Introdução
Os tratados internacionais de direitos humanos passaram a ocupar posição de destaque no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente pós Emenda Constitucional n. 45/2004, que conferiu o “status” constitucional a essas convenções, quando aprovadas em dois turnos de 3/5 (três quintos) dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, mesmo rito de aprovação das emendas constitucionais.
Criou-se, nesse contexto, novo paradigma de controle de validade das normas internas, que, para além do crivo da Constituição, passaram a demandar, também, a compatibilidade com os tratados internacionais de direitos humanos. É daí que surge o controle de convencionalidade e a teoria do duplo controle, mecanismos que buscam superar a dicotomia entre as cortes nacionais e as cortes internacionais na interpretação dos direitos humanos.
O presente trabalho propõe-se a explicar esses mecanismos de controle de validade das normas e a sua especial relevância para a efetivação dos direitos humanos no Brasil. Busca, ainda e por fim, demonstrar a importância, no exercício desses mecanismos de controle, do diálogo entre as cortes internacionais e nacionais para a garantia de um sistema coeso e efetivo de proteção de direitos humanos no âmbito brasileiro.
Desenvolvimento
O controle de convencionalidade em muito se assemelha ao controle de constitucionalidade. A diferença reside na norma utilizada como paradigma. É que, enquanto no controle de convencionalidade o parâmetro utilizado é a norma de direito internacional, no controle de constitucionalidade a norma paradigmática é a própria Constituição Federal.
Em outras palavras: o controle de convencionalidade nada mais é do que um juízo de compatibilidade de atos normativos internos com dispositivos previstos em tratados internacionais.
André de Carvalho Ramos[1] elenca duas subcategorias do controle de convencionalidade: o controle de convencionalidade de matriz internacional, também chamado de controle de convencionalidade autêntico, e o controle de convencionalidade de matriz nacional. Dispõe o autor que o primeiro é exercido por órgãos internacionais, a exemplo da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e serve para evitar que os Estados sejam simultaneamente fiscais e fiscalizadores da aplicação da normativa internacional. Já o segundo é exercido pelos próprios tribunais e juízes internos, sendo que, no caso do Brasil, ao menos no que diz respeito aos direitos humanos, serve para efetuar o juízo de compatibilidade da normativa interna com os tratados internacionais de direitos humanos, ante o status superior destes na ordem jurídica pátria.
Sobre o procedimento, o controle de convencionalidade em muito se assemelha ao controle de constitucionalidade das normas, adotando, no controle de matriz nacional, os mesmos mecanismos de controle utilizados por este, quais sejam, o sistema difuso e o sistema concentrado[2].
No sistema difuso, todo juiz tem o poder-dever de aferir a convencionalidade dos atos normativos brasileiros em face dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. É que, sejam eles aprovados pelo rito especial 5º, § 3º, da Constituição Federal ou pelo rito simples (situação dos tratados internacionais incorporados antes da EC. 45/2004), assumem posição hierárquica superior à normativa infraconstitucional – “status” constituição e supralegal, respectivamente –, devendo esta a eles se conformar.
Já no sistema concentrado, cabe ao Supremo Tribunal Federal a análise da convencionalidade da norma submetida à análise, que conforme esclarece Mazzuoli[3], somente será cabível na hipótese de tratados de direitos humanos aprovados pelo rito especial do artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal, os quais possuem o “status” de norma constitucional. Assim, não só fará a Suprema Corte um juízo de convencionalidade dos atos normativos, mas também de constitucionalidade, uma vez que um ato normativo que fira um tratado internacional com status constitucional ferirá, por consequência lógica, a própria Constituição.
No controle de matriz internacional, esse juízo de conformação dos atos normativos internos com os tratados internacionais de direitos humanos é exercido, conforme já destacado, por órgãos e organismos internacionais de proteção de direitos humanos. E o que o difere substancialmente do controle de matriz nacional é a amplitude do seu objeto de análise. Isso porque poderá ter por objeto a análise de qualquer norma do direito interno, independentemente de sua hierarquia constitucional – o que abrange, inclusive, normas provenientes do poder constituinte originário –, o que não é admissível no controle exercido internamente.
