O CRIME DE DECRETAÇÃO ILEGAL DE RESTRIÇÃO DE LIBERDADE  

06/08/2020

O crime de decretação ilegal de restrição de liberdade foi introduzido pela Lei n. 13.869/19 – Nova Lei de Abuso de Autoridade, tendo como objetividade jurídica a tutela da Administração Pública e também o direito à liberdade de locomoção da pessoa, previsto no art. 5º, XV e LXI, da Constituição Federal. A dignidade da pessoa também pode ser inserida como bem jurídico tutelado pela norma.

É o teor do referido artigo:

“Art. 9º - Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais: 

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I - relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II - substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;

III - deferir liminar ou ordem de ‘habeas corpus’, quando manifestamente cabível.”

O revogado art. 350 do Código Penal já trazia disposição semelhante, ao punir com detenção de um mês a um ano as condutas de ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder. No parágrafo único, o revogado artigo ainda punia o funcionário que ilegalmente recebesse e recolhesse alguém a prisão, ou a estabelecimento destinado a execução de pena privativa de liberdade ou de medida de segurança; que prolongasse a execução de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de executar imediatamente a ordem de liberdade; que submetesse pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; e que efetuasse, com abuso de poder, qualquer diligência.

Também na antiga Lei n. 4.898/65 havia disposição semelhante no art. 4º, alínea “a”.

Esse art. 9º, entretanto, foi originariamente vetado pelo Presidente da República. Na ocasião, foram as seguintes as razões do veto:

“A propositura legislativa, ao dispor que se constitui crime ‘decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais’, gera insegurança jurídica por se tratar de tipo penal aberto e que comportam interpretação, o que poderia comprometer a independência do magistrado ao proferir a decisão pelo receio de criminalização da sua conduta.”

Posteriormente, o veto foi rejeitado pelo Congresso Nacional.

O grande desafio na aplicação do art. 9º da nova lei é justamente compatibilizar o respeito à independência de entendimento judicial, preservando a liberdade de decisão do magistrado, e o desencorajamento a prisões ilegais e postergações de atos essenciais à garantia da lei e da liberdade de locomoção do indivíduo.

Mais uma vez, a crítica que se faz ao dispositivo é pela utilização de termos vagos e genéricos, de arriscada amplitude, tais como “manifesta desconformidade”, “prazo razoável”, “manifestamente ilegal” e “manifestamente cabível”.

Daí porque o art. 1º, §2º, da citada lei deixa expresso que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”, vedando o que se convencionou chamar de “crime de hermenêutica”, expressão cunhada pelo grande Rui Barbosa, na defesa que fez perante o Supremo Tribunal Federal do juiz municipal Alcides de Mendonça Lima, que, no início da República, se recusou a cumprir a Lei n. 10/1895, do estado do Rio Grande do Sul, editada pelo governador Júlio de Castilhos.

Sujeito ativo do crime previsto no “caput” do art. 9º é somente aquele que tem atribuição ou competência para determinar medida de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais, tais como delegados, agentes de polícia, policiais militares e magistrados. Trata-se de crime próprio.

Inclusive, nesse sentido é o Enunciado 5 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União – CNPG e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal – GNCCRIM, que dispõe: “O sujeito ativo do art. 9º, ‘caput’, da Lei de Abuso de Autoridade, diferentemente do parágrafo único, não alcança somente autoridade judiciária. O verbo nuclear ‘decretar’ tem o sentido de determinar, decidir e ordenar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais.”

Já nas hipóteses do parágrafo único do art. 9º, o sujeito ativo somente pode ser a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de relaxar a prisão manifestamente ilegal; deixar de substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível; ou deixar de deferir liminar ou ordem de “habeas corpus”, quando manifestamente cabível.

Sujeito passivo é a pessoa em detrimento da qual foi decretada a medida de privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais. Secundariamente, é o Estado. Nas hipóteses do parágrafo único, além do Estado, a pessoa ilegalmente presa ou que faz jus a liberdade provisória ou medida cautelar diversa da prisão preventiva.

Com relação à conduta típica, vem expressa, no “caput”, pelo verbo “decretar”, que significa determinar, decidir, ordenar a medida privativa de liberdade.

O objeto da decretação ilegal é medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais. Essa privação de liberdade nada mais é que a prisão.

Prisão, como é cediço, é a supressão da liberdade individual, somente podendo ocorrer, no Brasil, por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente ou em flagrante delito.

