O caso da prisão de Anderson Torres como exemplo do Estado Democrático de Direito em funcionamento.

02/05/2023

No dia 20 de abril de 2023, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes indeferiu o pedido de liberdade provisória requerido por Anderson Gustavo Torres, no Inquérito 4923.[1] Torres foi Ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro e teve sua prisão preventiva decretada por, supostamente, estar envolvido na tentativa de golpe de Estado do dia 8 de janeiro de 2023.

Em síntese, a defesa argumentou que Torres não mais ocupa cargo público, razão pela qual não possuiria condições de interferir no curso das investigações. Foi alegado também que não haveria dados concretos aptos a demonstrar que a liberdade de Torres pudesse colocar em risco as investigações, tendo em vista o cenário de normalidade institucional vivido pelo país.

Ao fim, foi sustentado que a manutenção da prisão deveria ser analisada à luz do princípio da proteção à família. Segundo a defesa, Torres atravessa um estado de profunda tristeza emocional, o qual tem causado danos à sua saúde. Além disso, é casado, pai de três filhas menores de idade, que estariam recebendo acompanhamento psicológico, em virtude da prisão do pai.

Com base nessa ordem de argumentos, a defesa requereu a revogação da prisão preventiva de Anderson Torres. Subsidiariamente, foi requerida a substituição da prisão por medida menos gravosa. Instada a se manifestar, a Procuradoria Geral da República ofereceu parecer pela substituição da prisão preventiva por medidas menos gravosas, tais como: monitoração eletrônica, com proibição de ausentar-se do Distrito Federal; proibição de manter contato com os demais investigados; e afastamento do cargo de Delegado de Polícia Federal.

Em sua decisão, o Ministro Alexandre de Moraes sustentou que a prisão preventiva de Anderson Torres foi decretada como medida necessária para a garantia da ordem pública, a fim de impedir o planejamento de novos atos golpistas. Segundo o Ministro, a manutenção da prisão também se justifica para preservar a investigação criminal, em virtude da presença de fortes indícios de que o investigado foi conivente com a associação criminosa destinada à prática dos atos investigados.

Nesse sentido, o Ministro reputou não haver mudança do quadro fático probatório dos motivos que justificaram a prisão. Com base nessa ordem de argumentação, o Ministro não vislumbrou qualquer razão jurídica apta a revogar a prisão preventiva ou a revertê-la, pois, conforme consta da decisão, os elementos probatórios colhidos no curso das investigações atestam a atualidade dos requisitos utilizados para a sua decretação.

Ainda segundo o Ministro Alexandre de Moraes, depoimentos de testemunhas e documentos apreendidos apontam fortes indícios da participação de Anderson Torres na elaboração de uma minuta golpista e de uma operação da Polícia Rodoviária Federal com vistas a interferir no resultado das eleições presidenciais de 2022. Ademais, também haveria indícios de omissão deliberada de Torres no sentido de permitir a permanência dos acampamentos golpistas no Setor Militar Urbano de Brasília, de onde partiram os autores do ataque à Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023, bem como de seu possível envolvimento na autorização da entrada de mais de cem ônibus no referido setor de Brasília com participantes do ataque golpista às instituições da República.

Somado a isso, o Ministro Alexandre de Moraes afirmou que Anderson Torres não permitiu acesso ao seu telefone celular e das mensagens trocadas antes, durante e depois da tentativa golpista. Somente após mais de cem dias da ocorrência dos atos golpistas, Torres autorizou o acesso às suas senhas pessoais de acesso à nuvem e de seu e-mail pessoal.

A decisão repercutiu no debate público nacional. Os Professores Pedro Estevam Serrano e Fernando Hideo Lacerda publicaram artigo na Folha de São Paulo em que criticaram a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, por considerá-la abusiva, não sem antes reconhecerem a gravidade das acusações imputadas a Anderson Torres e a necessidade de sua apuração e punição após o devido processo legal.[2]  

Na visão dos professores, os fundamentos utilizados por Alexandre de Moraes seriam insuficientes para justificar a manutenção da prisão preventiva de Anderson Torres. Nas suas palavras, “os fatos imputados são graves e exigem a persecução penal, porém ainda não podem se prestar à sua responsabilização criminal sob pena de perpetuar a deletéria cultura de antecipação da punição”.

