O afastamento liminar de Renan Calheiros e a suprema vaidade. Uma narrativa do jogo de xadrez da política

07/12/2016

Por Tânia Maria S. de Oliveira – 07/12/2016

Há algum tempo juristas preocupam-se e denunciam a crescente exacerbação de poder nas decisões do Judiciário. Nesse diapasão pode-se afirmar que o Supremo Tribunal Federal, para muito além do debate de ativismo judicial, tem se esmerado em ultrapassar todos os limites no que respeita a independência dos poderes. Isso, bom que se reitere, com o beneplácito do silêncio e conveniência do Poder Legislativo, por interesse ou omissão.

A prisão do senador Delcídio do Amaral há pouco mais de um ano foi o desaguar do momento atual. Abriu-se, a meu sentir, naquele momento, uma porta para que qualquer decisão emanada de nossa suprema corte pudesse ser considerada legítima e legal, ainda que feita em flagrante descumprimento de preceito constitucional. Outro não foi o recado dado pelo Senado Federal ao confirmar, na mesma tarde, o veredito dado.

Ao confirmar a mais-que-criativa tese que encontrou flagrante e inafiançabilidade em uma escuta ambiental, que tratava de uma ideia de fuga de um investigado - em óbvia reação ao fato de que ministros da Corte eram citados no diálogo - o Senado confirmou ao STF um poder que ele, de fato, não tinha, e cujo óbice é cristalino no texto constitucional: prender um parlamentar no exercício do mandato.[1] Uma vez superado o obstáculo maior, tudo o mais se apresentas banal. Adotando uma premissa jurídica comezinha, o que vale para mais, vale para menos. Se pode prender, afastar de cargo é simples.

Seguindo a tônica, no dia 18 de março último, ministro Gilmar Mendes, do alto de sua magnânima atuação isenta (alto teor de ironia incluído) cassou a nomeação do ministro chefe da casa civil feita pela Presidenta da República, com uma fútil alegação de desvio de finalidade na indicação do ex-presidente Lula para o cargo, já que, segundo ele, o ato visava a que eventual denúncia fosse julgada pelo STF A ninguém da nossa inteligente mídia parece ter ocorrido perguntar-lhe porque ser julgado pela Corte a qual pertence é considerado um benefício para o réu...

O caso Eduardo Cunha viria em seguida ao processo de impeachment.  Foi afastado não apenas do cargo de presidente da Câmara, mas do mandato para o qual fora eleito por decisão do Pleno do STF. Feito inédito e comemorado por todos os seus adversários e inimigos públicos, o que, em se tratando de Cunha, é um número muito significativo.

O pêndulo do nosso check and balances, se existia, quebrou há algum tempo. Vivemos o que se conveniou chamar de “ditadura de togas”, embora muitos, dentro das academias ou no mundo político, finjam não ver ou façam esse exercício de análise apenas quando a vítima da exorbitância é aliado político. Ao que tudo indica, na sociedade veloz e espetaculosa que vivemos, o comodismo, cedo ou tarde, cobra seu quinhão.

A decisão do ministro Marco Aurélio que afastou da presidência do Senado e do Congresso Nacional o presidente Renan Calheiros é apenas a mesma face dessa moeda: uma guerra de vaidades internas de quem manda mais no tabuleiro de xadrez dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, cujo comportamento oscila entre o mais evidente corporativismo e acomodação das divergências e as disputas de egos. E, diferente do que imaginam alguns, o despacho foi proferido nos mesmos autos.

Para entender a delonga é preciso recuperar a sucessão de fatos que redundou na liminar proferida ontem.

O partido Rede Sustentabilidade ajuizou, no dia 04 de maio de 2016, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 402, com pedido de liminar, contra a permanência de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) na Presidência da Câmara dos Deputados após o Plenário da Corte ter recebido denúncia contra ele no Inquérito (INQ) 3983, em março deste ano. O pedido resume-se a que o Supremos fixe, com eficácia vinculante, o entendimento de que o exercício dos cargos que estão na linha de substituição da presidência da República por pessoas que sejam réus perante o STF é incompatível com Constituição Federal. O partido requereu liminarmente o afastamento provisório de Eduardo Cunha do cargo de presidente da Câmara até que sobrevenha decisão definitiva sobre a ADPF. A ação foi distribuída ao Ministro Marco Aurélio e foi pautada imediatamente para o dia seguinte, 05 de maio, pelo então presidente Lewandowski. Havia a notícia que o voto de Marco Aurélio seria pelo deferimento da ação.

