O contentamento perverso e submisso

09/09/2019

Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

Você deve notar que não tem mais tutu

e dizer que não está preocupado

Você deve lutar pela xepa da feira

e dizer que está recompensado

Você deve estampar sempre um ar de alegria

e dizer: tudo tem melhorado

Você deve rezar pelo bem do patrão

e esquecer que está desempregado

 

Você merece, você merece

Tudo vai bem, tudo legal

Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé

Se acabarem com o teu Carnaval?

 

Você deve aprender a baixar a cabeça

E dizer sempre: "Muito obrigado"

São palavras que ainda te deixam dizer

Por ser homem bem disciplinado

Deve pois só fazer pelo bem da Nação

Tudo aquilo que for ordenado

Pra ganhar um Fuscão no juízo final

E diploma de bem comportado. (Comportamento Geral, Gonzaguinha)

 

Nas últimas décadas, a manifestação de um pensamento neoliberal, no qual a democracia é um valor apenas instrumental ante a liberdade econômica[1], tem incidido sobre a orientação constitucional de muitos países guindados pela crise do Estado Social, os quais, em muitos casos, têm dificuldade de financiar suas políticas de bem-estar, devido a crises e ao processo de financeirização da economia. Socialmente é motivado pelo fenômeno que Galbraith chama de “cultura do contentamento”, visão meritocrática adotada pela classe média, aliada à ideia de que a satisfação das apetências de consumo e uma suposta posição social possam ser ameaçadas pelos mais pobres[2]. Diante disso, forma-se o entendimento que direitos fundamentais devem priorizar, ou ter como conteúdo exclusivo, apenas os direitos individuais.[3] Neste âmbito, surge o esforço em formar uma democracia em que o mercado esteja cada vez mais imune à vontade popular, mesmo que expressa pela via indireta.[4]

Nesse esforço de interpretação, esse autor elaborou a obra “A Cultura do Contentamento”, a qual aponta as características desse comportamento, percebendo nele as seguintes convicções: 1) A ideia de que a classe média, ou nas palavras de Galbraith “uma maioria satisfeita”, obteve essa posição social por meio de suas qualidades individuais, sem vinculação com melhorias sociais ou políticas públicas; 2) assim sendo, cada um por si, indiferente às questões sociais e políticas, conseguirá também melhorar de vida, ou seja, a longo prazo tudo terminará bem; 3) O Estado é um empecilho neste processo individual de melhoria de vida; 4) Tolerância para as grandes desigualdades de renda, a possibilidade dos ricos continuarem enriquecendo e os pobres continuarem empobrecendo não é vista como dois fatos vinculados, e, se houver alguma vinculação entre esses fatos, de qualquer forma isso representa um incremento no dinamismo da economia, o que automaticamente melhora a sociedade.[5]

A ameaça a este contentamento viria daqueles que buscam mudanças sociais, por isso os contentados manifestam revolta contra os grupos mais marginalizados. Consolidado o pressuposto de que é o mérito individual a fonte de satisfação, as questões políticas são deixadas em segundo plano. Com isso, se as mudanças sociais não são a causa da melhoria de vida das pessoas, também o insucesso se dá por causas subjetivas. Na perspectiva do contentamento, a vida das pessoas se orienta pelo dístico fracasso e sucesso, decorrente de outro binômio: culpa ou mérito, sempre dado por fatores individuais.

O comportamento decorrente disso é a indiferença às causas sociais dos problemas que afetam as pessoas, elas passam a ser ocultadas pela culpabilização dos setores mais fragilizados. Os contentados não enxergam as causas, eles imputam culpas. Com isso, deixariam de existir as vítimas dos processos sociais, mas sim, culpados pelo próprio demérito. Os explorados passam a ser vistos com medo, desprezo e ódio; por outro lado, os exploradores se firmam no imaginário dos contentes como vencedores, detentores das habilidades a serem copiadas.

Se aqueles que sofrem com a exclusão dos bens necessários são os próprios causadores da sua desgraça, a eles não cabe amparo, ao contrário, é preciso contê-los para que o comportamento que causou a sua desgraça não atinja os contentados. A compaixão dá lugar ao medo, a aposta na violência é alternativa desesperada na busca por sair do medo. Os contentados pautam a política pela busca de segurança, por esse intento estão dispostos a abrir mão das liberdades e aceitar a submissão crescente à violência de estruturas cada vez mais arbitrárias.