Outro ponto da crítica dos Professores Serrano e Lacerda diz respeito ao argumento do Ministro Alexandre de Moraes segundo o qual a prisão preventiva deveria ser mantida, em virtude da recusa de Anderson Torres fornecer acesso ao seu telefone celular e mensagens eletrônicas aos investigadores. Tal fato revelaria, para os autores, “uma visão autoritária do processo penal”.

Conforme argumentam, a decisão do Ministro Alexandre de Moraes pressuporia o dever de o investigado contribuir ativamente para a produção da prova, o que, da sua perspectiva, violaria o direito fundamental ao silêncio e a garantia à não autoincriminação, além de “corromper a essência da prisão cautelar, desvirtuando-a em instrumento de tortura mediante a imposição de sofrimento ao investigado como forma de obtenção de informações ou confissões”.

Concluem o texto ao argumento da necessidade de superar a “flutuação entre a impunidade e o abuso”. Assim, para os autores, a punição penal é, ao mesmo tempo, um ato civilizatório e necessário, desde que respeitados os direitos e garantia fundamentais, bem como a presunção de inocência.[3] Ao final, afirmam: “este é o único caminho possível nos trilhos da democracia constitucional brasileira”.

A título de contribuições ao debate, gostaríamos, em primeiro lugar, de destacar que estamos plenamente de acordo com os professores quanto à necessidade de proibição do excesso de punitivismo penal no Brasil e ao único caminho possível para superá-lo: os trilhos da democracia constitucional brasileira. Também concordamos com os Professores Serrano e Lacerda quanto à gravidade das acusações que pesam sobre Torres e da necessidade de punição resguardado sempre o devido processo legal e as garantias constitucionais que deste recorrem.

No entanto, não vemos a decisão do Ministro Alexandre de Moraes como abusiva. Entendemos que não se trata de decisão que se prestaria a antecipar a culpa do investigado, por mais graves que sejam as acusações a ele.

Assim, para uma análise da correção jurídico-constitucional da decisão, precisamos entender se estabeleceu a arquitetura processual-penal à luz da Constituição de 1988. Vale dizer, a legitimidade da decisão judicial não advém de um exercício de autoridade, seja ela argumentativa ou institucional, mas de sua correção à luz dos princípios e regras, aqui entendidos dworkiniamente como questões de direito, que integram a ordem constitucional-democrática. E, dentro dessa arquitetura processual-penal, se afigura central a temática das chamadas prisões processuais-penais.

Para nós, prisão processual-penal é toda e qualquer modalidade de prisão que não decorra da efetiva aplicação da pena aplicada ao condenado como medida de segregação provisória e excepcional, juridicamente delimitada, que se destina a resguardar a efetividade do próprio processo penal e dos bens jurídicos tutelados por ele.

A possibilidade de prisão processual-penal é, inclusive, institucionalizada de maneira até mesmo minuciosa pelo nosso texto constitucional. Em primeiro lugar, quando o texto estabelece, no artigo 5º, que só advirá prisão por ordem escrita e fundamenta de autoridade judiciária competente (inc. LXI). A própria previsão dos requisitos de que a prisão processual seja decretada fundamentadamente e por autoridade competente, à luz das regras constitucionais e processuais que concretizam o juiz natural, estabelece a possibilidade de que o acusado e a própria sociedade realizem um controle de sua legitimidade, seja sob o aspecto processual-formal ou substancial. Em segundo lugar, o texto constitucional estabelece, na mesma medida, direitos que são assegurados ao preso, tais como o da comunicabilidade, do juiz competente, da sua família e de seu advogado (inc. LXII) o direito à não-autoincriminação (inc. LXIII), a identificação das autoridades responsáveis pela prisão (LXIV). Em terceiro lugar, o próprio texto constitucional prevê a absoluta excepcionalidade da prisão processual-penal ao prever a necessidade de relaxamento da prisão da prisão ilegal (inc. LV) e a possibilidade de liberdade provisória (inc. LXVI).