Ocorre que havia sobre a mesa de seu colega ministro Teori Zavascki pedido da Procuradoria-Geral da República feito cinco meses antes, em dezembro de 2015, pedindo o afastamento de Cunha por uso do cargo em prol de interesses particulares. Pressionado pela iminência de uma decisão que o colocaria na difícil situação de quem “sentou em cima do processo”, para usar o jargão comum, Teori deferiu a liminar naquela mesma madrugada e foi além do que poderia ir Marco Aurélio: afastou Cunha não apenas da presidência, mas também do mandato parlamentar. O pleno referendou a decisão na Ação Cautelar 4070, o que tornou o exame da cautelar na ADPF prejudicada. Xeque-mate.

Aqui um ponto a acrescentar é que Teori Zavascki fez questão de ressaltar que a liminar foi tomada ante "situação extraordinária, excepcional e, por isso, pontual". Irônico se considerarmos o teor das decisões dos juízes do STF na atual quadra histórica, em que a exceção virou regra.

Ao pautar, no dia 03 de novembro último, a ADPF 402, Marco Aurélio foi seguido pela maioria do STF, no sentido de que réus no Supremo não possam ocupar cargos que estão na linha direta de substituição do presidente da República. O julgamento, contudo, foi interrompido porque Dias Toffoli pediu vista do processo faltando 4 votos, o seu incluído, para concluir o julgamento.

A concessão de liminar de Marco Aurélio fundamenta-se no pedido do partido Rede Sustentabilidade na mesma ADPF 402, de questão superveniente derivada do fato de Renan Calheiros, presidente do Senado, ter se tornado réu na operação Lava Jato por decisão do Pleno do STF no dia 1º de dezembro de 2016, pela alegada prática do crime de peculato, estando, pois, no impedimento de figurar na linha sucessória.

Para muito além de adentrar no mérito da ADPF - que merece um debate à parte – o fato inexorável é que, ainda que se questione as intenções de pedido de vista com maioria formada, Marco Aurélio concedeu uma liminar com julgamento não concluído. Desnecessário dizer que qualquer ministro pode mudar seu voto antes da conclusão do julgamento. E a essa altura obviamente os aliados de Renan Calheiros – governo Temer incluído - estão jogando todas as suas fichas nisso.

Ato contínuo, Renan reuniu nesta terça-feira (06) a Mesa Diretora do Senado para proferir uma decisão em que se recusa a cumprir o afastamento, com fundamento no art. 53, § 3º da Constituição Federal, que trata da competência para declarar a perda do mandado de senador, sem esclarecer, contudo, sua jurisdição para descumprir decisão judicial. Isso com direito a duas versões de redação.

Nessa sucessão de jogadas perigosas em que impera a vaidade, a Suprema Corte do país decide cada dia mais com viés político, adentrando a esfera das competências dos outros poderes, diante de um legislativo em regra apático e pouco reativo. O rechaço, por seu turno, aparece de forma distorcida no intricado momento, aumentando a total instabilidade do país já deflagrada pelo impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, e acirrando a crise entre poderes.

Uma equação de soma zero, de falta de equilíbrio e racionalidade, onde quem perde é a democracia e o Estado de Direito.


Notas e Referências:

[1] Escrevi texto sobre isso disponível em: http://emporiododireito.com.br/dois-erros-nenhum-acerto-a-apreciacao-da-prisao-do-senador-delcidio-do-amaral-no-senado-federal-por-tania-m-s-oliveira/


Tânia M. S. Oliveira. . Tânia Maria S. de Oliveira é Mestre e Pós-graduada em Direito. Pesquisadora do GCcrim/Unb. Assessora jurídica no Senado. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Senador Renan Calheiros // Foto de: PMDB Nacional // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/pmdbnacional/13104648824

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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