fiscalizar a psique do julgador só é possível exercer algum controle pelo que ele exterioriza, tanto em suas decisões como em seu comportamento.
O que se percebe, entretanto, é um grande descaso com a garantia da imparcialidade judicial pelos tribunais superiores; são tribunais que chegam ao disparate de decidir que “em que pese restar comprovado que o magistrado agiu com excesso, isso por si só não justifica a quebra de imparcialidade judicial”. Essa frase traz um oximoro gritante, se o juiz agiu com excesso reconhecido institucionalmente sua imparcialidade não tem como se manter!
É possível que o julgador tenha, em seus acessos ou arroubos, agido com a melhor das intenções, movido pelo interesse público, pela promoção da justiça, pela “modernização da lei”, não interessa – a imparcialidade é como o cristal, quebra-se facilmente e jamais se restaura à sua situação original.
Tal trato certamente não imunizaria o Sr. Gilmar Mendes das acusações da “torcida enraivecida”, esta sempre esbravejará quando seu time perder, no entanto o maior rigor quanto à linguagem e postura judiciais evitam suspeitas fundadas de parcialidade, mancha indelével em qualquer processo judicial.
Notas e Referências:
[1] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 3. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
[2] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 191.
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