O Deputado e as margens da Constituição

20/02/2021

Coluna Por Supuesto

O tema político e jurídico da semana foi a prisão de deputado federal por conta de vídeo veiculado em plataforma digital no qual desfere impropérios e ameaças contra o STF e seus Ministros, clamando ainda pelo retorno do Ato Institucional N. 5, de triste recordação para os brasileiros.  

Desde o começo, no STF e até na sessão da Câmara que manteve sua prisão, a defesa do deputado pautou três questões consignadas numa nota pública: a) a prisão é um ataque violento à imunidade material, à liberdade de expressão e aos princípios que regem o processo penal; b) os fatos que embasaram a prisão não configuram crime, porque acobertados pela imunidade material; c) não houve estado de flagrância dos crimes teoricamente praticados pelo deputado. A nota da defesa conclui dizendo que se trata de prisão de “teor político”.  

Vamos com calma e por partes: já se tem um conhecimento relativamente amplo em nosso meio sobre o conteúdo jurídico da imunidade material. Não constitui uma novidade o entendimento jurisprudencial que relativiza essa prerrogativa  em casos em que o discurso de ódio, as ofensas, ou, como diria em um voto sobre o tema a Min. Rosa Weber, quando o achincalhamento ou a licenciosidade da fala ou o vernáculo deplorável abalam o respeito que se espera na sociedade civilizada e embala a exposição do orador (PET. 5.714. Agr. DJE 13.12.2017).

O artigo 53 da Constituição declara, com a redação da EC 35 de 2001, que Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.  Entretanto, além da decisão da Ministra, em outra oportunidade o STF, no ano passado, conectando a imunidade com o meio ou veículo através do qual se proferem as palavras ou opiniões e o exercício do mandato já expus que   (...) o fato de o parlamentar estar na Casa legislativa no momento em que proferiu as declarações não afasta a possibilidade de cometimento de crimes contra a honra, nos casos em que as ofensas são divulgadas pelo próprio parlamentar na Internet. (...) a inviolabilidade material somente abarca as declarações que apresentem nexo direto e evidente com o exercício das funções parlamentares. (...) O Parlamento é o local por excelência para o livre mercado de ideias – não para o livre mercado de ofensas. A liberdade de expressão política dos parlamentares, ainda que vigorosa, deve se manter nos limites da civilidade. Ninguém pode se escudar na inviolabilidade parlamentar para, sem vinculação com a função, agredir a dignidade alheia ou difundir discursos de ódio, violência e discriminação. (PET 7.174, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, j. 10-3-2020, 1ª T)

Parece-nos que sobre este ponto não existem maiores problemas. Os direitos fundamentais, que são o núcleo e finalidade do amparo constitucional, não são absolutos e sua interpretação/aplicação requer alto grau de tecnicidade e compreensão sistêmica do ordenamento na maior parte dos casos. As imunidades, materiais e formais, não são, nem de longe, direitos fundamentais. Constituem, como se sabe, prerrogativas decorrentes da função, isso inclui, logicamente, responsabilidade no exercício da atribuição que lhe dá origem. Só desta maneira a imunidade pode incidir. E a responsabilidade se afere a partir da conexão entre o mandato popular e a palavra, opinião ou voto do parlamentar.  

Logo, imaginemos que a decisão do STF restringisse a liberdade de expressão. Entra-se no campo dos limites aos contornos dessa liberdade dentro do contexto de construção da democracia, o que já tem ficado claro em decisões como a do paradigmático caso Ellwanger (HC 82424, Rel. para o Acórdão Min. Mauricio Correia), na qual se compreendem alguns dos elementos limitativos desse direito. A doutrina também acompanha a compreensão da necessidade de estabelecer um nexo entre liberdades e democracia. 

O STF confirmou sua jurisprudência, por isso, o placar 11 x 0 não pode ser chamado, como alguns tacharam de forma apressada, de “corporativo”. Na verdade, ratifica o entendimento já sedimentado e a nosso ver, justo.  

