O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe decidir sobre várias questões especialmente relacionadas no art. 3º-B do Código de Processo Penal.
Efetivamente, a figura do juiz das garantias foi trazida à legislação brasileira pela Lei n. 13.964/19, denominada Lei Anticrime, com o propósito de reafirmar e consolidar o sistema acusatório no processo penal brasileiro, no qual são vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
A ideia do legislador foi a de reforçar a imparcialidade do julgador, fazendo com que o juiz que atue na fase pré-processual, decidindo sobre questões relativas à investigação criminal (prisão preventiva, busca e apreensão, bloqueio de bens, quebra de sigilos etc), não atue na fase processual, sepultando a figura do juiz protagonista que, antes da Lei Anticrime, desempenhava ambas as funções, atuando em ambas as fases da persecução penal.
Ocorre que, tão logo foi sancionada a Lei n. 13.964/19, ações aportaram ao Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade de alguns dispositivos da nova lei, dentre eles os que tratavam da figura do juiz das garantias.
Naquela oportunidade, o Ministro Luiz Fux, então presidente do Supremo Tribunal Federal, respondendo pelo plantão judicial no período de recesso do final de 2019 e início de 2020, suspendeu cautelarmente a implantação do juiz das garantias, o que perdurou até recentemente, quando as ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305 foram julgadas pelo pleno da Corte.
Assim foi que, na sessão de 23 de agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a alteração no Código de Processo Penal que instituiu o juiz das garantias é constitucional. Ficou estabelecido que a regra é de aplicação obrigatória, cabendo aos estados, ao Distrito Federal e à União definir o formato em suas respectivas esferas. Foi dado o prazo de 12 (doze) meses, a partir da publicação da ata de julgamento, prorrogável por outros 12 (doze), para que leis e regulamentos dos tribunais sejam alterados para permitir a implementação do novo sistema a partir de diretrizes fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, a pretexto de dar interpretação conforme a Constituição a vários dispositivos questionados nas ADIs, acabou por modificar, em considerável medida, institutos que haviam sido aprovados pelo Congresso Nacional e sancionados pelo Presidente da República, integrando, como dissemos acima, a denominada Lei Anticrime. O Supremo Tribunal Federal acabou dando uma conformação diferente ao juiz das garantias, um tanto afastada dos moldes originais previstos pela Lei n. 13.964/19.
Um dos primeiros dispositivos adaptados pelo Supremo Tribunal Federal foi o art. 3º-A, que reafirmava a estrutura acusatória do processo penal brasileiro e vedava a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. De acordo com a decisão do STF, o juiz pode, pontualmente, nos limites legalmente autorizados, determinar a realização de diligências suplementares, para o fim de dirimir dúvida sobre questão relevante para o julgamento do mérito. De certa forma, a referida Corte mitigou, como já vinham fazendo os tribunais, o sistema acusatório, permitindo ao magistrado se imiscuir na produção de provas.
Especificamente com relação ao juiz das garantias, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do inciso XIV do art. 3º-B do CPP, assentando que a competência do juiz das garantias cessa com o oferecimento da denúncia e não mais com o recebimento, como constava originariamente do dispositivo mencionado e de outros correlatos. Nesse sentido, foi declarada também a inconstitucionalidade da expressão “recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código” contida na segunda parte do “caput”, do art. 3º-C do CPP, deixando assentado, ainda uma vez, que a competência do juiz das garantias cessa com o oferecimento da denúncia. Em consequência, na decisão também foi declarada a inconstitucionalidade do termo “recebida” contido no § 1º do art. 3º-C do CPP, ficando assentado que, oferecida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento, juiz esse que deverá, ainda, reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias.
Pela redação original dos §§ 3º e 4º do art. 3º-C do CPP, os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficariam acautelados na secretaria do respectivo juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, com amplo acesso, e não seriam apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deveriam ser remetidos para apensamento em apartado. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade dos referidos parágrafos, atribuindo-lhes interpretação conforme para entender que os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias serão remetidos ao juiz da instrução e julgamento. Portanto, não mais ficarão acautelados na secretaria do juízo das garantias.
Outro ponto extremamente importante da decisão do Supremo Tribunal Federal, foi atribuir interpretação conforme à primeira parte do “caput” do art. 3º-C do CPP, para esclarecer que as normas relativas ao juiz das garantias não se aplicam às seguintes situações: a) processos de competência originária dos tribunais, os quais são regidos pela Lei nº 8.038/90; b) processos de competência do tribunal do júri; c) casos de violência doméstica e familiar; e d) infrações penais de menor potencial ofensivo.
Mas por qual razão as normas relativas ao juiz das garantias não se aplicam às situações acima mencionadas?
Nos processos de competência originária do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, embora sejam regidos pela Lei n. 8.038/90, a nosso ver não se justifica a exclusão do juiz das garantias. Não obstante o julgamento seja feito pelo colegiado, o que se tem visto na prática dos tribunais superiores é um sem-número de decisões monocráticas que, não raras vezes, até por permissivo regimental, fazem com que questões essenciais envolvendo fatos que lhe são submetidos à análise, sejam decididas pelo mesmo ministro que posteriormente participará do julgamento, até mesmo como relator e com votos condutores muitas vezes decisivos.
Com relação às infrações penais de menor potencial ofensivo, andou bem o Supremo Tribunal Federal, até porque já tinham sido elas excepcionadas pelo art. 3º-C do Código de Processo Penal, uma vez que o procedimento perante o Juizado Especial Criminal se orienta pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, propriedades que não se coadunam com a figura do juiz das garantias.
Com relação à exclusão do juiz das garantias do procedimento do Tribunal do Júri, entendemos que não andou bem a mais alta Corte, não obstante se argumente que nesse rito especial os julgadores (jurados) ficam afastados e não participam das decisões processuais, que ficam afetas a um juiz que não julga o mérito, o juiz presidente. Mas a questão não é bem assim. Não se pode esquecer que o procedimento do Júri é bifásico ou escalonado, sendo certo que, no “judicium accusationis”, o magistrado que atuou na fase pré-processual não está impedido de atuar na fase processual, enfrentando a análise de autoria e materialidade, fundamentais para que o fato possa ser enviado ao crivo do Conselho de Sentença. Diga-se, ademais, que, em havendo desclassificação da imputação de crime doloso contra a vida na fase de plenário, o feito é julgado pelo próprio juiz togado, que pode ter atuado também na fase pré-processual.
No mais, pela decisão do Supremo Tribunal Federal, restou também afastado o juiz das garantias dos casos de violência doméstica e familiar, sem justificativa plausível a nosso ver, mesmo que se sustente a incompatibilidade do novo instituto com a especialização dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (art. 34 da Lei n. 11.340/06). Vale lembrar que a vedação menciona genericamente “casos de violência doméstica e familiar”, os quais não se restringem apenas ao âmbito da Lei Maria da Penha, abarcando também as situações previstas no art. 129, § 9º, do Código Penal e na Lei n. 14.344/22 (Lei Henry Borel), que cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra criança e adolescente.
Por fim, o Supremo Tribunal Federal fez bem ao fixar uma regra de transição, devendo o juiz das garantias ser aplicado somente aos casos futuros, não retroagindo para alcançar os casos já em andamento. Decidiu a Corte que, “quanto às ações penais já instauradas no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais, a eficácia da lei não acarretará qualquer modificação do juízo competente.”
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