O acesso da defesa às informações do inquérito policial: uma garantia de eficácia do contraditório

31/01/2016

1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu texto um rol de direitos fundamentais assegurados ao cidadão pela condição de ser cidadão. Os direitos fundamentais ali previstos têm como uma de suas finalidades dotar de sentido e eficácia o que prescreveu o próprio texto constitucional em seu primeiro artigo, elevando-se, até mesmo, a condição suprema de fundamento do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana. Na mesma senda de outros textos constitucionais, soa como tendência a dignidade da pessoa humana como fundamento de legitimidade do próprio Estado, necessário se ver o saber doutrinário neste ponto:

[…] vinculada à noção de liberdades e de direitos inerentes à natureza (racional) humana, a dignidade passou a ser gradativamente reconhecida e tutelada pelo direito positivo, tanto constitucional quanto internacional, assumindo, no que parece existir considerável dose de consenso, a condição de legitimidade do Estado e do Direito, espécie de valor-fonte (Miguel Reale) (SARLET, 2013, p. 122).

Surge daí que a dignidade da pessoa humana longe de encerrar um conceito extremamente abstrato, deve-se ter uma conformação concreta e atenta ao modelo de justiça criminal que, na atualidade, utiliza-se da sua potestade para punir cidadãos presumidamente inocentes. Vale dizer: a dignidade da pessoa humana deve servir de represamento às condutas violadoras de preceitos fundamentais. Neste sentido, o magistério lapidar de Roig (2015, p. 22) “Trata-se, afinal, de um compromisso constitucional das tais agências, firmado em defesa da substancialidade dos direitos fundamentais do acusado. A intensificação do encarceramento opõe-se à liberdade e justiça (…)”.

De mais a mais, aporta-se ao art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, o anfitrião do presente artigo. O contraditório ali lançado e aplicável tanto ao processo judicial, como administrativo é possuidor de duas faces, como prescreve Lopes Jr. (2015, p. 95), citando Fazzalari “no primeiro momento, é o direito à informação (conhecimento); no segundo, é a efetiva e igualitária participação das partes. É a igualdade de armas e oportunidade”.

Deste modo, negar-se eficácia ao contraditório constitucionalmente assegurado aos acusados em geral (repita-se: em geral), a pretexto de não ser o inquérito policial um processo estritamente falando, nem mesmo haver acusação, só poder ser ato de injustiça velada e atentatória aos mais comezinhos princípios constitucionais. Viola-se a dignidade da pessoa humana, em sua face descriminalizante, pois a missão constitucional dirigida às agências jurídicas por meio da inserção da proteção da dignidade da pessoa humana é exatamente o de zelar pela máxima eficácia dos direitos constitucionais, em seu bojo estando inserida a presunção de inocência, o contraditório, a ampla defesa, o bem estar social, a redução das desigualdades econômicas e sociais, etc.

Ademais, o processo penal deve ser visto como meio de conter o poder punitivo do Estado, há, assim um comprometimento daqueles que desejam dotar de eficácia a Constituição Federal, com esta limitação. Esta missão é enunciada por Zaffaroni quando prescreve que (1991, p. 181): “A principal função que cumprimos é a de pôr limites ao exercício do poder punitivo. Mais ainda: ou servimos para isso ou não servimos para nada”.

Em sendo assim, destoa do ambiente constitucional arranjado pós-1988 um procedimento totalmente sigiloso e, por vezes, oculto. Faz-se necessário, nesta toada, análise mais aprofundada ao derredor do tema.

2. Desenvolvimento

2.1 – Os sistemas processuais

Soaria como um verdadeiro despautério se iniciar um trabalho versado sobre o inquérito policial, peça longe de ser imprescindível ao processo, mas cotidianamente utilizada para fundamentar decretos condenatórios, submeter um sujeito (de direitos!) ao banco dos réus, sem abrir um tópico a respeito dos sistemas processuais existentes e suas implicações dogmáticas no processo. Não se buscará – até em conformidade com os limites que o tema se impõe – repisar conceitos, farta história ou demonstração da inquisitoriedade no processo penal brasileiro. Pincelar traços a respeito dos sistemas é dever estrutural, quando se fala em uma investigação que pode servir para represar um estigma do indivíduo ou impor esta marca para o resto da sua vida pelo seio social.

Colhem-se da história dois sistemas processuais que se seguiram para conformar o processo à mentalidade do seu povo. O sistema acusatório data até os finais do século XII, quando é “substituído” pelo sistema inquisitório, prevalecente, como a nomenclatura sugere e a vida ensina, na Idade Média, com a imposição de fábricas da verdade no processo, os fins justificando os meios e a tortura ocorrendo em nome de Cristo, em uma caça desenfreada pelas “bruxas” (onde se encontra a legitimidade para queimá-las? Na fé?).

Em breves linhas, depreende-se que o sistema acusatório é aquele concebido a partir da divisão de tarefas no processo penal, sobretudo com o protagonismo das partes (notadamente a gestão probatória em suas mãos). Há acusador e julgador facilmente visível e reconhecido (!), tratamento igualitário das partes, publicidade no processo como regra e a possibilidade de impugnação dos feitos judiciais que devem ser fundamentados, para assegurar o controle destes atos (tanto interno, quanto externo). A esta altura, dúvida não se tem que este é o modelo assegurado pela Constituição Federal de 1988.

O sistema inquisitório, por outro lado, representa o anverso do que acima se exaltou. Pelo próprio clima que rondava a Idade Média, a desigualdade de armas entre as partes era notável, a imparcialidade do juiz extremamente comprometida com a busca da verdade, vez que se vestia de parte para coletar a prova e, convencido do que se viu (custe o que custar: direitos fundamentais ao vento!) sentenciava, sendo a condenação um caminho necessário e, por vezes, de desagravo às “bruxarias” cometidas por um sujeito. Tendo, o juiz, a gestão da prova em seus ombros, o famoso quadro mental paranóico já enunciado por Franco Cordero com a prevalência das hipóteses sobre os fatos, era um fato real e concreto.

Logo se vê que o modelo instaurado pela Constituição Federal é notadamente acusatório, todavia o Código de Processo Penal tem o seu viés inquisitório assegurado (como se conclui por uma breve leitura do art. 156, I, CPP/41), com tímidas manifestações do modelo acusatório fruto de suor dos que defendem a CF/88. Cabe, ao intérprete como se verá a seguir, uma análise do texto que dê conformação e compatibilidade de uma legislação infraconstitucional à Constituição, sob risco de expurgo do texto que violar este documento nacional.

Por estas linhas, vê-se que o inquérito é procedimento inquisitorial. Sobre esta peça informativa, necessário se faz a lembrança de que um dos futuros personagens processuais pode não estar presente no inquérito policial, mas, quando presente, deve se ater a missão de garantias. Este é o entendimento coligido por Lopes Jr. (2015, p. 119):

No processo penal brasileiro, o juiz mantém-se afastado da investigação preliminar – como autêntico garantidor – limitando-se a exercer o controle formal da prisão em flagrante e a autorizar aquelas medidas restritivas de direitos (cautelares, busca e apreensão intervenções telefônicas etc.). O alheamento é uma importante garantia de imparcialidade e, apesar de existirem alguns dispositivos que permitam a atuação de ofício, os juízes devem condicionar sua atuação à prévia invocação do MP, da própria polícia ou do sujeito passivo. (Lopes Jr., 2015, p. 119)

Vê-se deste modo, que a preservação do alheamento do juiz aos atos investigatórios é essencial, para subordinar-se a imprescindível imparcialidade constitucionalmente esperada e desejada. Este futuro personagem processual, deve presumir a inocência do cidadão e esperar que as provas lhe venham aos olhos e não as suas mãos a tragam ao conhecimento do processo.

2.2 – O inquérito policial

O inquérito policial não é o único objeto do nosso trabalho, razão pela qual deve dele ser pinçados, os elementos essenciais e inevitáveis que tenham estreita conexão com o tema, para a contextualização necessária.

Ato primário para inserir este mecanismo de investigação no contexto pretendido é a persecução da sua natureza jurídica. Sem maiores contemporizações, vê-se que o inquérito policial não é um processo. Esta conclusão se chega, dentre outros pontos a serem tocados, a partir da ausência de um órgão investido de jurisdição (pressuposto existencial processualmente necessário) com competência para tomar decisões submetidas à cláusulas de reserva jurisdicional. O inquérito policial é tocado, como o seu próprio nome sugere, por uma autoridade policial, no maior número de vezes, incumbida de colher fatos com suficiência e capacidade para formar a “opinio delicti” do acusador incumbido de denunciar ou não o sujeito (detentor de direitos, frise-se!) daquela investigação. Pelo quanto aqui se laçou, vê-se que o inquérito é procedimento pré-processual, servível ao acusador e não ao processo, pouco menos ao juiz da causa (!).

Coligado a atividade de direcionamento ao processo ou ao não processo, no terreno do inquérito policial também podem brotar medidas cautelares com plena afetação aos direitos fundamentais. Para atestar este drástico fato, basta uma leitura perfunctória do inquisitório art. 311 do Código de Processo Penal: “em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial” (grifamos).

O artigo transcrito acima dá a tônica do perigo que há na parcela doutrinária e, infelizmente, jurisprudencial que tem negado o contraditório em sede do inquérito. Permitir que um indivíduo seja preso, logo ter dele retirado um dos direitos mais elementares que é a liberdade, sem ao menos ter tido audiência para ser ouvido acerca do que ali se apura é uma máxima inteiramente desajustada ao ordenamento jurídico, que tem em sua cúspide uma Constituição que consagra direito básicos e, portanto, fundamentais.

Do exposto, vê-se que o inquérito policial, a par de doutrinariamente ser classificado como procedimento pré-processual tem a sua periculosidade centrada também na capacidade de afetação das garantias básicas do cidadão. Eis o ponto essencial da análise da afetação de direitos fundamentais (sobretudo o contraditório), em inquérito policial, como uma das garantias de defesa.

2.3 – O contraditório

O contraditório, como supradito, em lapidar lição de Lopes Jr. deve ser visto a partir de duas faces. Pela primeira, deve o imputado ter, ao menos, conhecimento do que tramita sobre sua vida, deve ter minimamente condições de conhecer do acervo fático que lhe imputam ainda que a título precário. Na segunda face do contraditório, pode-se ver uma garantia à paridade de armas no processo penal, a possibilidade que tem a defesa de, por meio do conhecimento dantes conquistado, impulsionar uma reação ao que se notou. Um verdadeiro represamento de feitos, com possibilidade de também disputar aquilo que foi feito por acusador.

Além desses dois dimensionamentos dados ao contraditório, bem como a potencialidade do inquérito policial para gerar medidas que minimizam o direito dos imputados, é preciso descer às práticas judiciárias, onde a “mecanização” do processo é fato notório. O contraditório deve ser permitido (em pelo menos uma de suas faces, a do conhecimento)- ainda que a estrutura dialética do processo não tenha sido solidificada – no intuito de dar conformação jurídica aos fatos dissonantes ao que se daria com o ato de indiciamento (e, consequencialmente, repetido pelo Promotor de Justiça e recebido pelo juiz, fazendo com que o agora réu tenha condições de manifestar-se somente em sua defesa “prévia”), para assim livrar da pena-processo aplicada sumariamente com o recebimento da denúncia subsidiada pelo inquérito policial. A supressão desta fase o que seria uma lesão corporal seguida de morte, pode ser apontada como homicídio e o seu rito próprio do júri ali aplicado, com as ingerências da população que avizinha ao réu, podendo julgá-lo e, daí em diante, vê-lo como um tremendo criminoso nato digno de repulsa e distanciamento no seio social.

A doutrina excelsa de Badaró (2015, p. 52) pode nos conduzir a um dimensionamento deste contraditório com a finalidade de envidar esforços em demonstração contrária do que no inquérito policial já estava sendo apurado.

Deve-se procurar evitar a surpresa não só em relação ao material probatório, mas também em relação à matéria debatida. Nem sempre a questão de direito se resolve em um simples processo de subsunção. Aliás, o processo de subsunção apresenta um iter bastante complexo, embora frequentemente este não aflore na decisão judicial, parecendo algo simples e automático. Embora a tipicidade penal pareça atenuar o problema, nem sempre é fácil qualificar juridicamente os fatos. (BADARÓ, 2015, p. 52).

Assim sendo, é preciso conhecer e permitir que a defesa também produza provas no inquérito policial, para ajudar na reconstrução dos fatos que ali se diz, neste diapasão, o magistério de Malan (2012, p.96):

De fato, durante essa fase investigativa podem ser produzidas provas cautelares, não reproduzíveis ou antecipadas, todas elas passiveis de valoração pelo juiz criminal na sentença (art. 155 do CPP). Nesse sentido, o acusado (na acepção ampla, abrangente do investigado, indiciado etc.) tem legítimo interesse em amealhar, já na fase de investigação preliminar do delito, elementos informativos que lhe sejam favoráveis – seja por ensejarem juízo de admissibilidade da acusação seja por influenciarem favoravelmente o convencimento do juiz na sentença (MALAN, 2012, p. 96).

Em louvor ao contraditório, sobreveio a Súmula Vinculante de nº 14 (SV nº 14), cujo texto é: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. O escorço fático que ensejou a propositura desta Súmula com efeitos vinculantes segue a uma intensa violação do que já estava positivado em lei federal. Sim(!), o direito da defesa já constava no Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), em seu art. 7º, incisos XIII e XV. O que o Supremo Tribunal Federal construiu foi exatamente um atalho para os advogados sujeitos a violação dos seus direitos (garantidos em estatuto), como também dos seus constituintes (violação do contraditório constitucional). Agora, os causídicos podem agir reprimindo as atitudes cotidianamente perpetradas nos distritos policiais, por meio da Reclamação Constitucional, prevista no art. 103-A da Lei Fundamental.

Sobre a SV nº 14, assim como a saliência imposta por Lopes Jr. (2015, p. 174), é importante lembrar que o constituído não pode ter acesso a todo e qualquer meio de informação, inclusive aqueles em cursos. As informações que a defesa pode ter acesso são aquelas já documentadas, que não serão alteradas, salvo por determinação judicial (v.g. desentranhamento de algum elemento informativo). As informações que eventualmente se buscarem no tramitar no inquérito policial, no exato momento da colheita dos elementos defensivos, podem ser restringidas, sob pena de frustrar a investigação que tem se realizado. Este não é o espírito da SV nem o que ela quer assegurar. Busca-se pacificar, com o instrumento sumário o acesso do defensor as informações já aportadas ao inquérito. Por consequência, as ressalvas precisam ser também feitas quanto ao sigilo dos atos de investigação. O sigilo pode ser decretado para os estranhos à investigação, não para aqueles imersos nela. Vale dizer: há sigilo para terceiros, mas não pode haver para as partes que protagonizam aquele procedimento, conforme julgamento do HC 88.520/AP pelo pleno do Supremo Tribunal Federal. Para os protagonistas, vale tão somente o sigilo das informações ainda pendentes de documentação.

Dos fólios que compuseram a Proposta desta Súmula Vinculante objeto de estudo, colhe-se o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que enuncia a mesma relação que se dar aqui, entre o contraditório e a dignidade da pessoa humana:

Não se pode perder de vista que a boa aplicação dessas garantias configura elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica. Como amplamente reconhecido o princípio da dignidade da pessoa humana impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais.

Assim, reconhecendo-se no bojo do futuro processo, uma pena ali cominada (e, servindo o inquérito ao processo e não processo), resta difícil de acreditar – como já se demonstrou supra – que as ingerências estatais na vida do imputado a troco de um procedimento exaustivo, possuidor de forte carga de estigma, podem ser prescindindas do necessário e inarredável (e mínimo!) conhecimento do que já se tem apurado, em sede policial.

