O CONSENTIMENTO DA GESTANTE NO ABORTO NECESSÁRIO OU TERAPÊUTICO

15/09/2022

No Brasil, o aborto criminoso vem previsto nos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal, sendo certo que as hipóteses do chamado aborto legal vêm estampadas no art. 128 do mesmo diploma, sendo classificadas em: a)         aborto necessário ou terapêutico, se não há outro meio de salvar a vida da gestante; b) aborto humanitário, também chamado de aborto sentimental, aborto ético ou aborto piedoso, se a gravidez resulta de estupro.

Não se pode dizer, a rigor, que o Código Penal permite o aborto nessas hipóteses do art. 128, vez que consistiriam em verdadeiras causas excludentes da antijuridicidade.

Para a maioria dos doutrinadores pátrios, essas hipóteses são verdadeiras causas especiais de exclusão da antijuridicidade ou ilicitude, em que o legislador, ao invés de utilizar a expressão “não há crime” (como o fez no art. 23 do CP), preferiu a expressão “não se pune”. Não haveria crime, portanto, por exclusão da ilicitude.

Cremos, entretanto, em posição divergente, que a melhor solução seja mesmo a de considerar essas hipóteses previstas em lei como causas de exclusão da culpabilidade, em que persistiria o crime, ausente apenas a punibilidade. Ao empregar a expressão “não se pune”, o legislador deixou claro, a nosso ver, que o crime existe, estando o agente isento de punição em razão da ausência de culpabilidade, uma vez que inexistente, nas hipóteses, a reprovação social. Em outras oportunidades, o Código Penal já utilizou a expressão “é isento de pena” (semelhante a “não se pune”), como no art. 26, “caput”, para indicar ausência de imputabilidade, um dos elementos da culpabilidade.

A primeira hipótese legal de aborto é o aborto necessário, também chamado de aborto terapêutico, que é praticado quando não há outro meio de salvar a vida da gestante.

Parte da doutrina entende que haveria, nesse caso, verdadeiro estado de necessidade, a ensejar a exclusão da ilicitude da conduta do médico, exclusão esta que também alcançaria aquela pessoa que não tivesse essa qualidade profissional, como no caso de parteiras etc.

Entretanto, merece ser lembrado que o estado de necessidade somente tem lugar na presença de perigo atual, que não é exigido pelo art. 128, I, do Código Penal, conduzindo ao entendimento de que basta a certeza da morte da gestante para que o aborto necessário leve o médico à isenção de pena.

Se o agente não for médico, poderá apenas praticar o aborto necessário ou terapêutico se presente o perigo atual para a vida da gestante, evidenciando-se assim o estado de necessidade de terceiro como causa excludente da antijuridicidade.

Questão interessante e, infelizmente, pouco debatida no meio jurídico, diz respeito à eventual necessidade de consentimento da gestante, na hipótese de aborto necessário ou terapêutico.

Poderia a gestante, à vista do diagnóstico de morte em caso de levar adiante a gravidez, optar por não fazer o aborto e dar à luz a criança, mesmo à custa de sua vida? Poderia ela escolher sacrificar sua própria vida em prol da vida da criança que está por nascer?

A nosso ver, a resposta é positiva.

Acreditamos ser temerária e inapropriada a afirmação genérica, feita por grande parte da doutrina pátria, de que “o consentimento da gestante é dispensável”, fundamentando essa assertiva na indisponibilidade do direito à vida e também em disposição constante do art. 146, §3º, I, do Código Penal, que não considera constrangimento ilegal “a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”.

Nesse aspecto, cada vez mais o Direito caminha no sentido de respeitar a autonomia da vontade, baseada na liberdade que as pessoas possuem de tomar suas próprias decisões com relação à sua saúde, o não desejo de submeter-se a qualquer tratamento que prolongue sua vida, e até mesmo o direito de morrer com dignidade. Haja vista a regulamentação das Diretivas Antecipadas de Vontade – DAV (testamento vital), permitindo que as pessoas possam documentar expressamente seus desejos em relação a cuidados de saúde em casos de doença grave, degenerativa e sem possibilidade de cura, prevista na Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina - CFM. No mesmo sentido a Resolução 2.232/2019 - CFM, que estabeleceu as normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente.

Vale ressaltar, nesse passo, que o aborto necessário ou terapêutico não tem lugar apenas no momento do parto, ou seja, quando o médico decide pela preservação da vida da gestante em face do risco presente de morte. O risco de morte pode existir desde a concepção, podendo se agravar com o avanço da gestação. Essa distinção é necessária em razão de se exigir ou não o consentimento da gestante.

A nosso ver, estando a gestante no pleno gozo de suas faculdades mentais, poderá optar por prosseguir com a gravidez, mesmo em face do risco de morte, devendo ser preservada a autonomia de sua vontade, já que possui ela a liberdade de tomar as próprias decisões sobre a sua vida e saúde. Entretanto, se, no momento do parto, a gestante não estiver em condições de decidir e não tiver deixado registrada diretiva antecipada de vontade em sentido contrário, caberá ao médico, ante o risco real de morte, provocar o abortamento com respaldo na lei penal.

Em suma, encontrando-se a gestante no pleno gozo de suas faculdades mentais e podendo decidir livremente, a sua vontade deve ser respeitada pelo médico, não sendo dispensável o seu consentimento para a realização do aborto necessário. No mesmo sentido, sua autonomia e vontade devem ser respeitadas se tiver expressado seu desejo de não realização do aborto por meio de diretiva antecipada de vontade.

 

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