O crime de omissão de socorro sempre suscitou intensos debates no Direito Penal, mormente no que diz respeito aos seus precisos contornos e às suas hipóteses de incidência.
Especificamente no que se refere à Lei nº 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro, o art. 304 dispõe:
“Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública:
Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave.
Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves.”
A objetividade jurídica do referido delito é a proteção da vida e da saúde da pessoa humana, por meio da tutela da segurança individual.
Sujeito ativo somente pode ser o condutor do veículo automotor envolvido no acidente com vítima, que não tenha agido com culpa. Cuida-se de crime próprio. Se o condutor tiver agido com culpa, estará configurada outra figura penal, que poderá ser homicídio culposo ou lesão corporal culposa, com o aumento de pena da omissão de socorro.
Sujeito passivo é a vítima do acidente de veículo automotor.
Trata-se de crime omissivo puro, já que a conduta típica é deixar de prestar imediato socorro, que tem como elemento subjetivo o dolo, consistente na vontade de não prestar assistência.
Constituem circunstâncias elementares do tipo a possibilidade de prestar assistência e também a ausência de justa causa por parte do agente (p. ex.: risco pessoal). Entretanto, em caso de impossibilidade de socorro ou de justa causa, existe a obrigação de pedir auxílio à autoridade pública, conforme determina a segunda parte do “caput” do artigo.
Nesse ponto, vale ressaltar que, envolvendo os crimes de trânsito, podem ocorrer três espécies de omissão de socorro:
A primeira espécie envolve o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, previsto no art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, ou o crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, previsto no art. 303 do mesmo diploma. Ocorre quando o condutor omitente é o causador do acidente (agiu com culpa), deixando de prestar socorro à vítima. Nesse caso, o agente não responderá pela omissão de socorro isoladamente, funcionando ela como causa de aumento de pena de pena de 1/3 (um terço) à metade nos crimes de homicídio culposo e lesão corporal culposa (art. 302, §1º, III, ou art. 303, §1º).
A segunda espécie constitui o crime de omissão de socorro do art. 304 do Código de Trânsito Brasileiro, objeto desse nosso estudo. Ocorre quando o condutor omitente não é o causador do acidente (não agiu com culpa), mas nele está envolvido. Nesse caso, o agente responderá apenas pelo crime de omissão de socorro do art. 304, isoladamente, não sendo responsabilizado pelo crime de trânsito de homicídio culposo ou lesão corporal culposa.
A terceira espécie é a omissão de socorro do art. 135 do Código Penal. Ocorre quando o omitente não é o causador do acidente e também nele não está envolvido. Nesse caso, o agente tem o dever genérico de assistência, o qual alcança qualquer pessoa que tenha presenciado o acidente de trânsito, embora não tenha dado causa a ele e nem tampouco esteja nele envolvida.
Sendo um crime doloso, a omissão de socorro prevista no art. 304 do Código de Trânsito Brasileiro se consuma com a mera omissão, independentemente de outro resultado. A tentativa não é admitida por se tratar de crime omissivo puro.
Há, entretanto, instigante celeuma surgida a partir do disposto no parágrafo único do art. 304, prevendo a criminalização do condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves.
Considerando que a objetividade jurídica do crime de omissão de socorro é a proteção da vida e da incolumidade física da pessoa, vítima de acidente de trânsito envolvendo veículo automotor, como justificar a existência do referido parágrafo único em relação à vítima com morte instantânea? O morto seria sujeito passivo do crime? Poderia se falar em crime impossível?
Evidentemente, buscou o legislador, com esta disposição, evitar que o agente envolvido em acidente deixasse de prestar assistência sob a alegação de que a vítima teve morte instantânea. Assim, impôs a lei a obrigação de socorrer a vítima, mesmo que esta esteja morta.
A nosso ver, neste caso de omissão de socorro, comprovada evidentemente e claramente a morte instantânea da vítima em razão do acidente, não restaria configurado o crime do art. 304 do Código de Trânsito Brasileiro, por constituir crime impossível (impropriedade absoluta do objeto – art. 17 do Código Penal), podendo o agente, quando muito, responder pelo delito do art. 305, caso se afaste do local do acidente para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída.
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