O CRIME DE CONTRATAÇÃO DIRETA ILEGAL E A NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

08/07/2021

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos - Lei n. 14.133, de 1º de abril de 2021, substituiu a anterior Lei n. 8.666/93, estabelecendo normas gerais de licitação e contratação para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Não obstante a vigência da nova lei, a anterior continua vigendo por um período de 2 (dois) anos após a publicação oficial da primeira, de acordo com o que prescreve o art. 193, II.

Ambas as leis, a anterior e a nova, estabelecem a responsabilidade dos agentes administrativos que praticarem atos em desacordo com os preceitos nela estabelecidos, ou visando frustrar os objetivos da licitação, sem prejuízo das responsabilidades civil e penal que o caso ensejar.

De acordo com o disposto no art. 193, I, da nova Lei n. 14.133/21, foram revogados expressamente os arts. 89 a 108 da Lei n. 8.666/93, sendo certo que o art. 178 acrescentou o Capítulo II-B ao Título XI da Parte Especial do Código Penal, no qual foram inseridos os arts. 337-E a 337-P, sob o título “Dos Crimes em Licitações e Contratos Administrativos”.

O crime de contratação direta ilegal vem previsto no art. 337-E do Código Penal, acrescentado pela Lei n. 14.133/21, tendo como objetividade jurídica a proteção dos interesses da administração pública, seu regular funcionamento e a probidade administrativa.

O tipo penal anterior análogo estava previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/93, que punia com detenção de 3 (três) a 5 (cinco) anos e multa, a dispensa ou inexigibilidade de licitação fora das hipóteses previstas em lei, além da inobservância das formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade.

Não houve mudança sensível no conteúdo da norma penal, que passou a punir as condutas de admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei. O processo de contratação direta, de acordo com o disposto no art. 72, “caput”, da Lei n. 14.133/21, nada mais é do que inexigibilidade e dispensa de licitação. Portanto, aquele que admitir, possibilitar ou der causa à contratação direta ilegal estará praticando exatamente a mesma conduta que aquele que dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou ainda que deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade. Aplica-se, neste caso, integralmente o princípio da continuidade normativo-típica, que “ocorre quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário.” (STJ – HC 187.471/AC – Rel. Min. Gilson Dipp – j. 20.10.2011).

Em razão da nova formatação do tipo penal pela Lei n. 14.133/21, alguns estudiosos passaram a sustentar que o crime ora em comento seria comum, podendo ter como sujeito ativo qualquer pessoa. Ousamos discordar. A nosso ver, o crime continua a ser próprio, somente podendo ter como sujeito ativo a autoridade administrativa, os agentes públicos, com atribuição para admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta, ou seja, autorizar a abertura da licitação pública, dispensá-la ou afirmar sua inexigibilidade. Nesse sentido, dispõe o art. 8º da Lei n. 14.133/21, que a licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento da licitação. Agente público é indivíduo que, em virtude de eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, exerce mandato, cargo, emprego ou função em pessoa jurídica integrante da Administração Pública. Autoridade é o agente público dotado de poder de decisão.

O Superior Tribunal de Justiça já entendeu que “a condição de agente político (cargo de prefeito) é elementar do tipo penal descrito no caput do art. 89 da Lei n. 8.666/1993, não podendo, portanto, ser sopesada como circunstância judicial desfavorável.” (HC 163204/PB, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 17/04/2012, DJe 19/10/2012; HC 108989/PR, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 28/10/2008, DJe 17/11/2008; HC 95203/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 24/06/2008, DJe 18/08/2008; REsp 1509998/CE, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 20/08/2018, publicado em 23/08/2018).

Pode acontecer, outrossim, o concurso de pessoas tanto no caso de mais de um servidor público participar do crime, como no caso de um particular que para ele concorra de qualquer forma. De todo modo, a qualidade especial do sujeito ativo (servidor público) é elementar do crime, comunicando-se ao coautor ou partícipe que não ostente essa qualidade, por força do disposto no art. 30 do Código Penal.

Com relação a prefeitos municipais, o antigo art. 89 da Lei n. 8.666/93 já havia revogado o inciso XI do art. 1º do Decreto-Lei n. 201/1967, devendo, portanto, ser aplicado o art. 337-E às condutas típicas por eles praticadas após sua vigência. No Superior Tribunal de Justiça: EDcl no AgRg no REsp 1745232/CE, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 09/10/2018, DJe 19/10/2018; REsp 1807302/RN, Rel. Ministro JORGE MUSSI, , julgado em 27/06/2019, publicado em 01/07/2019; RHC 041763/RJ, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 25/04/2018, publicado em 27/04/2018.

Sujeito passivo do crime de contratação direta ilegal é o Estado, ou, de uma forma mais específica, a administração pública, assim como se tem como sujeito passivo secundário o titular do bem jurídico particularmente protegido.

O objeto material é a contratação direta (dispensa ou inexigibilidade de licitação) propriamente dita. O processo de contratação direta, que compreende os casos de inexigibilidade e de dispensa de licitação, deverá ser instruído com os documentos indicados no art. 72 da Lei n. 14.133/21. O ato que autoriza a contratação direta ou o extrato decorrente do contrato deverá ser divulgado e mantido à disposição do público em sítio eletrônico oficial. Vale lembrar que, na hipótese de contratação direta irregular, o contratado e o agente público responsável responderão solidariamente pelo dano causado ao erário, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis. É inexigível a licitação quando inviável a competição, estabelecendo o art. 74 da citada lei os casos especiais. É dispensável a licitação nas hipóteses elencadas pelo art. 75.

A conduta típica vem expressa pelos verbos “admitir” (reconhecer, aceitar, consentir), “possibilitar” (tornar possível, proporcionar) e “dar causa” (ensejar, causar).

O elemento subjetivo é o dolo, não sendo punida a modalidade culposa por falta de previsão legal.

Há julgados do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, exigindo a comprovação do dolo específico do agente em causar dano ao erário, bem como do prejuízo à administração pública. Nesse sentido: RHC 108813/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 05/09/2019, DJe 17/09/2019; AgRg no AREsp 1426799/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/08/2019, DJe 12/09/2019; HC 490195/PB, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 03/09/2019, DJe 10/09/2019; RHC 115457/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 20/08/2019, DJe 02/09/2019; AgRg no RHC 108658/MG, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 22/08/2019; HC 444024/PR, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 02/04/2019, DJe 02/08/2019; HC 498748/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 30/05/2019, DJe 06/06/2019.

O crime se consuma com a admissão da contratação direta ilegal ou com qualquer ato que possibilite a sua ocorrência. Ou, ainda, com qualquer ação ou omissão que dê causa à prática da contratação direta ilegal.

Trata-se de crime de mera conduta, não havendo necessidade de ocorrência de efetivo prejuízo à Administração (resultado naturalístico).

Admite-se a tentativa em qualquer das modalidades de conduta, uma vez fracionável o “iter criminis”.

A ação penal é pública incondicionada, não sendo aplicável a esse crime nenhum dos benefícios da Lei n. 9.099/95, como a transação ou suspensão condicional do processo.

Por fim, não é cabível, também, o acordo de não persecução penal, uma vez que a pena mínima é de 4 (quatro) anos de reclusão.

 

 

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