O inquérito secreto do STF e a ofensa à Convenção Americana de Direitos Humanos: a inconstitucionalidade do art. 46 do RISTF e a violação ao sistema acusatório

04/06/2020

Conforme já tivemos oportunidade de ressaltar em artigo anterior, publicado neste mesmo periódico, vivemos tempos sombrios no Brasil, com a volta da censura prévia, com o cerceamento da liberdade de manifestação do pensamento, com a intimidação ostensiva aos que ousam se expressar de maneira diversa e com o uso inescrupuloso do aparato do Estado para fazer calar a voz de uma sociedade que se encontra assombrada com o nível atingido pela corrupção, pelos desmandos, pelo abuso de autoridade e pelo silêncio constrangedor de algumas instituições que deveriam velar pela prevalência do Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, mais uma vez cabe lembrar que a liberdade de expressão exsurge como direito fundamental, corolário da dignidade humana, vindo expresso nos arts. 5º e 220 da Constituição Federal, vedada, inclusive, peremptoriamente, a censura prévia.

Daí porque se nos afigura absolutamente inconstitucional a instauração, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, do Inquérito 4781, conhecido como inquérito das “fake news”, investigatório iniciado pela Portaria GP 69, de 14.03.2019, sem objeto específico, sem vítima determinada, visando a apuração de fatos genéricos e flagrantemente violador do sistema acusatório vigente no Brasil após a Constituição de 1988.

Esse procedimento judicialiforme aberrante não indica quais seriam as “fake news” a ser investigadas e nem tampouco os veículos ou datas em que foram publicadas, usurpando atribuições constitucionais da polícia judiciária.

Como é cediço, o sistema acusatório se caracteriza pela separação entre o órgão que acusa e o órgão que julga. Esse sistema garante a imparcialidade do juiz, que não pode investigar e nem tampouco determinar a produção de nenhuma prova, atividade que fica reservada unicamente às partes. Deve o juiz ficar alheio à investigação e à coleta de prova.

O Inquérito 4781 foi instaurado com fundamento no art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que data de 1980, não tendo sido, nesse passo, recepcionado pela nova ordem constitucional instituída após 5 de outubro de 1988. O RISTF não é lei, mas ato normativo expedido pelo próprio Tribunal, não tendo o condão de se sobrepor ao Código de Processo Penal e à própria Constituição Federal.

A função de investigar não se insere na competência constitucional do Supremo Tribunal Federal (CF, artigo 102).

O referido art. 43 do RISTF se encontra no Capítulo VIII, que cuida “Da Polícia do Tribunal”, não se referindo, evidentemente, à atividade de polícia judiciária investigativa, mas ao poder de polícia relativo às medidas administrativas preventivas de manutenção da ordem no âmbito interno da Corte, à semelhança do que já prevê o art. 497 do Código de Processo Penal, conferindo ao juiz presidente do Tribunal do Júri o poder de “regular a polícia das sessões”, mandando prender os desobedientes e velando para que a sessão transcorra com normalidade.

Dispõe o art. 43 do RISTF:

“Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. (grifo nosso)

§1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.

§2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal.”

Ademais, ainda que se entendesse, em esforço hermenêutico flagrantemente exagerado, que o Presidente do Supremo Tribunal Federal teria, segundo a citada norma do regimento interno, o poder de polícia judiciária, investigativa, aí residiria a flagrante inconstitucionalidade do procedimento, em grave e evidente violação ao sistema acusatório e ao princípio do devido processo legal, este último vulnerado em seus desdobramentos de ampla defesa e contraditório, na medida em que vem sendo negado o acesso dos investigados e de seus advogados aos autos do inquérito “secreto”, em violação à Súmula Vinculante 14 do próprio Supremo Tribunal Federal e à prerrogativa prevista no art. 7º, XIII, da Lei 8.906/84 – Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil.

Some-se a isso que, no ano de 2019, a Procuradoria-Geral da República já havia requerido o arquivamento do esdrúxulo inquérito “secreto”, requerimento esse que foi rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal, em cristalina violação ao preceito constitucional do art. 129, I, que conferiu ao Ministério Público o monopólio da titularidade da ação penal.

Nesse sentido, vale lembrar parte da judiciosa decisão do Ministro Celso de Melo, nos autos da “Petição 8.803 – Distrito Federal”, publicada no DJe em 26.05.2020”:

“Não se pode desconhecer que o monopólio da titularidade da ação penal pública pertence ao Ministério Público, que age, nessa condição, com exclusividade, em nome do Estado. A ordem normativa instaurada no Brasil em 1988, formalmente plasmada na vigente Constituição da República, outorgou ao ‘Parquet’, entre as múltiplas e relevantes funções institucionais que lhe são inerentes, a de ‘promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei’ (CF, art. 129, inciso I – grifei), ressalvada a hipótese, que é excepcional, prevista no art. 5o, inciso LIX, da Carta Política. Essa cláusula de reserva, pertinente à titularidade da ação penal pública, apenas acentuou – desta vez no plano constitucional – a condição de “dominus litis” do Ministério Público, por ele sempre ostentada no regime anterior, não obstante as exceções legais então existentes.”

E prossegue o Ministro:

“Em consequência do monopólio constitucional do poder de agir outorgado ao Ministério Público em sede de infrações delituosas perseguíveis mediante ação penal de iniciativa pública, somente ao ‘Parquet’ – e ao ‘Parquet’ apenas – competem as prerrogativas de oferecer a denúncia e de propor o arquivamento de quaisquer peças de informação ou de inquérito policial, sempre que inviável a formação da ‘opinio delicti’. Mais do que isso, é importante ter sempre presente que não compete ao Poder Judiciário, em anômala substituição ao órgão estatal de acusação, avaliar se os elementos de informação veiculados em ‘notitia criminis’ revelam-se suficientes, ou não, para justificar a formação da ‘opinio delicti’ pelo ‘Parquet’ e para autorizar, em consequência, o oferecimento de denúncia, eis que ‘O sistema acusatório confere ao Ministério Público, exclusivamente, na ação penal pública, a formação da ‘opinio delicti’, separando a função de acusar daquela de julgar’ (RHC 120.379/RO, Rel. Min. LUIZ FUX – grifei). De igual modo, é inviável a requisição judicial para a instauração quer de inquérito policial (CPP, art. 5o, II), quer de procedimento de investigação penal pelo próprio Ministério Público (RE 593.727/MG, Red. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES), pois, em tais singulares hipóteses, já se delineia o entendimento da impossibilidade constitucional de o magistrado (ou o Tribunal) ordenar a abertura de procedimento investigatório, não importando se ‘ex officio’ ou mediante provocação de terceiro (o noticiante). (grifo nosso)

Constata-se, portanto, que o mencionado Inquérito 4781 se encontra, salvo melhor juízo, eivado de nulidade absoluta em sua origem, sendo latente a sua inconstitucionalidade, não havendo qualquer suporte legal, ético ou moral para sua manutenção, urgindo que o plenário da Corte se manifeste com a necessária celeridade, pondo cobro às violações aos direitos e garantias individuais previstos não apenas na Constituição Federal, mas também no art. 8º, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz:

“Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”

 

Imagem Ilustrativa do Post: Supremo Tribunal Federal // Foto de: Ronaldo SM  // Sem alterações

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