Esse regramento constitucional estabelece os parâmetros para a regulamentação e aplicação constitucionalmente adequada do instituto da prisão processual-penal. A partir desse quadro, a doutrina costuma elencar os seguintes princípios que regem a regulamentação e aplicação do institucional. Para sermos mais concisos, destacaremos que desse regramento constitucional se extraem os princípios da excepcionalidade, jurisdicionalidade, motivação, proporcionalidade, não-culpabilidade e duração razoável.[4]

Somente com a edição da Lei 12.403/2011 é que a disciplina estabelecida no Código de Processo Penal acerca da prisão processual-penal[5] se adequou ao arcabouço constitucional. Anteriormente à edição da Lei 12.403/2011, tendo em conta o contexto autoritário da edição do Código de Processo Penal e sua inspiração no Código Rocco italiano do fascismo, a filtragem constitucional era realizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.[6]

A partir do arcabouço jurídico-processual regulamentado pela Lei 12.403/2011, a prisão processual-penal não é a única possibilidade de medida cautelar de natureza pessoal. O título IX do CPP com a redação dada pela Lei 12.403/2011 trata das medidas cautelares de natureza pessoal que podem ser, didaticamente, classificadas como as prisões preventivas e temporárias, regulada pela Lei 7.960/89 que tem requisitos comuns à preventiva, e as medidas cautelares diversas da prisão, nos termos do rol exemplificativo do art. 319 do CPP. Para o tema que nos importa, o art. 283, inclusive declarado constitucional pelas ADC`s 43,44 e 53 pelo STF, estabelece que a cautelaridade da prisão temporária e preventiva, ou seja, o fato de que elas só podem ser decretadas no curso da investigação ou do processo.

Decorre daí que, enquanto medidas cautelares, estão direcionadas a guardar relevância para o processo penal orientado constitucionalmente, isto é, eventos concretos que podem prejudicar a legítima aplicação da decisão jurisdicional. Não é por menos que a própria sistematização legal determina, no art. 282 do CPP, a exigência de que as medidas cautelares em sentido amplo devem ser aplicadas de acordo com sua necessidade para o processo penal e, de modo excepcional, para evitar a reiteração da prática das infrações penais e adequação às circunstâncias de fato, ao crime praticado e às condições do acusado. Assim, portanto, os juízos de necessidade e adequação são condições de possibilidade para a aplicação das medidas cautelares no processo e fazem parte de uma teoria da cautelaridade em um modelo constitucional de processo penal.[7]

No caso da prisão preventiva, além do cabimento legal da medida à luz das disposições o art. 313, devem ser analisados os seus requisitos à luz do caso concreto. O art. 312 do CPP impõe os requisitos, traduzidos pela doutrina processual penal, do fumus comissi delicti ou indícios de autoria e materialidade da infração penal imputada e periculum in libertatis consistente na garantia da ordem pública ou econômica, conveniência da instrução criminal ou assegurar a aplicação da penal. Esses conhecidos requisitos estão destinados a proteção de determinados interesses materiais ou da instrumentalidade qualificada. Enquanto nos dois primeiros (garantia da ordem pública ou econômica), há intensa discussão na doutrina acerca de sua constitucionalidade em virtude da vagueza e indeterminação do termo utilizado pelo legislador,[8]os requisitos da conveniência da instrução penal e assegurar a aplicação penal não levantam quaisquer questionamento quanto sua legitimidade, constitucionalidade e necessidade dentro do arcabouço processual, exatamente em virtude de sua natureza imanentemente cautelar. O requisito da conveniência da instrução criminal é revelado como a hipótese na qual o acusado prejudica o regular andamento do processo, seja intimidando testemunhas, perito ou o próprio ofendido, além de provocar incidentes, desde que desborde do exercício regular da defesa, que podem afetar o devido processo legal. Já, no que concerne, ao requisito do asseguramento da aplicação da lei penal se revela nas hipóteses de fuga real do acusado com o risco de não-aplicação da lei penal.[9]

No caso do ex-Ministro da Justiça Anderson Torres, a prisão preventiva foi decretada, no mesmo dia, pela acusação de sua participação por omissão imprópria na tentativa de golpe de Estado dos atos do dia 08 de janeiro de 2023. A acusação envolve a análise da autoria dos delitos dos artigos 2º, 3º, 5º e 6º da Lei 13.260 que define os atos terroristas, os artigos 163 (dano), 288 (associação criminosa), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito) e 359-M (golpe de Estado) do Código Penal. Se aferir a adequação ou não da tipificação, a questão é que, além do decreto prisional no Inq. 4923/DF, houve a decretação de busca e apreensão.

