O desafio da autenticidade no constitucionalismo latino-americano  

21/09/2020

Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

A doutrina do Estado Constitucional é um produto das concepções políticas européias.[1] O modo como ele é difundido traz em si a concepção de ser ele mesmo, nas palavras de Carl Schmitt, o “portador de uma nova ordem espacial, interestatal e eurocêntrica”. Este autor, ao tratar do Direito Internacional, sustentou a formação de um nomos da terra, havendo assim uma ordenação do planeta, tendo como referência  a Europa, à medida que ela define e pauta a forma  Estado.[2] Em manifestação peculiar diz: “ao se contemplar essa nova ordem espacial da terra, torna-se visível que o Estado territorial soberano europeu (a palavra “Estado” tomada sempre em sentido histórico-concreto no período situado entre 1492 e 1890, aproximadamente) representa a única formação criadora de ordem naquele período”.[3] Sendo o Estado um conceito europeu, sua adoção universal determinaria a “concepção de linhas globais”, definindo uma ordenação mundial eurocêntrica, pautando a definição interna dos países em função do Direito das Gentes, estampando explicitamente a dominação europeia, como ocupação de um território livre:

mas o essencial e decisivo para os séculos seguintes foi o fato de que o novo mundo emergente não surgiu como novo inimigo, mas como espaço livre, uma área livre para ocupação e expansão europeia. Durante trezentos anos isso foi uma confirmação extraordinária da posição da Europa, tanto de centro da terra como de velho continente. (...) agora surgia uma luta intraeuropeia por esse Novo Mundo, a partir da qual  se originou uma nova ordem espacial.[4]

A importação de modelos constitucionais é expressão do “universalismo europeu”[5]. Diante da pretensão de ordenação mundial, através da adoção do modelo de Estado de Direito eurocêntrico, fator que é em si expressão da colonialidade da geopolítica, e que combina-se com outras expressões deste mesmo fenômeno, em especial a “imitação colonial”.

 

A autenticidade na Filosofia

Partindo filosofia de Martin Heidegger a autenticidade expressa uma dimensão importante da condição humana, afinal o Dasein é o único ente capaz de estabelecer a compreensão de sua inexprimível existência, essa compreensão é a sua condição.  Como isso se dá o movimento da dimensão ôntica para a dimensão ontológica, a pessoa (ser-aí) é capaz de dar um sentido aos demais entes e a ele próprio.

 Na acepção dada por Heidegger ser é a compreensão do ser. O humano se projeta no ser a medida que compreende que é, como decorrência da diferença ontológica entre ser e ente, que determina a cisão entre ser e existir. Como existir, ou seja, tomar consciência da sua condição no mundo em que é, é uma possibilidade unicamente dada ao ser humano, aí reside a sua possibilidade de autenticidade.

Somos e reagimos a partir do que vivemos. Vivemos o que somos o que vivemos. Nos tornamos o que vivemos, enfim, nos tornamos o que somos.  O processo é circular, não se pode determinar  um começo, há uma confluência entre o agir e o ser. O que se vive parte daquilo que se é, e o que se é parte do que se vive. A identidade de uma vida se forma através do próprio agir, e da forma de agir, diretamente. A verdade do que somos. É suspenso nesse jogo que o homem compreende-se em seu poder ser mais próprio.[6]

A autenticidade em um sentido existencial se funda na liberdade, entendida como ser-possível, ou seja, a abertura a todas as possibilidades.

Embora, Heidegger e depois Sartre abordem a questão da autenticidade como um conceito referente à existência individual, o pensar oriundo deste trabalho, levanta elementos da sobre a autenticidade que podem projetar outros planos e vivências. Autenticidade se firma como possibilidade de construção de um sentido próprio, tal sentido oriundo do desvelamento da condição de cada ente. A consolidação de uma ação autêntica também demandará refutação da má-fé, oriunda negação do seu ser em função daquilo que quer se apresentar.

Partindo destes elementos, a construção de uma nova semântica para Constitucionalismo latino-americano se assenta em uma narrativa política que reveja a relação entre o povo e as instituições, por meio de uma cidadania decorrente de uma nova subjetividade jurídica.

 

A construção da autenticidade constitucional latino-americana

A autenticidade constitucional é um desafio decorrente das dificuldades na formação de um pensamento tipicamente latino-americano. Ideais modernos que afirmavam a universalidade, neutralidade e atemporalidade do conhecimento fazem com que os trabalhos constitucionais na América Latina, estejam mais voltados para importação acrítica de ideias desenvolvidas principalmente na Europa, do que com a elaboração de um pensamento sobre direitos e política, atento ao seu contexto. Quando se trata deste tema é importante não desprezar exceções marcantes, a exemplo da carta constitucional do Haiti em 1805, que foi uma das primeiras a fazer um apelo democrático, abolindo expressamente a escravidão [7], ou a experiência mexicana que trouxe para o mundo a inclusão de direitos sociais nas constituições que até então tratavam unicamente dos direitos individuais.

