O crime de constrangimento ilegal a exibição do corpo, vexame ou produção de prova vem previsto no art. 13 da Lei n. 13.869/19, tendo como objetividade jurídica a tutela da Administração Pública e também a dignidade humana (art. 1º, III, CF), o direito à integridade física e moral (art. 5º, XLIX, CF), além do direito à honra e à imagem. Trata-se de crime pluriofensivo.
O crime já existia anteriormente, estando previsto no inciso II do revogado art. 350 do Código Penal, e também no art. 4, alínea “b”, da revogada Lei n. 4.898/65.
Sujeito ativo do delito somente pode ser o agente público (arts. 1º e 2º da lei) que tem o preso ou detento sob seu cuidado, guarda, autoridade ou vigilância. O particular que, de qualquer modo, concorre para o crime, responde também por esse delito de abuso de autoridade, em vista do disposto no art. 30 do Código Penal.
Sujeito passivo é o preso ou detento e, secundariamente, o Estado. Tratando-se a vítima de criança ou adolescente, estará configurado o crime do art. 232 da Lei n. 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente.
“Preso” é a pessoa que já teve sua prisão formalizada, sendo indiferente se prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão temporária ou prisão decorrente de sentença condenatória irrecorrível. “Detento” é aquele que se encontra privado transitoriamente de sua liberdade antes de formalizada a prisão. Tratando-se de investigado ou réu solto, não se configura a prática delitiva em comento.
A conduta típica vem representada pelo verbo constranger, que significa obrigar, forçar, compelir, submeter.
Para a caracterização do crime, é necessário que o constrangimento se dê mediante violência, ou seja, mediante utilização de força física (“vis absoluta”), ou mediante grave ameaça (violência moral – “vis compulsiva”), ou ainda mediante redução da capacidade de resistência do preso ou detento (violência imprópria).
O constrangimento deve ser voltar à prática das seguintes atuações por parte do preso ou detento:
I - exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública;
Visa a regra a preservação da integridade moral do preso ou detento, que não pode ser exposto à curiosidade pública. Deve ele ter resguardada a sua dignidade não podendo ser exibido publicamente ou ter seu corpo ou parte dele exibido.
Nesse sentido, a Lei nº 13.964/19 – Lei Anticrime, ao instituir no sistema processual brasileiro o juiz das garantias, estabeleceu como uma das atribuições desse magistrado, no art. 3º-F, caput, justamente “assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal.”
II - submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;
Vexame significa vergonha, humilhação. Situação vexatória é aquela que expõe o preso ou detento ao ridículo, ou a situação de embaraço, vergonha ou humilhação. O termo constrangimento aqui é utilizado em seu sentido moral, como sinônimo de embaraço, mal-estar, rebaixamento.
Com relação ao uso de algemas, a situação já vem de certa forma equacionada pelo disposto na Súmula Vinculante n. 11 do STF, que diz:
“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”
Inclusive, a própria Lei n. 13.869/19, ora em comento, teve seu art. 17, que tratava do uso indevido de algemas, vetado pelo Presidente da República.
Dispunha o art. 17 da lei:
“Art. 17. Submeter o preso, internado ou apreendido ao uso de algemas ou de qualquer outro objeto que lhe restrinja o movimento dos membros, quando manifestamente não houver resistência à prisão, internação ou apreensão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio preso, internado ou apreendido, da autoridade ou de terceiro:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. A pena é aplicada em dobro se:
I - o internado tem menos de 18 (dezoito) anos de idade;
II - a presa, internada ou apreendida estiver grávida no momento da prisão, internação ou apreensão, com gravidez demonstrada por evidência ou informação;
III - o fato ocorrer em penitenciária.”
Referido artigo foi vetado sob a seguinte razão: “A propositura legislativa, ao tratar de forma genérica sobre a matéria, gera insegurança jurídica por encerrar tipo penal aberto e que comporta interpretação. Ademais, há ofensa ao princípio da intervenção mínima, para o qual o Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário, além do fato de que o uso de algemas já se encontra devidamente tratado pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos da Súmula Vinculante nº 11, que estabelece parâmetros e a eventual responsabilização do agente público que o descumprir.”
III - produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro.
