“O Brasil precisa ter uma Justiça tão dura quanto a americana”* - A mímica colonial e a operação “lava - jato”

12/09/2016

Por Samuel Mânica Radaelli – 12/09/2016

*“O herói de boutique dos chiques profissionais”

(Belchior, “Os profissionais”)

O espetacular surto de combate à corrupção vivido atualmente tem reanimado duas crenças que se comunicam: o “complexo de vira-lata”, e o punitivismo. O primeiro pode ser visto como a expressão do sentimento de inferioridade inerente à condição colonial, sendo assim nominado, por ser a face menos oculta do fenômeno colonial, claramente perceptível por estar sempre jogando um balde de água fria no sonho de um grande país. Fanon assim sintetiza este sentimento: “todo povo colonizado, isto é, todo povo no meio  do  qual  nasce  um  complexo  de inferioridade, de colocar no  túmulo a originalidade cultural  local - se situa  frente a  frente  à  linguagem  da  nação ‘civilizadora’,  isto  é,  da  cultura  metropolitana. O colonizado se fará tanto mais evadido de sua terra quanto mais ele terá feito seus, os valores culturais da metrópole. Ele será tanto mais branco quanto mais tiver rejeitado sua negrura”.[1] Mignolo nomina esta sensação como sendo uma “ferida colonial”, ou seja, “o sentimento de inferioridade imposto nos seres humanos que não se encaixam no padrão construído pelos relatos do modelo Euroamericanos. ” [2]

Diante desta situação de auto-negação, a esperança de redenção está em copiar modelos e práticas, sem qualquer juízo prévio de sua justiça, viabilidade ou ao menos adequabilidade. O apelo à cópia das práticas “euroamericanas" é reiterado no tratamento dos problemas mais latentes. Tal ímpeto é tão grande a ponto de Roberto Schwarz afirmar que a cópia é o nosso pecado original[3]. Diante de contradições tão viscerais, como as reveladas pela operação Lava-jato, seus agentes, naturalmente investidos do sentimento de redenção das (outras) instituições, não hesitam em afirmar que a saída se dará pela cópia das práticas feitas em países centrais. Primeiro se alardeou os feitos da italiana “operação Mão Limpas”; por agora, advogam a inspiração imitativa do modelo judicial e penal americano. Qual é a novidade disso? No período militar ressoou a frase de Juracy Magalhães “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, pontificando um mantra enraizado no modo como muitos brasileiros compreendem o Brasil.

A busca pela imitação de sistemas jurídicos e judiciais de países centrais não possui nenhuma novidade, ela é apenas versão jurídica da velha prática de mímica colonial. Movido pelo sentimento de inferioridade, o colonizado anseia pela inserção na cultura do colonizador, assim assume uma prática imitativa, nela reproduz visões de si mesmo pautadas pelos elementos culturais e sociais da cultura dominante. Tal realidade é bem descrita por Bhabha: “A mímica surge como objeto de representação de uma diferença que é ela mesma um processo de recusa. A mímica é assim o signo de uma articulação dupla, uma estratégia complexa de reforma, regulação e disciplina que se “apropria” do Outro ao vislumbrar o poder.”[4]

Nessa situação de ambivalência e deslocamento produzido pela mímica, o sujeito colonizado encarna uma posição em que é “quase o mesmo” em relação ao colonizador, mas não o é de forma integral.  O que implica em fazer do colonizado um eterno subalterno, pois mesmo adquirindo todos os elementos da cultura colonizadora, nunca fará parte dela, a não ser como apêndice. A imagem imperfeita decorrente da mímica denuncia de forma latente a posição de inferioridade assumida pelo colonizado, pois ao ser a própria imagem imperfeita do colonizador, deixa claro que pode ser no máximo assemelhado a ele.[5]

O deslizamento mimético produz uma ilusória identificação, com tamanho efeito, que aquilo que é nacional e faz parte da sua cultura se torna estranho, ridículo e provoca aversão.  Com isso alimenta-se um círculo vicioso de colonialidade, pois ao negar-se a si mesmo e sua condição, em razão da tentativa de pertencer ao mundo do colonizador, o qual é visto de forma sublime, acaba por impedir as possibilidades de autenticidade, elemento fundamental para romper com o sentimento de inferioridade. Mesmo diante do maior esforço jamais será como o colonizador, nem será integrado a esta cultura, pois a rejeição é um elemento definidor destas relações. Há uma tendência de desencontro e exílio, pois passa a localizar-se no que Bhabha chama de “Entre-lugar”, as posturas miméticas revelam esta condição, afinal “não é um europeu e nem mesmo um indiano, não é nem um nem outro. É um ser inclassificável que perdeu a essência de sua própria cultura, sua própria identidade ao tentar se apropriar de algo considerado superior que é a cultura da metrópole”.[6]

A mímica colonial revela-se como sendo uma eficaz e incrementada estratégia do poder e do saber colonizante, como expõe Bhabha, ela se mostra ao Outro, como fonte de fundamentação, mediante a cópia tem-se a relativização da cultura subalterna. Sua prática, oriunda do sentimento de inferioridade, ao invés de amenizá-lo acaba por fortalecê-lo, pois reflete a cultura de submissão e auto-negação inerente à “ferida colonial”.

A superação da corrupção, ou de outros problemas sociais que afetam o país, necessita pautar-se pela compreensão dos elementos estruturais desta sociedade, não em uma esperança redentora vinda de além-mar. Os ideais oriundos da “lava-jato” revelam a tentativa de resolver os nossos problemas sem diagnosticá-los. Resumir a origem da corrupção na “brandura das leis”, e a partir de uma visão sublime dos países centrais pugnar por um punitivismo medieval, é um ato de inocência subalterna. Nestas latitudes a autenticidade é pressuposto e objetivo, é meio e fim.


Notas e Referências:

[1] FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. 2º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p.12.

[2] MIGNOLO,Walter. A idea de américa latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007, p. 17

[3] SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 126.

[4] BHABHA, Homi. O local da cultura. trad.: Myriam Àvila, Eliana Lourenço Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2014, p. 140.

[5] BHABHA, Homi. O local da cultura. trad.: Myriam Àvila, Eliana Lourenço Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2014, p. 140-156.

[6] BHABHA, Homi. O local da cultura. trad.: Myriam Àvila, Eliana Lourenço Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2014, p. 140-156.


Samuel Mânica Radaelli. Samuel Mânica Radaelli é Doutorando em Direito (UFSC), Mestre em Direito Público (UNISINOS), Professor do Instituto Federal do Paraná – IFPR e advogado. Membro do Grupo de Estudos Direitos Sociais e América Latina – GEDIS. Email:radaelliadvocacia@yahoo.com.br.. .


Imagem Ilustrativa do Post: Old Bailey and Lady Justice // Foto de: James Burke // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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