O "crime do momento" é mesmo crime?

06/03/2017

Por Rubens Almeida Passos de Freitas e Gil Rafael Ribas – 06/03/2017

Com a popularização de aplicativos para celular e com a implementação da "Lei Seca", tornou-se comum a criação de grupos virtuais a fim de informar, em tempo real, sobre os locais onde estão sendo realizadas blitz de trânsito. Logo, surgiu a dúvida: é crime divulgar uma blitz? É crime divulgar a colocação de um radar?

Em caso recente, ocorrido no dia 30/01/17, a Polícia Militar de Lages/SC prendeu em flagrante uma motorista que, ao ser abordada, teria sido flagrada encaminhando mensagens através do aplicativo WhatsApp, avisando a um grupo sobre a realização de blitz. Deste forma, ela foi conduzida à Delegacia por, supostamente, ter praticado o crime previsto no art. 265 do Código Penal.[1]

Primeiramente, devemos analisar o artigo supracitado, que assim dispõe:

"Art. 265 - ATENTAR contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água, luz, força ou calor, ou qualquer outro de utilidade pública

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa".

Segundo o dicionário[2], “atentar” significa “cometer atentado contra algo ou alguém”, ou seja, praticar alguma conduta violenta, criminosa, contra alguém ou alguma coisa. No crime em análise, este ‘algo’ seria o funcionamento do serviço de água, luz, força, calor, ou outro serviço de utilidade pública.

Primeiramente, devemos observar que o crime previsto no artigo 265 do Código Penal está inserido no Capítulo “dos crimes contra a segurança dos meios de comunicação e transporte e outros serviços públicos” no título que protege a incolumidade pública e, portanto, a interpretação deve levar em consideração sua localização topográfica no Código, para que se possa extrair a intenção do legislador de proteger determinado bem jurídico, assim como escolher os parâmetros para utilização da interpretação analógica.

Embora a segurança pública possa ser considerada, para fins conceituais, um serviço de utilidade pública, parece não corresponder aos serviços que se pretendeu proteger no artigo 265 do Código Penal. Isto porque, a interpretação analógica, em matéria de tipicidade penal, deve sempre levar em consideração as elementares explícitas utilizadas antes da expressão genérica.

Quando analisamos os demais serviços protegidos expressamente no artigo 265 do CP, quais sejam: água, luz, força e calor, podemos entender que, quando o legislador incluiu a formula genérica outro serviço de utilidade pública quis proteger serviços análogos, como de gás, por exemplo. A interpretação analógica, por mais redundante que pareça, realiza a subsunção penal quando encontra elementos análogos aos insculpidos no tipo, ou seja, precisa haver semelhança, identidade entre as elementares expressas e a extensão genérica.

Com a devida vênia, não é o que ocorre no caso em questão. Isto porque, para que a conduta encontra amparo na lei penal, ela deve estar perfeitamente adequada ao dispositivo legal.  Neste mesmo sentido Rogério Greco ensina, de modo esclarecedor[3]:

"Quando afirmamos que só haverá tipicidade se houver adequação perfeita da conduta do agente ao modelo em abstrato previsto na lei penal (tipo), estamos querendo dizer que, por mais que seja parecida a conduta levada a efeito pelo agente com aquela descrita no tipo penal, se não houver um encaixe perfeito, não se pode falar em tipicidade".

Além disso, nos parece que transmitir uma mensagem, em um grupo de Whatsapp, não configura a prática de um ATENTADO contra o serviço de utilidade pública. Embora enviar a mensagem a outros motoristas tenha potencial de interferir negativamente na efetividade do serviço de fiscalização, avisar terceiros sobre a ocorrência da fiscalização não importa em atentado contra o serviço.

Perceba-se que o serviço continua sendo realizado normalmente, sem qualquer risco aos agentes policiais, ou mesmo aos equipamentos e materiais empregados. O que pode acontecer, como dito, é um resultado final inferior ao esperado, sem que haja, todavia, atentado contra o serviço em si, que se realiza por todo o período no qual o agente responsável tenha determinado.

Não se pretende aqui estimular a conduta, que é altamente reprovável, uma vez que desarticula as ações policiais que visam reduzir a criminalidade e apreender objetos ilícitos. Todavia, ao nosso entender, a conduta não encontra amparo no crime previsto no artigo 265 do Código Penal.

Não se esqueça ainda, que a pena prevista para o crime em análise, que é de 01 a 05 anos, e nos parece altamente desproporcional à conduta que se pretende coibir. A pena em análise é maior, por exemplo, do que as previstas para o crime de furto ou falso testemunho. E isto se deve ao fato de que o crime previsto no art. 265 do CP visa proteger, justamente, uma ação que atente, cause dano efetivo à prestação dos serviços ali elencados, e não reprimir a pessoa que avisou outras sobre a existência de uma blitz, sem praticar qualquer ação que prejudique a execução deste serviço.

Aliás, se tal conduta pode ser enquadrada no artigo 265 do Código Penal, o simples fato de avisar sobre uma blitz a um amigo (pessoalmente), ou sinalizar para outros motoristas que há um radar na estrada, por exemplo, também se enquadraria neste crime de atentar contra serviços públicos. Qual seria a diferença?

Em que pese a conduta possa ser considerada imoral, a polícia (leia-se Militar e Civil), o Ministério Público e o Poder Judiciário não podem buscar "dar um jeitinho" (autuando, indiciando, denunciando ou condenando) de buscar penalizar estes possíveis infratores por fato não previsto em lei. As condutas previstas no Código Penal são aquelas mais caras à sociedade e, para serem penalmente relevantes devem atentar contra o bem jurídico protegido no artigo penal. O direito penal é a o ramo do direito a ser utilizado em ultima ratio, e não em primeira, como muitos desejam.

Querer achar um jeito de criminalizar condutas não previstas na lei penal implica em cometer uma injustiça maior do que a justiça que se pretende preservar.


Notas e Referências:

[1] http://www.lagesdiario.com.br/2017/01/mulher-e-presa-em-flagrante-por-mandar-fotos-de-blitz-para-grupo-de-whatsapp.html

[2] https://www.dicio.com.br/atentado/

[3] Greco, Rogério. Curso de Direito Penal, 14ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, pg. 156.


Rubens Almeida Passos de Freitas. Rubens Almeida Passos de Freitas é Pós-Graduado em “Investigação, Constituição e Direito de Defesa” pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. Delegado Regional de Polícia Civil em Santa Catarina. . .


Gil Rafael Ribas. . Gil Rafael Ribas é Delegado de Polícia no Estado de Santa Catarina. Professor do Curso de Direito da Universidade do Contestado. Pós Graduado pela EMAGIS PR. Bacharel em Direito pela UEPG.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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