Sem dúvida a questão que merece maior atenção está no campo da imunidade formal, isto é: o consignado no parágrafo 2º do artigo 53, Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”

Há que ter em conta, pela leitura do texto normativo, que a prisão do parlamentar, desde a expedição do Diploma, é exceção e não regra. Portanto, devem ficar claros os requisitos excepcionais para sua verificação: reconhecimento de flagrância e se tratar de crime inafiançável.

No caso, por ordem do Min. Alexandre de Moraes, foi decretada a prisão em flagrância. A análise da decisão reporta ao fundamento fático: vídeo publicado pelo congressista na plataforma YouTube, que afetaria diretamente não só a honra e a segurança dos Ministros do STF, como também o exercício da judicatura, a independência do Poder Judiciário e a manutenção do Estado Democrático de Direito. Os fundamentos jurídicos foram, de um lado, a impossibilidade de propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito (arts. 5º, XLIV, e 34, III e IV, CF), bem como manifestação contrária às cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, CF), e, por outro lado, a prática de crimes contra a honra do Poder Judiciário e do STF, tipificados na Lei nº 7.170/83, especificamente, nos artigos 17, 18, 22, incisos I e IV, 23, incisos I, II e IV e 26.  Já no âmbito processual, a prisão foi decretada porque a flagrância decorre da consideração do Ministro de que a publicação de vídeo na internet contém substância jurídica suficiente para catalogar a conduta como crime permanente, autorizando-se a aplicação da norma do art. 53, § 2º, CF.

Na nossa percepção, o primeiro aspecto problemático diz respeito à insegurança jurídica que poderia ser gerada pelo argumento “ad hoc” de que a publicação de vídeo na internet representa crime permanente, com possibilidade também de flagrante permanente.

Sem embargo, não há dúvida de que houve uma agressão contra as pessoas dos Ministros individualmente e contra o STF como instituição no marco do Estado Democrático, qualquer que seja a avaliação que se tenha do funcionamento de um ou de outro. O pior é que este tipo de comportamentos agressivos se tornou comum, ordinário, mostrando parte do descalabro e precariedade aos quais chegamos, especialmente logo após o conluio no ano 2016 que feriu a normalidade constitucional do país.  

O deputado foi preso neste último 16/02 no âmbito do Inquérito 4.781/DF, conhecido como o inquérito das fake News que foi aberto pela própria Corte e está sob relatoria do Ministro. Ressalte-se, em elemento importante no caso, que não é a primeira vez que o deputado realiza o mesmo tipo de ato.  

Temos sustentado que a defesa das instituições democráticas, principalmente na forma da persecução penal, deveria ser deixada ao cargo dos órgãos constitucionais pertinentes e titulares diretos e expressos de tais funções, como o Ministério Público Federal e a Polícia Federal.  Veja-se como neste caso a persecução penal de ofício pelo STF, em momento político no qual inclusive alguns de seus Ministros debatem publicamente com generais do Exército, coloca a Corte Suprema (remarque-se: em decisões específicas e episódicas como a adotada) em posição delicada dentro do quadro estrutural do Estado.

Sempre corresse o risco de que o Direito e a Constituição se desloquem de seus âmbitos habituais de análise, interpretação e aplicação, para a arena do vale-tudo e do oportunismo que toma conta da política pura e simples no Brasil de hoje. Alertava, em ponto que no qual lhe assistia razão, Carl Schmitt que a Justiça chega sempre muito tarde no campo da política[1].

Resgate-se, entretanto, que no dia do julgamento que confirmou a decisão do Ministro A. de Moraes, o Ministério Público Federal denunciou ante o próprio STF ao mesmo deputado em outro inquérito, o de número 4828, conhecido como o inquérito dos “atos antidemocráticos”, aberto na Corte por requerimento da Procuradoria Geral da República.