A violência passa a ser o escudo protetor do contentamento, com ele se produz um paliativo para satisfazer o desejo por segurança. Por esta lógica, o diferente (outro) irrompe como sendo portador do medo, com isso justifica-se tratá-lo com violência, seja preventiva ou vingativamente. Nesse movimento o contentamento adota a perversidade como prática moral, ou moralista. Aqui toma-se a perversidade como a violência contra os mais fracos.

Neste processo, o Direito, com se aparato conceitual, mas principalmente em seu aparato institucional, tem manifesto uma prática tipicamente fascista, caracterizada por duas atitudes: por um lado, algumas instituições se arrogam funções que extrapolam os seus atributos legais, assumindo missões salvacionistas, tais como garantir segurança pública e acabar com a corrupção; por outro, assumem uma fundamentação jurídica que posiciona a justiça, razão de ser do Direito, em um lugar abaixo da vingança clamada pelos arautos do sentimento extremado.

Diante deste cenário de um contentamento perverso e submisso, estabelecido pela sujeição obediente às estruturas de poder que atingem com crueldade peculiar aos dois grupos indesejados: “os fracos”, tratados com indiferença, e  “os maus”, aqueles a quem se destina a violência da repressão.

Neste cenário, a afirmação dos direitos humanos demanda a insurgência contra os discursos de conformação subjetiva (autoajuda, empreendedorismo, meritocracia, conservadorismo). Do mesmo modo, importa na afirmação radical da alteridade das vítimas da indiferença, da exploração e do ódio.

 

 

Notas e Referências

[1] “Por neoliberalismo se entende hoje, principalmente, a doutrina econômica consequentemente, o liberalismo político é apenas um modo de realização, nem sempre necessário; ou em outros termos, uma defesa intransigente da liberdade econômica, da qual a liberdade política é apenas um corolário. Ninguém melhor do que um dos notáveis inspiradores do atual movimento em favor do desmantelamento do estado de serviços, o economista Friedrich Hayek insistiu sobre a indissolubilidade de liberdade econômica e de liberdade sem quaisquer outros objetivos, reafirmando assim a necessidade de distinguir claramente o liberalismo, que tem seu ponto de partida numa teoria econômica da democracia, que é uma teoria política, e atribuindo à liberdade individual (da qual a liberdade econômica seria a primeira condição) um valor intrínseco e à democracia unicamente um valor  instrumental. Hayek admite que, nas  lutas  passadas contra o poder absoluto, liberalismo e democracia puderam proceder no mesmo passo e confundir-se um na outra. Mas agora tal confusão não deveria mais ser possível, pois acabamos  por nos dar conta- sobretudo observando a que consequências não-liberais  pode conduzir, e de fato conduziu, o processo de democratização- de que liberalismo e democracia respondem a problemas diversos: o liberalismo, ao problema das funções do governo e em particular à limitação de seus poderes; a democracia, ao problema de quem deve governar e com quais procedimentos.” BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 6º ed., 1997, p. 87-88.

[2]Há, contudo, algumas lições em um âmbito maior que perduram. Dessas, a mais completamente invariante é o fato de pessoas e comunidades favorecidas em suas condições econômicas, sociais e políticas atribuírem virtude social e a durabilidade política àquilo que elas próprias usufruem. Essa atitude prevalece mesmo diante de evidências irrefutáveis em contrário. As crenças dos privilegiados passam a servir então à causa de prolongar o contentamento, e as ideias econômicas e políticas da época são similarmente adaptadas. Existe um sôfrego mercado político para tudo aquilo que agrada e tranquiliza. Não são poucos os interessados em servir a este mercado e em colher as recompensas resultantes em dinheiro e aplauso.” GALBRAITH. John Kenneth. A cultura do contentamento. Pioneira: São Paulo: 1992. P. 11.

[3]BEDIN, Gilmar Antonio. Os direitos do homem e o neoliberalismo. 3º ed. Ijuí: Unijuí, 2002.

[4]SUPIOT, Alain. El espiritú de filadelfia. La justicia social frente al mercado total. Península: Barcelona, 2011, p.36.

[5] .” GALBRAITH. John Kenneth. A cultura do contentamento. Pioneira: São Paulo: 1992.

 

 

 

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