O defensor-hermes e amicus communitas: O 4 de junho e a representação democrática dos necessitados de inclusão discursiva – Por Daniel Gerhard e Maurilio Casas Maia

06/06/2015

E aqueles que foram vistos dançando

foram julgados insanos

por aqueles que não podiam escutar a música”.

Friedrich Nietzsche

O dia 4 de junho tem especial importância para a democracia social, jurídica e política do Brasil. Foi nessa data que, em 2014, aprovou-se a EC n. 80, com a promessa de garantia de voz jurídico-processual e sociopolítica a partir da presença de – ao menos –, um defensor público por comarca no Brasil. A referida EC veio exatamente para permitir que nos mais distantes e isolados rincões brasileiros, o cidadão tenha voz em ampla defesa no cenário processual e possua ainda um argumentar coletivo quanto às necessidades político-jurídicas junto ao poder público. A supracitada EC aportou quase como um presente pelo dia 19 de maio – dedicado à memória de Santo Ivo, padroeiro dos defensores públicos e da advocacia, mormente a advocacia pro bono –, que é oficialmente, o dia nacional do defensor público, conforme registra a Lei Federal nº. 10.448, de 9 de maio de 2002.

E é por esse supracitado somatório de eventos inspiradores da expansão democrática que se busca motivação e fundamento primeiro para tratar do papel político-jurídico do Defensor-Hermes, papel constitucional ainda desconhecido da maioria dos operadores do direito quando se trata do Estado Defensor.

O deus grego Hermes – identificado como Mercúrio da mitologia romana –, é apresentado como filho de Zeus e Maia, sendo considerado o protetor dos comerciantes, ladrões e viajantes. Hermes é ainda bastante retratado como o mensageiro de Zeus, com passagem livre tanto ao inferno, como ao Olimpo. Portanto, Hermes era uma ponte entre realidades distintas. Hermes conectava o inferno ao reino dos deuses. Com passagem garantida, levava as mensagens a cada um dos cenários, traduzindo-as com fidelidade – marca certeira do legítimo comunicador.

Com efeito, o defensor público possui missão semelhante à tarefa de Hermes: levar mensagens entre realidades diferentes, aparentemente distantes e com linguagens diferentes. É assim, portanto, que o defensor público recebe os clamores das comunidades mais estigmatizadas socialmente – v.g., as comunidades dos presídios, das favelas, dos ocupantes irregulares de propriedades –, e a traduz para os tribunais, realizando também o caminho de volta. Trata-se de via de mão dupla.

Longe da abstração e imensidão que é a sociedade, é na concreta comunidade o defensor público deve exercer sua maior tarefa. Deve se aproximar para ouvi-la, para entender os clamores comunitários e, dessa forma, representá-la perante o poder público e, se for preciso, juntos às instâncias judiciárias.

É o óbvio, o mensageiro oferece seu serviço, emprestando também sua movimentação e comunicabilidade para dar voz à comunidade.

O defensor público é assemelhado ao mensageiro-deus Hermes. Sim. É, portanto, também protetor dos ladrões. Não de seus atos ilícitos, mas de sua dignidade a ser resgatada. É o mensageiro do pedido de perdão e de nova oportunidade. O Defensor-Hermes é ainda o porta-voz das comunidades esquecidas e excluídas da visibilidade social, cabendo-lhe representar os interesses que mais ninguém almeja defender. É, por assim dizer, o amicus communitas, o amigo das comunidades junto aos tribunais e aos palcos de exercício do poder, garantindo-se representação os interesses rejeitados.

O defensor não se põe no status de amicus curiae ou, ao menos, não somente enquanto tal. Para ser mensageiro da comunidade junto aos tribunais é necessário, antes de tudo, ser amicus communitas. Aí sim, o trânsito entre a comunidade e os tribunais ocorrerá eficazmente.

É o Defensor-Hermes, o mensageiro, o garantidor da representatividade de interesses minoritários e renegados. Sem o mensageiro, tais interesses restariam esquecidos e a legitimidade democrática do poder julgador seria inevitavelmente reduzida e a democracia seria mitigada.

Aos tribunais que fecham suas portas ao mensageiro amicus communitas, restará o lamento da perda de legitimidade pelo espancamento da democracia representativa nos respectivos espaços jurisdicionais. Nesse contexto, o interesse institucional da Defensoria Pública (Constituição, art. 134) é garantir representatividade no cenário jurídico-politico a toda sorte de necessitados, sejam estes indivíduos ou coletividades.

Em outras palavras, a vocação defensorial é contramajoritária e de reforço democrático. Trata-se de impedir que a voz da sociedade, com sua maioria dominante, sufoque os interesses e os direitos fundamentais das comunidades minoritárias e do indivíduo injustamente afrontado em seus direitos fundamentais seja pelo discurso do ódio ou do medo.

Para o trânsito seguro entre mundos tão distintos, o mensageiro necessita de garantias –constitucionalmente lhe foi concedida a irredutibilidade de subsídios e a inamovibilidade típica dos magistrados (WEBER, 2011, p. 89), mas olvidou-se a tão importante vitaliciedade fortalecedora da autonomia e independência funcional ao Defensor-Hermes, questão carecedora de correção para efetiva isonomia entre as carreiras jurídico-processuais nacionalizadas e interiorizadas (MAIA, 2015).

O papel do Defensor-Hermes é ainda desafiado pelo desconhecimento do seu legítimo papel de, enquanto função estatal, democratizar as instâncias que debatem o exercício do poder e garantir representatividade na tutela dos direitos fundamentais de minorias esquecidas pelo próprio poder.

A legitimidade interventiva do amicus communitas nos processos judiciários ainda é incipiente e alvo de construção diária. Por óbvio, a mensagem só pode ser fornecida após ser recebida, sendo o contato “defensor-comunidade” uma condictio sine qua non para que o Estado Defensor exerça o contato com as esferas de poder (“defensor-poder público”; “defensor-Judiciário”; “defensor-agente econômico”). Ora, como construir as trilhas missionárias do Defensor-Hermes se ainda não se garantiu a estruturação necessária para que mensageiro exerça seu caro mister?

O Defensor-Hermes, portanto, é o custös plebis (ZUFELATO, 2013, p. 304) e o custös vulnerabilis (MAIA, 2014), mas é ainda o amicus communitas garantidor de representatividade, pluralismo e democracia nas instâncias de debate público para o exercício do poder. Assim, o amicus communitas é condição de possibilidade para efetivação de uma democracia efetivamente constitucionalizada – como bem declarou o jurista Lenio Streck em entrevista publicada no site Consultor Jurídico em 10 de agosto de 2014: “A Defensoria é a condição de possibilidade em um país de modernidade tardia para dar um mínimo de democracia e Justiça à essa população imensa, que, historicamente, ficou de fora do butim social”.

Com efeito, o amicus communitas almeja efetivar inclusão democrática aos necessitados de representação político-jurídica. O Defensor-Hermes é representação instrumental no jogo discursivo do direito. Ao defender por legitimidade extraordinária a comunidade, a Defensoria Pública não falará somente por seu interesse institucional e muito menos falará pela Lei – tal imprescindível missão foi reservada ao Ministério Público. O Estado Defensor falará, na verdade, pelos necessitados de inclusão discursiva. Trata-se de ser a voz da comunidade esquecida ou do cidadão cuja maioria deseja reduzir a pó seus direitos fundamentais em nome da vingança, do temor ou do espetáculo. É na verdade, além de tudo, uma legitimidade transindividual que parte do individual ao coletivo, nas sempre preciosas lições de Amélia Soares da Rocha (2013, p. 72) – autora essa que bem relembrou Friedrich Nietzsche em frase perfeitamente direcionável para quem tem dificuldade de visualizar a Defensoria Pública enquanto contrapoder (como salientou Amilton Bueno de Carvalho, com lastro em Daniel Lozoya) jurídico-político: “E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”.

Enfim, a comunidade deve contar cada vez mais com seu mensageiro, o qual deve possuir plenas garantias de caminho aberto para todas as instâncias que debatem discursivamente o exercício do poder. Esse mensageiro que é o Defensor-Hermes, o Amicus Communitas: o porta-voz e o representante de muitos dos necessitados de inclusão na democracia discursiva.


Notas e Referências:

CARVALHO, Amilton Bueno. Defensoria Pública: entre o velho e o novo. Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/defensoria-publica-entre-o-velho-e-o-novo-por-amilton/ >. Acesso em: 4 Jun. 2015.

Gerhard, Daniel. Santana Filho, Edilson. Maia, Maurilio Casas. Defensoria Pública e legitimidade coletiva: Amicus Communitas e Custös Vulnerabilis. [artigo ainda não publicado].

Kury, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. 8ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

MAIA, Maurilio Casas. Custos Vulnerabilis constitucional: o Estado Defensor entre o REsp nº 1.192.577-RS e a PEC nº 4/14. Revista Jurídica Consulex. Brasília, ano XVIII, nº 417, jun. 2014, p. 55-57.

_____. Luigi Ferrajoli e o Estado Defensor enquanto magistratura postulante e Custos Vulnerabilis. Revista Jurídica Consulex, Brasília, Ano XVIII, Vol. 425, Out. 2014, p. 56-58.

_____. Simetria Constitucional entre carreiras jurídico-processuais nacionalizadas e interiorizadas: os debates sobre equiparação entre judicatura, Ministério Público e Defensoria Pública. Revista Jurídica Consulex, Brasília, Ano XIX, v. 435, Mar. 2015, p. 60-63.

ROCHA, Amélia Soares da. Defensoria Pública: fundamentos, organização e funcionamento. São Paulo: Atlas, 2013.

Streck, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. 18ª ed. tradução de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira Mota. São Paulo: Cultrix, 2011.

Zufelato, Camilo. A participação da Defensoria Pública nos processos coletivos de hipossuficientes: da legitimidade ativa à intervenção ad coadjuvandum. In: Ré, Aluísio Iunes Monti Ruggeri. Temas aprofundados de Defensoria Pública. V. 2. Salvador: Jus Podivm, 2013, p. 303-332.                        


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