O CRIME DE DECRETAÇÃO DESCABIDA DE CONDUÇÃO COERCITIVA  

18/06/2020

O crime de decretação descabida de condução coercitiva vem previsto no art. 10 da Lei n. 13.869/19 – Lei de Abuso de Autoridade, tendo como objetividade jurídica a tutela da Administração Pública e também o direito à liberdade de locomoção da pessoa, previsto no art. 5º, XV e LXI, da Constituição Federal. Também a dignidade humana recebe, nesse delito, a proteção legal.

Dispõe o referido artigo:

“Art. 10. Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.”

Nas ADPFs 395 e 444, em que se impugnava a condução coercitiva para interrogatório, na investigação e na instrução criminal, o Supremo Tribunal Federal, por meio do relator Ministro Gilmar Mendes, entendeu que a condução coercitiva de investigado para interrogatório ofende os direitos fundamentais da presunção de não culpabilidade (art. 5º, LVII, CF), dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), liberdade de locomoção (art. 5º, caput, e incisos LXI, LXV, LXVI, LXVII e LXVIII, CF), além do direito a não autoincriminação e do direito à ampla defesa (art. 5º, LV, CF).

Em síntese, o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu julgar procedentes as arguições de descumprimento de preceito fundamental para pronunciar a não recepção da expressão “para o interrogatório”, constante do art. 260 do CPP, e declarar a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.

Na oportunidade, ficou destacado, ainda, que a decisão não desconstituía interrogatórios realizados até a data daquele julgamento, mesmo que os interrogados tenham sido coercitivamente conduzidos para tal ato.

A vedação à condução coercitiva para interrogatório, portanto, abrange tanto os investigados quanto os acusados, ou seja, incide na fase de investigação e também na fase de instrução processual.

Assim, é permitida a condução coercitiva de investigado ou réu para atos ou diligências que não acarretem autoincriminação, tais como reconhecimento pessoal, dúvida sobre a identidade civil do imputado (art. 313, parágrafo único, CPP) etc.

Por consequência, não é permitida a condução coercitiva de investigado ou réu para interrogatório ou outra diligência que acarrete autoincriminação, ainda que não tenha atendido intimação prévia.

Nesse sentido, o Enunciado 6 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União – CNPG e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal – GNCCRIM, que dispõe: “Os investigados e réus não podem ser conduzidos coercitivamente à presença da autoridade policial ou judicial para serem interrogados. Outras hipóteses de condução coercitiva, mesmo de investigados ou réus para atos diversos do interrogatório, são possíveis, observando-se as formalidades legais.”

Vale lembrar que a condução coercitiva continua sendo permitida para testemunhas, vítimas e peritos.

Ao que se infere da redação do art. 10, sujeito ativo do delito somente pode ser o agente público (arts. 1º e 2º da Lei n. 13.869/19) que tem o poder de decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado, não se restringindo apenas ao juiz, mas alcançando também o membro do Ministério Público, o delegado e o parlamentar em CPI.

Na primeira parte do tipo penal (decretação descabida), podem ser sujeitos ativos juízes, membros do Ministério Público, delegados e parlamentares em CPIs.      Na segunda parte do tipo penal (decretação sem prévia intimação de comparecimento ao juízo), somente pode ser sujeito ativo o juiz.

Na doutrina pátria, há quem entenda que apenas o juiz pode ser sujeito ativo do crime em comento, em qualquer de suas modalidades.           A nossa posição, entretanto, é no sentido de que não apenas o juiz, mas também o membro do Ministério Público e também o delegado podem decretar condução coercitiva de testemunhas e investigados e, portanto, podem figurar como sujeitos ativos do crime.

Com relação ao delegado, há precedente no Supremo Tribunal Federal (HC 107.644/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 17.10.2011).

Com relação ao Ministério Público, há permissivo para a decretação de condução coercitiva não apenas na lei (art. 26, I, da Lei n. 8.625/93 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), como também na Resolução 181/17 do Conselho Nacional do Ministério Público.

Sujeito passivo é a testemunha ou investigado em detrimento do qual foi decretada a condução coercitiva descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo. Secundariamente, é o Estado.

Vale ressaltar que o tipo penal se refere apenas a investigado, podendo-se concluir, a nosso ver, que o acusado não pode ser vítima desse delito, sob pena de violação ao princípio da legalidade. Vedada, outrossim, a analogia “in mallam partem”. Portanto, não caracteriza o crime em comento a condução coercitiva de réu, durante a instrução criminal.

A conduta típica vem expressa pelo verbo “decretar”, que significa proferir a decisão, determinar o cumprimento de medida, ordenar, determinar, mandar.

Elementos normativos do tipo vêm caracterizados pelas expressões “manifestamente descabida” e “sem prévia intimação”. Manifestamente descabida, por exemplo, é a condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório perante a autoridade policial ou em juízo, uma vez que afronta o quanto decidido nas ADPFs 395 e 444. Com relação à prévia intimação, é necessária para a legalidade do ato (art. 260, CPP), seja em relação a testemunhas, seja em relação a investigados ou réus para atos que não acarretem autoincriminação. Inexistindo prévia intimação e sendo decretada a condução coercitiva, estará caracterizado o delito.

O elemento subjetivo é o dolo, não sendo prevista a modalidade delitiva culposa.

Agindo com culpa o agente público, deixando de observar o cuidado objetivo necessário em sua atuação funcional, poderá ser responsabilizado na esfera administrativa e/ou na esfera cível.

Além do dolo direto, vale ressaltar, a Lei n. 13.869/19 estabeleceu, ainda, no art. 1º, §1º, a necessidade de um especial fim de agir para a configuração dos crimes nela previstos, devendo o agente público praticar as condutas típicas com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. São crimes de tendência intensificada, crimes de intenção ou crimes de tendência interna transcendente.

O crime se consuma com a decretação da condução coercitiva manifestamente descabida de testemunha ou investigado ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo. Trata-se de crime formal, que não necessita da ocorrência do resultado naturalístico para sua consumação. Assim, não há necessidade de que a testemunha ou investigado sejam efetivamente conduzidos coercitivamente à presença da autoridade. Embora de difícil configuração prática, entendemos que é admissível a tentativa, uma vez que fracionável o iter Com relação à ação penal, de acordo com o disposto no art. 3º, caput, da Lei n. 13.869/19, “os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada.” Admite-se, no §1º, a ação penal privada subsidiária.

A pena cominada, de 1(um) a 4(quatro) anos de detenção e multa afasta o menor potencial ofensivo e inviabiliza o processo e julgamento pelo Juizado Especial Criminal (Lei n. 9.099/95). Possível, entretanto, a suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da citada lei de pequenas causas.

Em razão da pena cominada e não sendo o crime praticado com violência ou grave ameaça, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as condições estampadas no art. 28-A, do Código de Processo Penal.

Aplica-se a este crime afiançável o procedimento especial dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos, previsto nos arts. 513 a 518 do Código de Processo Penal, admitindo-se a defesa preliminar.

Por fim, a competência para o processo e julgamento é, em regra, da Justiça Estadual, salvo na ocorrência de alguma das hipóteses previstas no art. 109 da Constituição Federal, quando, então, a competência será da Justiça Federal.

 

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