O bê-á-bá da desmilitarização – Por André Sampaio

12/02/2017

Eventualmente certos acontecimentos têm o condão de trazer novamente à tona um debate vetusto mas ainda sem perspectiva de clímax: deve-se ou não desmilitarizar a polícia? Recentemente o caos instaurado a partir da greve da polícia militar do Espírito Santo fez com que os antípodas à bandeira da desmilitarização se valessem da situação como evidência de que tal processo não poderia ser realizado, dando a entender que o resultado seria o mesmo percebido nas cidades capixabas.

Não se sabe se por desonestidade intelectual ou por carência de informação, o que se vê é na verdade uma tentativa de equiparar à desmilitarização da polícia a sua total e completa extinção. Assim, visando contribuir para esse debate e esclarecer eventuais pontos obscuros, tentarei o mais didaticamente possível explicar a que se refere esse processo.

Primeiramente não posso jamais me furtar de destacar a relevância social do papel de policiamento ostensivo, atualmente desencadeado pelas polícias militares dos Estados, em regra. Trata-se da principal força estatal de proteção do civil, a que se coloca em patrulha urbana para chegar mais rapidamente ao local de um eventual conflito. Ademais, é importante destacar que este serviço é prestado em condições profundamente adversas, não bastasse o robusto risco de morte que circunda o ofício, salários baixos e carência estrutural são apenas dois dos inúmeros obstáculos que o oficial da polícia militar precisa lidar diuturnamente.

No entanto, convém salientar que a opção por uma polícia ostensiva militarizada não é nada mais do que isso, uma “opção”; a PM ganhou os contornos atuais a partir da ditadura militar e seu término não provocou sua desmilitarização ou aquartelamento, o “grande acordo” de transição para a democracia – trajeto aparentemente nunca realizado por completo – contou com a participação do Coronel Jarbas Passarinho, que defendeu a preservação da configuração anterior, no que tange ao policiamento ostensivo, separada do investigativo, realizado, em regra, pelas polícias civis, pelo menos no que tange aos crimes de competência da “justiça” estadual.

Atribui-se à militarização muitas das mazelas constatadas na atuação de seus oficiais, o que me parece levemente exagerado. A unificação das polícias – em suas funções ostensiva e investigativa – pode trazer grandes contribuições à segurança pública, mas certamente não será a panaceia. Se assim o fosse não constataríamos todos os abusos realizados por oficiais de uma polícia desmilitarizada, como se visualiza muito claramente em algumas operações ianques.

Desde a perspectiva da sociedade, a unificação traria dois principais benefícios, um de caráter orçamentário, visto que os recursos empregados poderiam ser mais bem manejados, e um segundo a título de conveniência investigativa, já que uma polícia de “ciclo completo” seria mais operacional na apuração de fatos aparentemente criminosos. Todavia os maiores beneficiários seriam os próprios oficiais, pelo menos os de baixa patente: a extinção de certas patentes e a flexibilização de certa excrecência disciplinar lhes proporcionaria, no mínimo, condições muito mais dignas de trabalho e abertura para dialogar em prol de melhorias.

Desmilitarizar não é desarmar a polícia, tampouco privar-lhe de sua disciplina e ainda menos extinguir sua função ostensiva. A situação em Espírito Santo não tem absolutamente nada a ver com o tema. Se se pretende usá-la como método de verificação de uma hipótese que seja a da necessidade – inegável – de uma função policial ostensiva, quem sabe assim conseguindo condições laborais mais justas.

Desde outra perspectiva, pode ser a comprovação da hipótese de que menos do que uma função concreta de prevenção de delitos por sua presença física, percebo nesse tipo de evento – não podemos nos olvidar de algo muito parecido ocorrido em Pernambuco, anos atrás – uma função simbólica muito pungente. Clóvis de Barros Filho afirma, aparentemente com razão, que a constante substituição de regras mínimas de convivência social (ética) por mecanismos de controle exógenos enfraquece aquelas, visto que a inexorável conclusão é a de que uma vez ausentes tais mecanismos tudo é permitido.

É surpreendente o fato de uma greve de uma instituição desencadear essa onda de crimes. Se partirmos do pressuposto que a polícia é uma instituição historicamente recente – durante grande parte da história vivemos sem policiamento urbano aos moldes das forças colonizadoras das metrópoles[1] – podemos indagar que modelo de sociedade criamos ao ponto de precisarmos tão contundentemente de uma instituição de modo que um estado de guerra se irrompa em razão de sua ausência.

As idiossincrasias estruturais da polícia revelam que se trata de um verdadeiro dispositivo autoritário, cuja função – de manutenção da ordem pública – conserva a sociedade em todo seu teor, com suas benesses e mazelas. Mas conservar uma sociedade tão patologicamente dependente de seus serviços é o que precisamos?

Fato é que buscar uma polícia imbuída de valores democráticos tem se revelado tarefa hercúlea. Muito tem se falado do modelo de polícia comunitária, no qual há uma aproximação com a população a que serve. Porém não podemos esquecer das particularidades estruturais de nossa sociedade, com determinadas zonas urbanas tão dominadas por forças paraestatais que essa aproximação do policial poderia ser letal.

Precisamos de uma polícia mais sintonizada a axiomas de cariz democrático, mas precisamos, acima de tudo, de uma sociedade mais afinada com esses axiomas! E, independentemente da sociedade que construamos, sempre – ou pelo menos por um bom tempo – será necessária uma força de patrulhamento ostensivo que sirva aos interesses sociais e não estatais, como muitas vezes parece ocorrer.

Nessa senda, a desmilitarização parece ser um primeiro (pequeno) passo. A própria ONU, em 2012, por seu Conselho de Direitos Humanos, já a recomendou; o governo respondeu que não poderia atendê-la em virtude de uma questão constitucional. Porém tramita no Congresso a PEC n. 51, de 2013, que possui justamente esse desiderato. Em um exercício pueril de futurologia arrisco vaticinar seu fracasso, pelo menos em curto prazo.

A evidente necessidade da função de policiamento ostensivo impende que busquemos sempre melhorias institucionais que reverberem diretamente em seu agir social. É fundamental nos divorciarmos de um modelo anacrônico, colonial, para alcançarmos a conciliação de interesses de seu corpo – com condições verdadeiramente dignas de trabalho – e da comunidade em que se insere, com uma inevitável aproximação. Se a militarização é uma opção deve-se indagar a quem ela serve, com o sério risco de chegarmos à conclusão de que o maior beneficiário é aquele general de dez estrelas da canção de Renato Russo.


Notas e Referências:

[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. Coleção Saberes críticos. São Paulo: Saraiva, 2012.


Imagem Ilustrativa do Post: BPChoque // Foto de: André Gustavo Stumpf // Sem alterações

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