Mas, voltando á questão que tem sido apontada como problemática, é dizer, a indagação sobre se a permanência de vídeo postado nas redes sociais origina a configuração de crime permanente, é dizer, se existiu a condição de flagrância, parece pertinente lembrar que a flagrância não pode se limitar a uma hipótese, talvez a mais conhecida, da flagrância em sentido estrito, situação na qual a pessoa é privada da liberdade no momento em que se encontra realizando a conduta.

Existem outras possibilidades como a “flagrância por extensão”, é dizer, quando a pessoa é privada da liberdade imediatamente após a conduta, como resultado de uma perseguição ou de ser apontada de fato que ocorreu imediatamente, ou porque detectada realizando o ato por meios de vigilância e capturada logo depois. E, existe, finalmente, o “flagrante inferido”, situação na qual a pessoa é capturada com objetos ou instrumentos ou no veículo utilizado para a fuga, e então se infere, razoavelmente, que a pessoa praticou a conduta. Na América Latina, terreno que sempre é matéria de exame nesta coluna, a jurisprudência constitucional ressalta sempre que, apesar de se aceitar a reserva judicial na primeira ordem, a pessoa deve ser colocada à disposição do juiz competente no menor tempo possível para que sejam verificadas as condições da captura. [2]

No caso em pauta não se trata de verificar se o vídeo veiculado, que retrata a conduta, permanece ou não postado no tempo e então isso a torna perpétua. O que configura o flagrante é a concomitância entre a veiculação, na qual aparece claramente o autor praticando a conduta típica, e a percepção imediata da autoridade sobre o dano que está sendo ocasionado. A questão se agrava pelo fato de que a mesma pessoa reiteradamente praticou ou mesmo ato, com similar conteúdo e no mesmo tom desafiador.

Como expõe Clarión Olmedo na vizinha Argentina, do que se trata é de evitar que se persista no delito, que se agravem as consequências da conduta realizada, que a pessoa suspeita elimine as provas mais eloquentes ou prevenir a fuga. [3]

Há uma questão que não pode ser esquecida: a Lei 7.170, de 1973, que com anterioridade à Constituição define os chamados “Crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social (...)” e embasa a prisão, já deveria ter sofrido o rigor de ADPF para verificar sua compatibilidade com a Carta de 1988.

Certo é que no Brasil o abandono dos pressupostos constitucionais mais elementares pelo Executivo Federal, aliado a uma série de fatores cumulativos – dentre outros, as indecisões, incapacidade e apequenamento do Legislativo para deflagrar o impeachment presidencial, questão que parece definitivamente arquivada ainda que exista mais de um requisito  jurídico suficiente para tanto; a sombra constante de uma filosofia armígera no cenário institucional; as contínuas pressões sobre o judiciário e, especialmente, sobre os Ministros e o coletivo do STF; desde logo, à degradação da democracia e dos rituais processuais arquitetados para a defesa dos direitos fundamentais das pessoas no marco da tristemente célebre operação lava-jato  -   se manifestam claramente na sensação de impunidade com a qual pretendem atuar, tanto algumas pessoas que no cotidiano das ruas se juntam a magistrados e outros agentes públicos que simplesmente não aceitam usar máscara no meio da pandemia, até a deputados federais, alguns franzinos e outros marombados, que acreditam poder dizer o que bem entendem que devem dizer com relação a qualquer instituição.

Algumas procuram os holofotes, acreditando serem fiéis escudeiros do interesse popular na democracia representativa. Devem ser considerados à margem da Constituição e das leis, por supuesto.  

 

Notas e Referências

[1] Conferir La defensa de la Constitución. Barcelona: Labor, 1931, p. 45.

[2] Corte Constitucional de Colômbia. Sentença C-303-2019.

[3] Jorge Claría Olmedo. Derecho Procesal Penal. Tomo III. Rubinzal Culzoni. 1998. P. 367.  

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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