Historicamente, a construção do Constitucionalismo latino-americano seguiu os moldes coloniais vigentes, contra os quais se estabeleceram ao longo da história, várias práticas de resistência. Dentro do paradigma da modernidade, o Constitucionalismo na América Latina, inobstante algumas conquistas populares, atuou fortemente como  estratégia de colonização e de coesão social elitista.

É possível ver, ao longo desta trajetória, elementos coloniais incidentes pela importação de modelos jurídicos e institucionais como forma de solução para as realidades locais, as quais jamais funcionaram satisfatoriamente em razão de um genético desajuste existencial. Neste processo também demarca-se o mimetismo de um modelo de cidadania orientado por um padrão liberal, pautado pelo individualismo possessivo, que atua na formatação dos conceitos mais centrais da ordenação política, como Povo, Cidadania e Estado. Sua manifestação tenta, a todo instante, ajustar  o modo de ser ameríndio e afroamericano, e suas sínteses antropológicas, a um padrão de direitos fundamentais eurocêntrico de pretensão universal.

Para a construção da ordem político-institucional importa-se o modelo europeu e norte-americano de soluções políticas, instituições, textos constitucionais e legais (...) o modelo é importado e adotado mais como fórmula mágica que como método autônomo e criativo de conhecimento e de ação. Não é a expressão real e orgânica de um processo e de forças sócio-econômicas internas, que tendam a um desenvolvimento capitalista independente e auto-sustentado. Não é também resultado nem fator das transformações sócio-econômicas, políticas e culturais que foram pré-requisitos e concomitantes do modelo importado em seus países de origem. No momento da incorporação daquele esquema, predominam na América latina os grupos, interesses e conteúdos tradicionais. Não existe uma burguesia capitalista de tipo clássico. As camadas médias são débeis e dependentes. As minorias populares estão submetidas a condições de exploração, atraso e marginalidade (sociopolítica e geográfica). [8]

A implantação de um modelo constitucional importado desde logo revelava seu descompasso com a realidade. Sobre este aspecto, Bautista Alberdi bem retrata esta incompatibilidade entre o ideário republicano constitucional do chamado “mundo civilizado”, e a “barbárie” da sociedade argentina e consequentemente latino-americana, no período de fundação estatal decorrente dos processos de independência.[9]Neste sentido, posto o conflito entre civilização e barbárie pautado pela afirmação de um modelo de sociedade e pela negação da submissão da diferença.

Partindo dos pressupostos expostos, a construção da ordem institucional política se deu de forma mimética,[10] assumida como prática reiterada na formação do Constitucionalismo. O arranjo produzido por meio da universal teoria política importada alavancou a profunda discordância entre Constituição e realidade, garantindo benefícios a uma pequena parcela que iria compor a cidadania e anulando a outra. O que se vislumbrava no que é denominado de “velho constitucionalismo” era uma retórica ideológica. Os direitos coletivos foram suprimidos por um normativismo-individualista calcado na propriedade. As lutas pela independência durante o século XIX deixaram pendente um ponto: a colonização da cultura jurídica nacional pela estrutura eurocêntrica.

           

Autenticidade e geocultura constitucional

Na busca pela configuração de um Constitucionalismo autêntico para nuestra américa é fundamental o seu engajamento a um pensamento popular; neste propósito, as reflexões de Rodolfo Kusch são importantes. Inicialmente na senda aberta pelo pensamento de Heidegger, Kusch vai afirmar que a inautencidade consiste em “conformarse con la utilidad del mundo. Lo auténtico, em cambio, es la procura de una verdad del ser detrás del telón de los utensílios. Pero al margen de esto se insite en que el existente, no obstante, prima la amanualidad y que éste no se salva de ello”. [11]

Em seguida, Kusch irá apresentar uma proposta de Geocultura como modo de pensar a realidade de forma autêntica. A Geocultura se origina da interpenetração entre geografia e cultura, ou seja, o pensamento se agrega ao solo, percebe o relevo social e político que o adota e o deforma. Para Kusch, o estar é metafisicamente anterior ao ser, seguindo a índole das línguas castelhana e portuguesa, que diferenciam vernaculamente ser de estar, cisão que muitas outras línguas não fazem. Assim, o verbo estar tem uma conotação circunstancial e situada (tanto temporal como localmente); já o verbo ser aponta para o essencial e o universalismo.  Ser e estar se diferenciam na medida que a condição temporal e a localização são dimensionadas pelo estar, enquanto que as construções identitárias e a entificação são conotações do ser. A unidade entre ser e estar deflagra, assim, a marcha existencial, “el estar aqui es prévio al ser alguien porque supone um estado de recolección, de crecimiento o acumulación y, por lo tanto, de ayuno de objetos e de elementos”. [12]

Um pensamento constitucional que opere metodologicamente através da “Fagocitação”, que significa a absorção ocidental em favor do "equilíbrio e reintegração de humano”, revela uma interação crucial, que possibilita a reconstrução dos processos culturais e de identidade que acontecem na América, nos quais deve ser inclusa a arquitetônica constitucional. Esta interação recodifica as possibilidades do acontecer histórico em uma proposta que seja analética, revelando uma exterioridade (divergente a toda ideia de superação ou síntese), capaz de constituir una entrada constitucional para a sabedoria andina e latino-americana.[13]