Por ocasião do cumprimento do mandado na residência do investigado, houve a apreensão de dispositivos eletrônicos, além do encontro de uma minuta de um Decreto que buscaria legitimar um golpe de Estado contra o resultado do pleito eleitoral. Sabemos que um golpe de Estado não é um evento ou acontecimento, mas um processo que, sem dúvida, envolve na sucessão temporal a prática de vários delitos, razão pela qual se caracteriza como uma empreitada criminosa contra toda a sociedade brasileira. Naquele primeiro momento, embora sem o mencionar, como o próprio investigado estava fora do país, estavam presentes tanto o requisito da garantia da ordem pública quanto a conveniência da instrução criminal.

A defesa do acusado requereu, em março de 2023, a revogação da prisão preventiva e aplicação de medidas cautelares diversas da prisão com base na ausência de indícios de autoria.  Em decisão de 01 de março de 2023, o relator Min. Alexandre de Moraes negou o pedido da defesa. Vasta documentação e oitiva de autoridades da segurança pública envolvidas nos dias anteriores ao 08 de janeiro, assim como o relatório do interventor, apontavam pela presença de uma operação de sabotagem na segurança pública Distrital e indicavam, com segurança, o conhecimento e a omissão deliberada do acusado. Dessa forma, a decisão apenas reafirmou a presença dos requisitos da garantia da ordem pública e a conveniência da instrução criminal enfatizando as provas que determinavam sua participação omissiva nos delitos.[10]

Naturalmente, após referida decisão, houve a prática de outros atos investigatórios, inclusive com nova oitiva do acusado requerida por sua defesa. Portanto, a defesa requereu novamente revogação da prisão preventiva reiterando, em suma, a ausência de indícios de autoria, assim como a mudança do quadro fático tal como a sua exoneração do cargo na administração do Distrito Federal, a tranquilidade institucional posterior. Como atentou o Min. Alexandre de Moraes, a mudança do quadro fático-investigatório foi para reforçar ainda mais a necessidade da prisão preventiva.

É que, como dissemos, a continuidade da investigação demonstrou a participação do acusado na operação da Polícia Rodoviária Federal no dia da votação do 2º turno das eleições que tentavam impedir, nas regiões em que Lula tinha maior votação, que eleitores chegassem até seus respectivos locais de votação. Com efeito, foi uma sabotagem eleitoral transmitida ao vivo pelas redes sociais e não há qualquer dúvida sobre tal fato. Há indícios, levantados pela investigação, de que o próprio acusado teria realizado um mapeamento eleitoral e se dirigido pessoalmente à Superintendência da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal desses locais para determinar as ações a serem realizadas. Tal indício adveio do depoimento do próprio servidor responsável pela confecção do mapeamento, a pedido do investigado.[11]

Embora seu telefone celular tenha sido entregue à investigação, somente muito tempo depois é que o investigado forneceu as senhas para o acesso aos dispositivos. Nesse ponto, de fato, não há obrigatoriedade do réu em cooperar com a investigação, sob pena de violação a não-autoincriminação. A questão toda, no entanto, é a análise de todo o quadro investigativo para saber se, ainda, persistem os requisitos da garantia da ordem pública e conveniência da instrução criminal.

Se por garantia da ordem pública quiser significar a proteção da segurança pública contra o risco da reiteração delitiva do acusado, tem-se que, no caso analisado, ele é meramente hipotético e abstrato, o que não justificaria o decreto prisional, exceto pelo desvirtuamento da cautelaridade ínsita ao instituto da prisão preventiva como antecipação da pena. Nesse ponto, concordamos com as críticas feitas à decisão.

Sob outro aspecto, não analisado pelos autores Pedro Estevam Serrano e Fernando Hideo Lacerda, a prisão preventiva se justifica. É que está para além da recusa no fornecimento das senhas. Embora não estivesse na mira da decisão primeva que decretou a prisão preventiva, a operação da Polícia Rodoviária Federal e outros órgãos a serem apurados no segundo turno da eleição faz parte do mesmo processo de tentativa de golpe de Estado que culmina no dia 08 de janeiro. Disso também ninguém coloca em questão. Para essa hipótese, no entanto, no caso de Anderson Torres há a presença da conveniência da instrução criminal.

Em primeiro lugar, não se pode desconsiderar o fato de que o acusado, ainda, ocupa o cargo de Delegado da Polícia Federal. Nesse caso, eventual revogação da prisão preventiva deveria ser seguida da assunção das funções inerentes ao cargo na instituição que o próprio acusado instrumentalizou para tentar realizar o golpe de Estado, sobretudo no que concerne a sua participação na operacionalização do golpe contra os eleitores no dia da eleição. Cargo esse que, segundo disciplina o parágrafo único do art. 2º-A da Lei 9.266/96, envolve a direção dos órgãos da Polícia Federal, além de funções de natureza jurídica e policial. Não devemos, por outro lado, esquecer que é essa mesma instituição quem conduz a investigação, tendo ele próprio como investigado. Dessa forma, seria um risco para a própria investigação, além de, no limite, uma desmoralização institucional para a Polícia Federal.

