O CRIME DE VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL E A NOVA LEI 14.321/22

07/04/2022

O crime de violência institucional foi tipificado recentemente pela Lei n. 14.321, sancionada pelo Presidente da República em 31.03.2022 e publicada no DOU em 01.04.2022, inserindo o art. 15-A na Lei n. 13.869/19 – Lei de Abuso de Autoridade.

Trata-se de mais um desdobramento legislativo do “caso Mariana Ferrer”, que ganhou repercussão na imprensa e mídias eletrônicas após a modelo e blogueira relatar, em suas redes sociais, ter sido vítima de agressões sexuais e estupro praticado por um empresário, o qual, após ser processado pelo crime, veio a ser absolvido por falta de provas, sendo a sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Além da indignação pública provocada pelo caso, houve reação inclusive do Conselho Nacional de Justiça, que instaurou procedimento disciplinar contra o juiz do processo, após o vídeo da audiência ser publicado pelo portal de notícias “The Intercept Brasil”, mostrando cenas do magistrado permitindo que a vítima sofresse ataques do advogado de defesa do réu durante o julgamento.

Nesse aspecto, há pouco tempo, já veio a lume a Lei n. 14.245/21 (alcunhada de “Lei Mariana Ferrer”), que alterou dispositivos do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo. Foram inseridos no Código de Processo Penal os arts. 400-A e 474-A, que estabelecem a obrigatoriedade de todas as partes e demais sujeitos processuais presentes na audiência de instrução e julgamento, especialmente naquelas que apurem crimes contra a dignidade sexual, zelarem pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa. Ademais, deve o juiz garantir o cumprimento dessa determinação, sendo vedadas a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos, bem como a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Pela nova Lei n. 14.321/22, a Lei de Abuso de Autoridade passou a vigorar acrescida do art. 15-A, do seguinte teor:

“Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:

I - a situação de violência; ou

II - outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

§1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).

§2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.”

A ideia do legislador foi a de evitar e punir a vitimização secundária, também conhecida como revitimização ou sobrevitimização, processo emocional magistralmente estudado por Muñoz Conde[1], que consiste, basicamente, em sofrimento adicional causado à vítima por órgãos do Estado responsáveis pela persecução penal.

Por ter sido o novo tipo penal inserido na Lei de Abuso de Autoridade, evidentemente que os sujeitos ativos do crime somente podem ser os agentes públicos, assim considerados nos termos do art. 2º da lei. No caso específico do novo crime, são sujeitos ativos os agentes públicos envolvidos em todas as etapas da persecução penal, tais como delegados de polícia, membros do Ministério Público, magistrados, incluídos os policiais militares e civis nos atos iniciais de investigação, inclusive informal.

Ficam fora da incriminação os advogados que, no desempenho dos atos de advocacia defensiva, ocasionaram ou forem protagonistas de revitimizações a vítimas e a testemunhas de crimes violentos, o que, a nosso ver, enfraquece bastante a proteção que se pretendeu conferir aos sujeitos passivos do novo crime.

Vale lembrar, ainda, que, para que se configure qualquer dos crimes de abuso de autoridade tipificados pela Lei n. 13.869/19 – Lei de Abuso de Autoridade, inclusive o novo crime de violência institucional, há necessidade, além do dolo direto, de um especial fim de agir, devendo o agente público praticar as condutas típicas com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. São crimes de tendência intensificada, crimes de intenção ou crimes de tendência interna transcendente.

Ademais, o novo dispositivo penal peca pela utilização de expressões muito vagas, tais como “procedimentos desnecessários” e “situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização”, tornando o tipo demasiadamente aberto, o que é desaconselhável.

Vale lembrar que Lei de Abuso de Autoridade, no art. 1º, § 2º, tratou de ressalvar expressamente que “a divergência na interpretação da lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”, vedando o que se convencionou chamar de “crime de hermenêutica”, expressão cunhada pelo grande Rui Barbosa, na defesa que fez perante o Supremo Tribunal Federal do juiz municipal Alcides de Mendonça Lima, que, no início da República, se recusou a cumprir a Lei n. 10/1895, do Estado do Rio Grande do Sul, editada pelo governador Júlio de Castilhos. Esse dispositivo surgiu da necessidade de salvaguardar a autoridade, conferindo-lhe um mínimo de segurança jurídica para decidir, exercendo a atividade hermenêutica no caso concreto sem o receio de sofrer represálias e punições, ainda mais à vista de vários tipos penais que exigem como elemento normativo a infringência da lei. Trata-se de causa excludente da tipicidade, eis que a divergência na interpretação da lei ou na avaliação dos fatos e provas exclui o dolo caracterizador do crime de abuso de autoridade.

Por fim, deve ser ressaltado que o novo crime é de ação penal pública incondicionada, cabendo, ainda, ação penal privada subsidiária em caso de inércia do Ministério Público, nos termos do art. 3º, §1º, da Lei de Abuso de Autoridade.

Sendo crime de menor potencial ofensivo, a competência é do Juizado Especial Criminal (Lei n. 9.099/95), com as ressalvas da Súmula 536 do Superior Tribunal de Justiça, não sendo possível o acordo de não persecução penal em razão do disposto no art. 28-A, § 2º, I, do Código de Processo Penal.

 

Notas e Referências

[1] “Introducción a la Criminología y al Derecho Penal”. Valencia: Tirant lo Blanch. 1989.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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