Esse dispositivo havia sido inicialmente vetado pelo Presidente da República, sob o seguinte argumento: “A propositura legislativa gera insegurança jurídica, pois o princípio da não produção de prova contra si mesmo não é absoluto como nos casos em que se demanda apenas uma cooperação meramente passiva do investigado. Neste sentido, o dispositivo proposto contraria o sistema jurídico nacional ao criminalizar condutas legítimas, como a identificação criminal por datiloscopia, biometria e submissão obrigatória de perfil genético (DNA) de condenados, nos termos da Lei nº 12.037, de 2009.”
Posteriormente, o veto foi rejeitado pelo Congresso Nacional.
Trata-se, na primeira parte do inciso, de decorrência do princípio “Nemo tenetur se detegere”, segundo o qual ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.
Conforme observam Adriano Sousa Costa, Eduardo Fontes e Henrique Hoffmann (“Lei de Abuso de Autoridade. Coleção Carreiras Policiais.” Salvador: Editora Juspodivm. 2020. p. 150), “não afronta o privilégio contra a autoincriminação e por isso não configura crime por parte do agente público submeter o cidadão à identificação e à prudução de prova que não exija comportamento autoincriminador nem configure prova invasiva.”
Citam como exemplo, os ditos autores, a identificação civil (sob pena de incidir no art. 68 da Lei de Contravenções Penais e a Súmula 522 do STJ sobre o crime de falsa identidade – art. 307 do CP), a identificação criminal (art. 3º da Lei n. 12.037/09), o reconhecimento pessoal (art. 260, 2ª parte, do CPP), dentre outros.
Na segunda parte do inciso, a lei veda também o constrangimento do preso ou detento a produzir prova contra terceiro.
O elemento subjetivo é o dolo, não sendo prevista a modalidade delitiva culposa. Agindo com culpa o agente público, deixando de observar o cuidado objetivo necessário em sua atuação funcional (agindo, por exemplo, com negligência), poderá ser responsabilizado na esfera administrativa e/ou na esfera cível.
Além do dolo direto, vale ressaltar, a lei estabeleceu, ainda, no art. 1º, §1º, a necessidade de um especial fim de agir para a configuração dos crimes nela previstos, devendo o agente público praticar as condutas típicas com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. São crimes de tendência intensificada, crimes de intenção ou crimes de tendência interna transcendente. As finalidades específicas previstas na lei, alternativamente, são as seguintes: prejudicar outrem; beneficiar a si mesmo; beneficiar terceiro; por mero capricho; satisfação pessoal.
O crime se consuma com o comportamento positivo do preso ou detento, fazendo aquilo a que foi constrangido.
Trata-se de crime material. Portanto, a consumação ocorre quando o preso ou detento, em razão do constrangimento exercido mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, efetivamente se exiba ou tenha seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública; se submeta a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei; ou produza prova contra si mesmo ou contra terceiro. A tentativa é admissível, uma vez fracionável o iter criminis.
Com relação à ação penal, de acordo com o disposto no art. 3º, caput, da Lei n. 13.869/19, “os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada.” Admite-se, no §1º, a ação penal privada subsidiária.
A pena cominada, de 1(um) a 4(quatro) anos de detenção e multa afasta o menor potencial ofensivo e inviabiliza o processo e julgamento pelo Juizado Especial Criminal (Lei nº 9.099/95). Possível, entretanto, a suspensão condicional do processo prevista no art. 89 da citada lei de pequenas causas.
Em razão da pena cominada e não sendo o crime praticado com violência ou grave ameaça, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as condições estampadas no art. 28-A, do Código de Processo Penal. Portanto, cabe o ANPP somente quando o constrangimento se dá com o emprego da violência imprópria (redução de capacidade de resistência). Inclusive, nesse sentido, o Enunciado 28 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União – CNPG e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal – GNCCRIM, que dispõe: “Crimes de abuso de autoridade, cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, presentes os pressupostos do art. 18 da Res. 181/17 do CNMP, admitirão o acordo de não persecução penal, salvo se a sua celebração não atender ao que seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.”
Aplica-se a este crime afiançável o procedimento especial dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos, previsto nos arts. 513 a 518 do Código de Processo Penal, admitindo-se a defesa preliminar.
Por fim, a competência para o processo e julgamento é, em regra, da Justiça Estadual, salvo na ocorrência de alguma das hipóteses previstas no art. 109 da Constituição Federal, quando, então, a competência será da Justiça Federal.
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