Nesse ponto, pode-se dizer que o controle de convencionalidade de matriz internacional se reveste de um importante atributo, qual seja, o de ilimitação quanto ao objeto de análise, uma vez que poderá, inclusive, declarar a inconvencionalidade de normas constituintes originárias, tornando-o, assim, um autêntico controle de convencionalidade. Esse mesmo “poder” não é dado ao controle de convencionalidade nacional, uma vez que, conforme dispõe Carvalho Ramos[4], “os juízes e os tribunais internos não ousam submeter uma norma do Poder Constituinte Originário à análise da compatibilidade com um determinado tratado de direitos humanos”. Portanto, esse juízo, no caso do controle de convencionalidade nacional, é limitado pelo próprio constituinte originário.
É importante destacar que tanto o controle de convencionalidade internacional quanto o controle de convencionalidade nacional são essenciais para assegurar uma perfeita harmonia entre o direito interno e o direito internacional. Mas nem tudo é perfeito. Pode haver divergências, no exercício do juízo de compatibilidade das normas internas com as internacionais, entre as cortes internacionais e os juízos ou cortes nacionais.
Mais especificamente, é possível, por exemplo, que um juiz, no exercício do controle de convencionalidade de matriz nacional, divirja do entendimento de uma corte internacional, no exercício do controle de convencionalidade de matriz internacional. E, ocorrendo essa situação, qual entendimento deve prevalecer?
Sobre essa questão, esclarece Carvalho de Ramos:
Em virtude de tais diferenças, na recente sentença contra o Brasil no Caso Gomes Lund (caso da “Guerrilha do Araguaia”), na Corte Interamericana de Direitos Humanos, o juiz ad hoc indicado pelo próprio Brasil, Roberto Caldas, em seu voto concordante em separado, assinalou que “se aos tribunais supremos ou aos constitucionais nacionais incumbe o controle de constitucionalidade e a última palavra judicial no âmbito interno dos Estados, à Corte Interamericana de Direitos Humanos cabe o controle de convencionalidade e a última palavra quando o tema encerre debate sobre direitos humanos.[5]
Em outras palavras: entende Carvalho Ramos que como qual está o Supremo Tribunal Federal para a Constituição como guardião desta, estão as cortes internacionais para com os tratados internacionais de direitos humanos como guardião destes. Logo, em caso de divergência entre uma corte nacional e uma internacional, no que tange a normas internacionais de proteção de direitos humanos, a interpretação da última deverá prevalecer.
A retro conclusão é lógica, uma vez que o Brasil não só ratificou tratados internacionais – não podendo, portanto, se escusar do cumprimento de suas disposições –, como também se vinculou às suas respectivas cortes internacionais, como é o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil se vinculou desde 1998[6]. Essa vinculação garante que os direitos previstos nesses tratados não se tornem inócuos, o que poderia acontecer caso estivessem tão somente à mercê de cortes internas (nacionais). A última palavra, portanto, em havendo eventual conflito de decisões, deve ser das cortes internacionais no que diz respeito aos tratados internacionais de direitos humanos.
É importante ressaltar, contudo, que, para que haja uma perfeita aplicação do direito internacional, é bom que tais divergências não venham a ocorrer.
Diante da prevalência do entendimento das cortes internacionais sobre as nacionais em matéria de direitos humanos, é necessário que estas não apenas efetuem o juízo de compatibilidade das normas internas com as internacionais, mas que este juízo esteja em consonância com a jurisprudência internacional – o que Carvalho Ramos[7] chama de “diálogo das Cortes” –, tornando, assim, harmonioso e efetivo o sistema de controle convencional das normas.