Diz a Constituição Federal, no art. 5º, LXI, que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. No mesmo sentido, o art. 283, “caput”, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n. 13.964/19 – Lei Anticrime.

A conduta incriminada no parágrafo único do art. 9º é omissiva, caracterizada pelo verbo “deixar” e se referindo ao relaxamento da prisão ilegal, à substituição da prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível, e ao deferimento de liminar ou ordem de “habeas corpus”, quando manifestamente cabível.

Essa conduta já vinha prevista na revogada Lei nº 4.898/65, no art. 4º, alínea “d”.

Trata-se de crime omissivo próprio.

A utilização da expressão “prazo razoável” trouxe celeuma na doutrina pátria, fazendo com que os comentaristas da nova lei divergissem em praticamente todos os aspectos.

De início, deve-se ter em mente que não há um prazo padronizado em lei para a prática dos atos previstos no parágrafo único do art. 9º, devendo ser considerada cada hipótese concreta, dada a amplitude terminológica empregada pelo legislador.

Na modalidade do inciso I, há várias hipóteses em que a prisão pode ser considerada ilegal e demandar o relaxamento pela autoridade judiciária. Uma prisão preventiva pode ser manifestamente ilegal, decretada em desconformidade com o disposto nos arts. 311 a 316 do Código de Processo Penal. Se não for apontada a ilegalidade por quem de direito ou se um juízo “ad quem” dela não tomar conhecimento, não haverá relaxamento e a segregação ilegal perdurará além do “prazo razoável”. Inclusive, de acordo com o disposto no parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal, decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

Outrossim, a prisão em flagrante ilegal deve ser relaxada imediatamente após a apresentação do acusado ao juiz, na audiência de custódia, que deverá ser realizada no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão.

No caso de “habeas corpus”, o art. 660 do Código de Processo Penal prevê o prazo de 24 (vinte e quatro) horas para a decisão do juiz.

Alguns estudiosos sustentam que o “prazo razoável” seria o de 24 (vinte e quatro) horas, à vista do disposto no art. 800, III, do Código de Processo Penal. Outros divergem, alegando que o inciso III do mencionado dispositivo se refere a “despacho de expediente” e que o relaxamento de prisão ilegal, a substituição de prisão preventiva por medida cautelar diversa ou a concessão de liberdade provisória são decisões interlocutórias e deveriam se subordinar ao prazo de 5 (cinco) dias, de acordo com o disposto no inciso II do art. 800. Outros, ainda, se apóiam no art. 322, parágrafo único, do Código de Processo Penal, defendendo o prazo de 48 (quarenta e oito) horas como razoável.

Em suma, como afirmamos acima, não se deve estabelecer um prazo padronizado para a caracterização do crime omissivo de que ora se trata. Havendo prazo estabelecido em lei, deverá ele ser seguido estritamente pelo magistrado, sob pena de responsabilidade criminal. Não havendo prazo previsto em lei para a prática do ato, cada caso concreto deve ser analisado em sua especificidade, conferindo-se prudente interpretação à expressão “prazo razoável”, à luz da razoabilidade.

O elemento subjetivo é o dolo, não sendo prevista a modalidade delitiva culposa. Agindo com culpa o agente público, deixando de observar o cuidado objetivo necessário em sua atuação funcional, poderá ser responsabilizado na esfera administrativa e/ou na esfera cível.

Além do dolo direto, vale ressaltar, a lei estabeleceu, ainda, no art. 1º, §1º, a necessidade de um especial fim de agir para a configuração dos crimes nela previstos, devendo o agente público praticar as condutas típicas com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. São crimes de tendência intensificada, crimes de intenção ou crimes de tendência interna transcendente. As finalidades específicas previstas na lei, alternativamente, são as seguintes: prejudicar outrem; beneficiar a si mesmo; beneficiar terceiro; por mero capricho; satisfação pessoal.

Na modalidade do “caput” do artigo, trata-se de crime formal, que se consuma no momento em que o agente público decreta a medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais. Não há necessidade, assim, para a consumação do crime, que a privação de liberdade efetivamente ocorra. Havendo, será considerada exaurimento do crime. A tentativa, em tese, é admissível se a decretação ilegal for escrita.

Por fim, na modalidade do parágrafo único, tratando-se de crime omissivo, a consumação se dá com a expiração do “prazo razoável” sem que a autoridade judiciária tenha proferido a sua decisão. Não se admite tentativa nessa modalidade de conduta.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Thomas Quine // Foto de: Lady justice // Sem alterações

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