Além do mais, na investigação relativa aos atos ocorridos no dia do segundo turno das eleições, os depoimentos que corroboram a participação do acusado advêm, em algumas oportunidades, de servidores da própria Polícia Federal. Nesse caso, no exercício das atribuições de seu cargo, o acusado teria ascendência hierárquica e funcional contra essas testemunhas e de, eventualmente, corréus. Portanto, a instrução criminal seria ameaçada apenas pela consequência jurídica e fática da sua libertação.

Há, ainda, mais um argumento importante. O fato de que, sobretudo em relação ao ato golpista da PRF no 2º turno da eleição, as investigações estão em andamento com a apreensão recentes de documentos e oitivas de testemunhas essenciais que ligaria o acusado a tal prática delitiva. E mesmo o suposto argumento defensivo de que o réu tenta cooperar com a investigação é desmentido pela própria atuação do réu na investigação que chegou até mesmo a fornecer senhas erradas de e-mail.[12]Isso demonstra, na verdade, que o réu vem atuando de forma ostensiva contra a investigação. Uma coisa é juridicamente não ser obrigado a fornecer a senha, outra completamente diferente é fornecer a senha por livre e espontânea vontade. Há distinções factuais importantes e efeitos jurídicos igualmente importantes.

No entanto, o fornecimento espontâneo e errado de senhas levanta a presunção – que é relativa - de que o acusado tentou se mostrar cooperativo, mas apenas para alcançar um objetivo processual. Assim sendo, em vez de cooperar para a conveniência da instrução criminal, tal fato se mostra uma perturbação do andamento da investigação.[13]

Por último, e apenas a corroborar a presença dos requisitos, houve a impetração de habeas corpus contra a decisão de indeferimento da revogação da prisão preventiva do Min. Alexandre de Moraes. Além da reiteração da argumentação referente à ausência dos requisitos, o pedido delimitava que o paciente se encontra sob grave dano à saúde psicológica, inclusive pensando sobre “suicídio”. Sob a relatoria do Min. Barroso, os HC`s 227.313 e 227.346 foram indeferidos, sem o devido conhecimento, com a reiteração jurisprudencial do não-cabimento de habeas corpus contra decisão monocrática de Ministro, Turma ou Plenário do Supremo Tribunal Federal. No entanto, é preciso entender que essa decisão corrobora, ainda que indiretamente, a decisão do Min. Alexandre de Moraes.

É que embora não cabível - temos sérias críticas quanto a esse entendimento que limita essa garantia fundamental - se o relator tivesse se convencido da ilegalidade do decreto prisional, o CPP autoriza a concessão, ainda que de ofício, da ordem de soltura. Assim, verificada a ilegalidade, a autoridade judiciária deve relaxar qualquer espécie prisional, incluída aí a prisão na modalidade preventiva. No caso, portanto, indiretamente, o relator ratificou a ordem prisional.

De fato, a Constituição consagra a garantia à não autoincriminação, como decorrência dos direitos fundamentais à presunção de inocência e ao silêncio. Porém, a nosso ver, isso não confere aos investigados a prerrogativa de, a seu bel prazer, recusarem-se a entregar documentos e bens pessoais necessários à investigação.

Por essa razão, nos parece também excessiva a comparação da manutenção da prisão de Torres a um ato de tortura. Sua questão de saúde, por outro lado, é importante e deve ser analisada sob o prisma médico e de acordo com estrutura fornecida pelo Estado. Apenas justificaria eventual prisão domiciliar se não houver estrutura médica adequada fornecida pelo Estado à disposição do acusado. Também o Min. Alexandre de Moraes se preocupou em garantir tal direito.[14] Por isso, o cumprimento do devido processo legal e o respeito aos direitos fundamentais do acusado e segregado cautelar não pode ser equiparado a atos de barbárie, nem mesmo com objetivos retóricos, sob pena de inviabilização da própria democracia constitucional. Aliás, na relação entre civilização e barbárie, temos visto, a partir desse caso, que, até agora, o devido processo legal e o Estado de Direito vem sendo devidamente cumpridos. Por essa razão afirmamos com segurança, o Estado Democrático de Direito permanece resiliente, apesar das diversas tentativas de sua destruição.