Na “Fagocitação” estão contidos elementos que reposicionam a experiência e a convivência com o popular, construindo canais para pensar os elementos que compõem o espírito latino-americano. Frente à “aculturação”, o exercício de “Fagocitação” devora e subverte a imposição identitária e cultural. É uma prática de resistência e manutenção, mas também de adaptação e acomodação; posteriormente, também se configura como um exercício criador, um exercício vital. A existência humana se desenrola entre o estar e o ser: é da percepção desse movimento que surge o “saber viver”. Saber viver é a percepção do “estar sendo”, o que acaba por levar a uma compreensão comunitária. [14]

Essas significativas lições de Kusch abrem caminho para a projeção constitucional das vivências encarnadas comunitariamente na América Latina, tanto como cultura, mas também como necessidades existenciais. Para isso, o constitucionalismo precisa converter-se em tradutor da sabedoria popular, a qual se forja pela renúncia ao mimetismo colonial e pelo enfrentamento do poder do capital.

 

Notas e Referências

[1]  Aponto de se afirmar que “a doutrina do Estado de Direito é provavelmente o patrimônio mais relevante que, hoje, nos inícios do terceiro milênio, a tradição política européia deixa em legado à cultura política mundial”. ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do estado de direito. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo. Estado de Direito: história,  teoria e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006,   P.51.

[2] SCHMITT, idem, p. 158

[3] SCHMITT, ibidem, p. 158

 

[4] SCHMITT, idem, p. 88.

[5] O universalismo europeu sustenta a ideia de que a tutela é uma forma de desenvolver povos atrasados, e de que o império das potências sobre o globo seria inevitável, assim sendo as outras nações não haveria escolha e deveriam submeter-se a elas. WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007.

[6] PIZZOLANTE, Romulo. A essência humana como conquista: o sentido da autenticidade em Martin Heidegger. São Paulo: Annablume, 2008, p. 111.

[7] VALDÉS, Ernesto Garzón. Constitución y democracia en América Latina. In: Anuario de derecho constitucional latinoamericano edición 2000. Buenos Aires: Fundación Konrad Adenauer, 2000, p. 56

[8]KAPLAN, Marcos. Formação do Estado nacional na América Latina. Tradução: Lygia Maria Baeta Neves. Rio de Janeiro: 1974, p.181.

[9]  “con tres millones de indígenas, cristianos y católicos no realizareis la república ciertamente. No realizareis tampoco con cuatro millones de españoles peninsulares, porque el español puro es incapaz de realizarla allá o acá. Si hemos de componer nuestra población para el sistema de gobierno; si ha de sernos más posible  hacer la población para el sistema proclamado que el sistema para población, es necesario fomentar en nuestro suelo la población anglosajona. Ella está identificada con el vapor, el comercio, La libertad y nos será imposible radicar estas cosas entre nosotros sin la cooperación de esta raza de progreso y civilización”. BAUTISTA ALBERDI, Juan. Bases y puntos de partida para a organización política de la republica Argentina. Buenos Aires: Estampa, 1982.  P. 180

[10]O processo de imitação institucional foi denunciado por autores como José Martí: “La incapacidad no está en el país naciente, que pide formas que se le acomoden y grandeza útil, sino en los que quieren regir pueblos originales, con leyes heredadas de cuatro siglos de práctica libre en lo Estados Unidos, de diecinueve siglos de monarquía en Francia. Con un decreto de Hamilton no se le para la pechada al potro del llanero. Con una frase de Sieyés no se desestanca la sangre cuajada de la raza india. A lo que es, allí donde se gobierna, hay que atender para gobernar bien; y el buen gobernante en América no es el que sabe como se gobierna el Alemán o el francés, sino el que sabe con qué elementos esta hecho su país, y comó puede ir guiándolos en junto, para llegar, por métodos e instituciones nacidas del país mismo, a aquel estado apetecible donde  cada hombre se conoce y ejerce (….) el espíritu del gobierno ha de ser el de país.(…) no hay batalla entre civilización y la barbarie, sino entre la falsa erudición y la naturaleza”. . MARTÍ, José. Nuestra América. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 2003, p. 26.      

[11] KUSCH, Rodolfo. La negación en el pensamiento popular. Buenos Aires: la cuarenta, 2008, p.69.

[12]KUSCH, Rodolfo. América profunda. Biblos: Buenos Aires, 1999, p. 149.

[13] SCHERBOSKY, Federica. Geocultura: un aporte de Rodolfo Kusch para pensar la cultura desde una perspectiva intercultural. In: Pensamiento e Ideas, n° 7, agosto 2015, p. 46.

[14] KUSCH, Rodolfo. idem, p. 151.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: Dun.can // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/duncanh1/23620669668/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura