A Lei n. 11.101/05 (Lei de Falências) contempla a interessante figura penal da fraude a credores, um dos ilícitos que sofreu parcial alteração pela Lei n. 14.112/20.
Dispõe o artigo 168 da Lei de Falências:
“Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem.
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.”
Essa figura típica, a bem da verdade, já se encontrava prevista, com outros contornos, nos arts. 187 e 188 do Decreto-Lei n. 7.661/45 (antiga Lei de Falências).
Vale ressaltar que os crimes falimentares têm em comum o mesmo objeto jurídico, que é justamente a proteção ao crédito público. Há, entretanto, crimes falimentares impróprios, que podem ser praticados por pessoas diversas do devedor, em conexão com a falência ou com a recuperação judicial ou extrajudicial. Nesse caso, pode-se afirmar ser o crime falimentar pluriobjetivo, mesclando a proteção aos bens jurídicos fé pública, comércio e economia, administração da justiça, propriedade etc.
No crime de fraude a credores, o sujeito ativo é o devedor ou falido que pratique atos fraudulentos antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial. O § 3º refere-se ainda ao concurso de pessoas, adotando a Teoria Unitária (também chamada de igualitária ou monista), determinando a sujeição às mesmas penas os contadores, técnicos contábeis, auditores e outros profissionais que, de qualquer modo, concorrerem para as condutas criminosas descritas na medida de sua culpabilidade.
Sujeito passivo é o credor que sofre ou possa sofrer prejuízo com a prática da conduta.
A conduta típica vem expressa pelo verbo “praticar”, que significa realizar, executar. A conduta deve referir-se a ato fraudulento, de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores. Na legislação anterior, esse crime era denominado falência fraudulenta.
A Lei n. 14.112/20 acrescentou o art. 6º-A à Lei de Falências, vedando expressamente ao devedor, até a aprovação do plano de recuperação judicial, a distribuição de lucros ou dividendos a sócios e acionistas, sob pena de responder pelo art. 168, ora em comento.
Conforme primorosa lição de Manoel Pedro Pimentel (Legislação penal especial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 116-117), “a fraude é a simulação posta a serviço do engano. De um recurso natural, que originariamente era, provendo as necessidades de seres vivos, converteu-se em arma perigosa da malícia quando empregada pelo homem para enganar o semelhante. O dano resultante dá a medida da fraude e clama, em certos casos, pela defesa dos bens ou interesses tutelados através de enérgicas medidas penais”.
No caso do artigo em análise, a fraude é valorada como danosa ou perigosa, idônea a causar prejuízo. Trata-se, portanto, de crime de perigo e de dano, conforme resulte ou possa resultar prejuízo aos credores.
A “vantagem indevida” a que se refere o dispositivo, é somente de natureza econômica ou traduzível em valor econômico, contrária ao direito.
A conduta danosa recai sobre o crédito, concretamente considerado, não obstante a variedade do “modus operandi”.
Trata-se de crime doloso. O dolo, no caso, vem caracterizado pela vontade livre e consciente do devedor ou falido de praticar ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores. O elemento subjetivo específico vem retratado pela expressão “com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem”. Nesse caso, a figura típica exige um particular elemento subjetivo para a sua integração, consistente em determinada finalidade. O fato típico, portanto, somente estará completo se estiver presente o particular elemento subjetivo.
A consumação ocorre com a prática do ato fraudulento, de que resulte (crime de dano) ou possa resultar (crime de perigo) prejuízo aos credores, independentemente da efetiva obtenção ou manutenção da vantagem indevida para si ou para outrem. Trata-se de crime formal. A consumação ocorre também com a distribuição de lucros ou dividendos a sócios ou acionistas antes da aprovação do plano de recuperação judicial. A tentativa é admissível, se fracionável o “iter criminis”.
Merece destaque a necessidade, para a configuração do crime, da condição objetiva de punibilidade. Segundo expressamente dispõe o art. 180 da Lei de Falências, a sentença que decreta a falência, concede a recuperação judicial ou extrajudicial é condição objetiva de punibilidade das infrações penais descritas na lei. Portanto, a chamada sentença declaratória de falência (que apresenta também caráter constitutivo) e a sentença que concede a recuperação judicial e extrajudicial conferem existência jurídica aos crimes falimentares, convertendo-se em condição objetiva de punibilidade.
O § 1º prevê causa de aumento de pena 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se o agente elabora escrituração contábil ou balanço com dados inexatos; omite, na escrituração contábil ou no balanço, lançamento que deles deveria constar, ou altera escrituração ou balanço verdadeiros; destrói, apaga ou corrompe dados contábeis ou negociais armazenados em computador ou sistema informatizado; simula a composição do capital social; ou ainda destrói, oculta ou inutiliza, total ou parcialmente, os documentos de escrituração contábil obrigatórios.
O § 2º prevê aumento de pena de 1/3 (um terço) até metade se o devedor manteve ou movimentou recursos ou valores paralelamente à contabilidade exigida pela legislação, inclusive na hipótese de violação do disposto no art. 6º-A.
Desde sua redação originária, a Lei n. 11.101/05 instituiu como causa de aumento de pena do crime de fraude a credores a conduta do devedor que, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação, manteve ou movimentou recursos ou valores.
Merece ser destacado, entretanto, que inexiste um crime autônomo de contabilidade paralela, ou seja, não constitui crime a manutenção, por si só, de contabilidade paralela pelo devedor, ou seja, a manutenção ou movimentação de recursos ou valores paralelamente à contabilidade exigida pela legislação, que, na linguagem popular, convencionou-se chamar de “caixa dois”. Advindo, entretanto, a sentença de quebra ou de concessão de recuperação judicial ou extrajudicial, surge a condição objetiva necessária à punibilidade dos crimes falimentares, aí sim punindo-se mais severamente o devedor que, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem, manteve contabilidade paralela, caracterizadora do ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores.
Na Lei n. 7.492/86, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, existe disposição semelhante, criminalizando a contabilidade paralela no art. 11. Caso a manutenção de contabilidade paralela tenha por finalidade a supressão ou redução de tributo ou contribuição social e qualquer acessório, poderá, em tese, estar tipificado crime contra a ordem tributária, previsto pela Lei n. 8.137/90.
Esse §2º, ora em comento, sofreu alteração em sua redação pela Lei n. 14.112/20, passando a prever a causa de aumento de pena de 1/3 (um terço) até a metade também para a hipótese de infração ao disposto no art. 6º-A da Lei de Falências, que veda ao devedor, até a aprovação do plano de recuperação judicial, a distribuição de lucros ou dividendos a sócios acionistas.
Por seu turno, o §3º tratou do concurso de pessoas, estabelecendo que, nas mesmas penas incidem os contadores, técnicos contábeis, auditores e outros profissionais que, de qualquer modo, concorrerem para as condutas criminosas descritas no artigo, na medida de sua culpabilidade.
Por fim, o §4º estabeleceu causa de redução ou substituição da pena. Tratando-se de falência de microempresa ou de empresa de pequeno porte, e não se constatando prática habitual de condutas fraudulentas por parte do falido, poderá o juiz reduzir a pena de reclusão de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) ou substituí-la pelas penas restritivas de direitos, pelas de perda de bens e valores ou pelas de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas.
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