 

Notas e referências

[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6547024. Acesso em: 25 abr. 2023.

[2] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/04/manter-anderson-torres-preso-e-antecipar-eventual-punicao.shtml. Acesso em: 25 abr. 2023.

[3] Sobre a presunção de inocência e o papel central que tem esse princípio e regra no Direito Penal e no Processo Penal, ver: PEDRON, Flávio, BAHIA, Alexandre, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Presunção de inocência: uma contribuição crítica à controvérsia em torno do julgamento do Habeas Corpus 126292 pelo Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/presuncao-de-inocencia-uma-contribuicao-critica-a-controversia-em-torno-do-julgamento-do-habeas-corpus-n-126-292-pelo-supremo-tribunal-federal-por-alexandre-gustavo-melo-franco-de-moraes-de-moraes-bahia-diogo-bacha-e-silva-flavio-quinaud-pedron-e-m.

[4] Dentre outros, ver: CRUZ, Rogerio Schietti. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. 6ª ed. Salvador: Juspodivm, 2021 e LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Vol. II. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[5] Embora conste em legislação específica (Lei 7.960/89), a prisão temporária era aplicada seguindo a arquitetura do CPP quanto a sua validade material e seus limites.

[6] O STF afirmava, por exemplo, logo em meados dos anos 90 que a gravidade abstrata do delito não era motivação suficiente para a segregação cautelar, como no RHC 79200/BA, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 13.8.99. Apenas em 2009, no entanto, o STF afirmou a inconstitucionalidade da decretação da prisão automática por vedação antecipação da pena no HC n. 84.078, rel. Min. Eros Grau, DJ 05.02.09.  De qualquer forma, o reconhecimento de excesso de prazo, assim como a imposição de limites temporais, a exigência de fundamentação idônea e concreta que configure os requisitos legais, a impossibilidade de antecipação da pena e, sobretudo, a absoluta excepcionalidade da medida prisional, sob pena de afronta ao princípio da presunção de não-culpabilidade ou da presunção de inocência são construção jurisprudenciais do STF que realizaram uma devida filtragem no CPP e na cultura autoritária que permeava a aplicação do instituto no processo-penal.

[7] BARROS, Flaviane de Magalhães, MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e medidas cautelares. Belo Horizonte, 2011.p. 34-50.

[8] Aury Lopes Jr. é do entendimento de que a decretação da prisão preventiva com fundamento nesses casos é, de per si, inconstitucional em virtude do fato de que tais conceitos, propositadamente vago, impreciso e genérico, estão direcionados à segurança pública e não à instrumentalidade qualificada, o que lhe retira o caráter cautelar ou processual (LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. Vol. II. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 116). Um autor como Rogério Schietti Cruz, no entanto, entende que é possível ao legislador ter em conta a prevenção de danos futuros a bens jurídicos com base na conduta processual e, assim, estabelecer a restrição da liberdade do sujeito passivo (CRUZ, Rogerio Schietti. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. 6ª ed. Salvador: Juspodivm, 2021. p. 274). Outros, ainda, como Maurício Zanoide de Moraes atentam para uma perspectiva conciliadora na qual a análise concreta da presença do requisito da “ordem pública” deve prever elementos tanto ínsitos ao delito quanto estranhos a ele, tais como a pena elevada do crime, as circunstâncias e formas de seu cometimento revelem a gravidade delitiva e a pequena distância temporal entre o crime e o decreto prisional (MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010).

[9] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 10ªed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 434.

[10] Decisão disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/IndeferimentoAndersonTorres.pdf, acesso em 29 de abril de 2023.

[11] https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2023/04/28/pf-recebe-mapeamento-usado-por-anderson-torres-para-operacao-no-2o-turno-das-eleicoes.ghtml, acesso em 29 de abril de 2023.

[12] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/anderson-torres-entregou-senhas-erradas-a-pf-e-e-mantido-preso/, acesso em 29 de abril de 2023.

[13] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/anderson-torres-entregou-senhas-erradas-a-pf-e-e-mantido-preso/, acesso em 29 de abril de 2023.

[14] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/04/moraes-pede-que-df-avalie-se-precisa-transferir-anderson-torres-para-hospital.ghtml, acesso em 29 de abril de 2023.

 

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