Aliás, já dispôs a Corte Interamericana:
124. A Corte está ciente de que os juízes e os tribunais estão sujeitos ao império da lei e, portanto, são obrigados a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. Mas quando um Estado ratifica um tratado internacional, como a Convenção Americana, seus juízes, como parte do aparelho do Estado, também estão sujeitos a ela, o que os obriga a garantir que os efeitos das disposições da Convenção não sejam prejudicados pela aplicação de leis contrárias a seu objeto e finalidade, que desde o início carecem de efeito jurídico. Em outras palavras, o Poder Judiciário deve exercer uma espécie de "controle de convencionalidade" entre as normas jurídicas nacionais aplicáveis aos casos concretos e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Esta tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não só o tratado, mas também a interpretação dada pela Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana. (Tradução e grifo nosso)[8]
No entanto, para que esse diálogo efetivamente ocorra, é necessário, conforme Ramos, que se cumpra quatro requisitos:
1) a menção à existência de dispositivos internacionais convencionais ou extraconvencionais de direitos humanos vinculantes ao Brasil sobre o tema; 2) a menção à existência de caso internacional contra o Brasil sobre o objeto da lide e as consequências disso reconhecidas pelo Tribunal; 3) a menção à existência de jurisprudência anterior sobre o objeto da lide de órgãos internacionais de direitos humanos aptos a emitir decisões vinculantes ao Brasil; 4) o peso dado aos dispositivos de direitos humanos e à jurisprudência internacional.[9]
Cumpridos tais requisitos, não restarão dúvidas de que a intepretação dada pela Corte Internacional foi observada, in casu, pela Corte brasileira.
Frise-se, porém, que, caso juízes ou cortes nacionais, no exercício do controle de convencionalidade de matriz nacional, frustrem o diálogo com a jurisprudência de tais cortes, poderá a parte lesada se recorrer a estas, para assim assegurar o pleno exercício dos seus direitos, já que cabe às cortes internacionais a última palavra no que diz respeito a direitos previstos em tratados ou convenções internacionais, conforme destacado acima.
Pode-se dizer, então, que se consagrou no direito brasileiro um duplo controle ou crivo de direitos humanos: o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade. O referido controle obriga uma leitura não apenas constitucional das normas internas brasileiras, mas também convencional, sendo que, para que uma norma venha, efetivamente, produzir efeitos no território brasileiro, deverá passar pelo crivo dos dois sistemas normativos de proteção de direitos humanos (interno e internacional).
Sobre a teoria do duplo controle, dispõe Ramos:
Reconhece a atuação em separado do controle de constitucionalidade (STF e juízos nacionais) e do controle de convencionalidade (Corte de San José e outros órgãos de direitos humanos do plano internacional). A partir dessa teoria, deve-se exigir que todo ato interno se conforme não só ao teor da jurisprudência do STF, mas também ao teor da jurisprudência interamericana. Com isso, evita-se o antagonismo entre o STF e os órgãos internacionais de direitos humanos, evitando a ruptura e estimulando a convergência em prol dos direitos humanos.[10]
Desse modo, ainda que uma lei seja declarada constitucional pela Corte Suprema brasileira, poderá ser declarada inconvencional perante uma Corte Internacional, podendo gerar, consequentemente, a responsabilização do Estado brasileiro. A norma, portanto, somente será válida ser for compatível com a Constituição e com os tratados internacionais de direitos humanos.
Sobre a questão, é o que bem explica Mazzuolli:
A compatibilidade da lei com o texto constitucional não mais lhe garante validade no plano do direito interno. Para tal, deve a lei ser compatível com a Constituição e com os tratados internacionais (de direitos humanos e comuns) ratificados pelo governo. Caso a norma esteja de acordo com a Constituição, mas não com eventual tratado já ratificado e em vigor no plano interno, poderá ela ser até considerada vigente [...], mas não poderá ser tida como válida, por não ter passado imune a um dos limites verticais materiais agora existentes: os tratados internacionais em vigor no plano interno.[11]
Assim, para que qualquer ato interno seja considerado válido e apto a produzir efeitos no território brasileiro, deverá abraçar tanto a Constituição quanto os tratados de direitos Humanos, sob pena de invalidade e ineficácia perante a ordem jurídica vigente.
