O “cambismo” e sua criminalização – Por Ricardo Antonio Andreucci

06/07/2017

Visando estabelecer normas de defesa e proteção do torcedor, assim considerado como toda pessoa que aprecia, apoia ou se associa a qualquer entidade de prática desportiva do país e acompanha a prática de determinada modalidade esportiva, a Lei n. 10.671/03, denominada “Estatuto do Torcedor”, trouxe inúmeras novidades no âmbito jurídico brasileiro, despontando como um dos poucos diplomas legislativos do gênero, no mundo, a tratar de maneira tão completa todos os aspectos envolvendo os torcedores, as torcidas organizadas, as entidades de administração do desporto, as ligas desportivas, a arbitragem, além de cuidar de outros pontos envolvidos nesta complexa atividade, tais como alimentação, transporte e segurança do torcedor e, principalmente, segurança pública e preservação da ordem.

Faltava, entretanto, para completar a proteção integral ao torcedor e aos demais envolvidos na atividade desportiva, a tutela penal das condutas praticadas em determinadas circunstâncias especializantes, o que veio a ocorrer com a entrada em vigor da Lei n. 12.299/10, que trouxe novos tipos penais que passaram a integrar o ordenamento jurídico pátrio, em salutar “novatio legis” incriminadora.

Os novos tipos penais passaram a integrar o Capítulo XI-A do Estatuto do Torcedor, criminalizando, dentre outras, as condutas de venda irregular de ingressos de evento esportivo; o tumulto, prática ou incitação de violência nas cercanias do local de realização do evento esportivo; a corrupção ativa e passiva para a prática de ação ou omissão visando alterar ou falsear o resultado de competição esportiva; e o estelionato desportivo, caracterizado pela fraude a resultado de competição esportiva.

Com relação ao denominado “cambismo”, até então não havia norma penal específica punindo a sua prática, sendo utilizada, em vários precedentes jurisprudenciais, a antiga tipificação constante do art. 2º, inciso IX, da Lei nº 1.521/51 (Lei de Economia Popular), do seguinte teor: “IX - obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ("bola de neve", "cadeias", "pichardismo" e quaisquer outros equivalentes)”.

Como se pode facilmente constatar, mediante a simples leitura do dispositivo mencionado, fica extremamente difícil sustentar a adequação típica do chamado “cambismo” à referida norma penal incriminadora, ainda mais considerando os elementos normativos “ganhos ilícitos”, “especulações” e “processos fraudulentos”, necessários à perfeita subsunção do fato ao tipo penal referido.

Mas quem são os “cambistas”? Geralmente, as pessoas que comercializam ingressos de eventos esportivos, culturais ou de entretenimento, fora dos guichês, bilheterias ou pontos de venda, são denominadas “cambistas”, expressão que tem sua origem na palavra câmbio. Câmbio significa troca, permuta, escambo, barganha, sendo corrente no vulgo popular a expressão “câmbio negro”, significando um mercado paralelo, onde se negociam mercadorias à margem da lei, irregularmente, no mais das vezes por valores muito acima daqueles estabelecidos.

Os “cambistas” adquirem ingressos pelo preço normal de venda em guichês, bilheterias ou congêneres e, depois, geralmente minutos antes dos eventos, os revendem a quem queira pagar, cobrando valor acima daquele gasto com a aquisição originária. Visam o lucro, obviamente, prestando um serviço de conveniência ou comodidade, àqueles que não se dispõe a enfrentar filas ou permanecer muito tempo à espera da compra direta do bilhete de ingresso aos shows ou eventos culturais ou de entretenimento.

Atentando apenas ao disposto no art. 2º, inciso IX, da Lei nº 1.521/51, percebe-se que, nessa prática do “cambismo”, em regra, não há “ganhos ilícitos” e nem “processos fraudulentos”. Compra do “cambista” quem quer; quem, por conveniência, se dispõe a pagar mais pela comodidade de ter acesso aos ingressos ou bilhetes imediatamente. Há, obviamente, uma “especulação”, mas que, a nosso ver, não pode ser considerada ilícita, lesiva ou fraudulenta.

Nesse sentido, são muito difundidas, hoje em dia, na maioria dos meios de comunicação e principalmente na “internet”, empresas e, até mesmo, aplicativos, que vendem ingressos de shows e eventos diversos, cobrando as denominadas “taxas de conveniência”, que fazem com que os mesmos custem valores muito acima daqueles comercializados diretamente nos guichês ou bilheterias.

Qual a diferença entre os “cambistas” e as empresas que comercializam ingressos e bilhetes cobrando as “taxas de conveniência”? Nenhuma.

Portanto, a nosso ver, é totalmente inadequada e equivocada a tipificação do “cambismo” no art. 2º, inciso IX, da Lei nº 1.521/51.

Entretanto, com o advento da Lei nº 12.299/10, foi tipificado o crime de “cambismo”, no Estatuto do Torcedor, da seguinte forma:

“Art. 41-F.  Vender ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete: Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa.”

É bem de ver, nesse aspecto, que o tipo penal se refere expressamente a “ingressos de evento esportivo”. Portanto, só há crime na conduta de “vender ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete”, não se referindo o tipo penal a ingressos de qualquer outro tipo de show, evento cultural ou de entretenimento.

Visou o legislador, com a tipificação, tutelar as relações de consumo que envolvem o torcedor e a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo. Dispõe o art. 24 do Estatuto do Torcedor que “é direito do torcedor partícipe que conste no ingresso o preço pago por ele”. Inclusive, o art. 23 estabelece que “perderá o mando de jogo por, no mínimo, seis meses, sem prejuízo das demais sanções cabíveis, a entidade de prática desportiva detentora do mando do jogo em que: I – tenha sido colocado à venda número de ingressos maior do que a capacidade de público do estádio; II – tenham entrado pessoas em número maior do que a capacidade de público do estádio; III – tenham sido disponibilizados portões de acesso ao estádio em número inferior ao recomendado pela autoridade pública”.

Em suma, chega-se à conclusão de que o crime de “cambismo” vem tipificado apenas no art. 41-F do Estatuto do Torcedor, punindo a conduta daquele que vender ingressos de evento esportivo, por preço superior ao estampado no bilhete, seja o “cambista” de porta de estádio, seja o responsável por pessoa jurídica ou empresa individual que cobre a chamada “taxa de conveniência”, que nada mais é que um “cambismo” elitizado e travestido de legalidade.

Com relação à comercialização de qualquer outro tipo de ingresso ou bilhete que não seja de evento esportivo, por preço superior ao comercializado nos guichês ou bilheterias, configura-se fato atípico, desde que não haja fraude ou ilicitude na comercialização, arcando o interessado com os custos de sua conveniência e com o lucro lícito obtido pelo “cambista”.


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