Conclusão
É notório o grande avanço em matéria de proteção de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio. E isso se deve, primordialmente, à implementação de mecanismos de efetivação desses direitos tão elementares, tais como o controle de convencionalidade e a teoria do duplo controle.
Como visto, não basta a internalização de tratados internacionais de direitos humanos pelo Estado brasileiro. É necessário que os direitos previstos nessas convenções sejam respeitados e efetivados, a fim de que não se tornem simples normas programáticas, de caráter meramente ideológico. Daí a necessidade de atuação das cortes nacionais e internacionais, para, através do controle de convencionalidade, fazer valer o comando convencional.
É certo que, por vezes, ocorrem divergências de interpretação entre as cortes nacionais e internacionais, criando um cenário de instabilidade e insegurança jurídica. Mas, conforme abordado neste trabalho, por meio de um “diálogo das Cortes”, é possível a superação desse problema e a garantia de um sistema efetivo e harmônico de proteção de direitos humanos. Essa convergência de entendimento entre as Cortes domésticas e internacionais é o que se espera, a possibilitar a existência de um forte aparato de defesa de direitos humanos no Estado brasileiro.
Notas e referências
ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFEN, Pablo Rodrigo (org.). Audiência de Custódia no Processo Penal Brasileiro. 2ª Ed. rev. atual e ampl. De acordo com a Resolução nº 2013 do Conselho Nacional de Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 24.
BRASIL. Decreto Legislativo nº 89, de 1998, “aprova a solicitação de reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos para fatos ocorridos a partir do reconhecimento, de acordo com o previsto no parágrafo primeiro do art. 62 daquele instrumento internacional.” Disponível em <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/1998/decretolegislativo-89-3-dezembro-1998-369634-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acessado em 20/10/2023.
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile, set. de 2006, p. 53. Disponível em < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf>. Acessado em 20/10/2023.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade do direito brasileiro. Revista de informação legislativa, Brasília a. 46 n. 181, pp. 115 e 129, jan./mar. 2009.
RAMOS, Andre de Carvalho. Curso de Direitos Humanos – São Paulo: Saraiva, 2014, disponibilizada por Le Livros, pp. 386-390 e 393.
[1] RAMOS, Andre de Carvalho. Curso de Direitos Humanos – São Paulo: Saraiva, 2014, disponibilizada por Le Livros, p. 386.
[2] ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFEN, Pablo Rodrigo (org.). Audiência de Custódia no Processo Penal Brasileiro. 2ª Ed. rev. atual e ampl. De acordo com a Resolução nº 2013 do Conselho Nacional de Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 24.
[3] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade do direito brasileiro. Revista de informação legislativa, Brasília a. 46 n. 181, p. 129, jan./mar. 2009.
[4] RAMOS, Andre de Carvalho. Op. Cit.., p. 386.
[5] Ibid.., p. 387.
[6] BRASIL. Decreto Legislativo nº 89, de 1998, “aprova a solicitação de reconhecimento da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos para fatos ocorridos a partir do reconhecimento, de acordo com o previsto no parágrafo primeiro do art. 62 daquele instrumento internacional.” Disponível em <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/1998/decretolegislativo-89-3-dezembro-1998-369634-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acessado em 20/10/2023.
[7] RAMOS, Andre de Carvalho. Op. Cit., pp. 388.
[8] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile, set. de 2006, p. 53. Disponível em < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf>. Acessado em 20/10/2023.
[9] RAMOS, Andre de Carvalho. Op. Cit., pp. 389-390.
[10] Ibid., p. 393.
[11] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Op. Cit., p. 115;
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