Ainda que o entendimento restou solidificado no STF, pela criação da SV nº 14 (em 2012), nem sempre os Tribunais decidiram assim, o que demonstra o ganho doutrinário para a formação desta trincheira de resistência ao poder do Estado. Colhe-se do Superior Tribunal de Justiça entendimento datado de 2005 que, se antes já era estranho, hoje não pode encontrar amparo jurídico para sustentar-se:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO. CONCURSO DE PESSOAS. DÚVIDA QUANDO DO RECONHECIMENTO DOS DENUNCIADOS PELA VÍTIMA EM JUÍZO. AUSÊNCIA DE OUTRAS PROVAS PRODUZIDAS COM OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. ABSOLVIÇAO COMO ÚNICA SOLUÇAO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O fato de a vítima haver reconhecido os pacientes como autores do delito na fase inquisitorial não se mostra suficiente para sustentar o decreto condenatório, principalmente quando em Juízo o reconhecimento dos denunciados não se realizou com convicção, além de não ter sido produzida, ao longo da instrução criminal, qualquer outra prova que pudesse firmar a conduta delitiva denunciada e a eles atribuída. 2. O inquérito policial é procedimento meramente informativo, que não se submete ao crivo do contraditório e no qual não se garante aos indiciados o exercício da ampla defesa, razão pela qual impõe-se, na hipótese, a absolvição dos denunciados. 3. Ordem concedida para restabelecer a sentença absolutória. (STJ – HC 39192/SP; Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima – Quinta turma, DJ 01/07/2005)

Eis a demonstração de ganho e dever de luta pela eficácia do preceito constitucional e da Súmula com efeitos vinculantes, a fim de restar concretizado o que a Constituição já enunciava desde o seu nascedouro.

2.4 – O contraditório no inquérito policial

Ao longo de todo este escólio o que se buscou colacionar é o entendimento da possibilidade de incidência do contraditório em sede de inquérito policial. Entretanto, este entendimento não encontra amparo na totalidade da doutrina nacional. Em sendo assim, por razões de justiça intelectual, aqui se deve também enfrentar o comportamento dissonante, buscando hermeneuticamente combater os argumentos ali envidados.

Os que negam a eficácia do contraditório em sede de inquérito acentuam que a Constituição Federal de 1988 quando plasmou a ampla defesa e o contraditório só desejou a aplicação desses dois princípios em sede processual – a teor do art. 5º, LV – e, como se viu supra, não há falar em processo, em fase de inquérito. De fato, processo e procedimento não são palavras sinônimas. Entretanto, não se pode negar eficácia a um direito fundamental, quando o próprio legislador infraconstitucional cometeu o equívoco quando legislou sobre matéria que deveria estar rubricada como “procedimento comum” e “procedimento sumário”. Pela defesa doutrinária deste posicionamento, se tem as nobre lições de Lopes Jr (2015, p. 170) quando prescreve que a própria postura do legislador processual é incorreta:

A postura do legislador foi claramente protetora, e a confusão terminológica (falar em processo administrativo quando deveria ser procedimento) não pode servir de obstáculo para sua aplicação no inquérito policial, até porque o legislador ordinário cometeu o mesmo erro ao tratar como “Do Processo Comum”, “Do Processo Sumário” etc., quando na verdade queria dizer “procedimento” (grifos originais do texto) (LOPES JR., 2015, p. 170)

Se este argumento não basta, uma busca na doutrina constitucional dos mostra que um dos princípios hermenêuticos para dotar de real sentido a CF/88 é o da máxima efetividade. Do magistério do professor baiano Cunha Jr. (2013, p. 220) colhe-se a significação e a importância deste princípio: “orienta o intérprete a atribuir às normas constitucionais o sentido que maior efetividade lhe dê, visando otimizar ou maximizar a norma para dela extrair todas as suas potencialidades” (grifamos). Prossegue o constitucionalista identificado o terreno mais fértil deste princípio ao dizer: “atualmente tem incidência maior no âmbito dos direitos fundamentais, onde é freqüentemente invocado” (grifamos).

Vê-se nessas linhas que em sendo o contraditório reconhecidamente um direito fundamental e esta qualidade de direitos pertencendo a todo ser humano pela única razão de “ser humano”, em toda situação onde um cidadão esteja com potencialidades de sofrer a reprimenda estatal aos seus direitos, deve-se também ali ser concedida a mesma moeda de incidência dos princípios tutelares, extraindo, portanto, todo o sentido a que estava vocacionada a norma jurídica.

Repudia-se, ainda, a aplicação do contraditório em sede de inquérito policial por negar a qualidade de acusado, inserto no texto constitucional, àqueles que estão submetidos a uma condição tão somente de investigados. Ora, o patrocinador deste argumento deve ser lunático ao acreditar que a condição imposta a um cidadão de (até mesmo!) violarem sua liberdade, sua intimidade, etc. seja diferente daquela que se tem em um processo judicial. Aliás, o processo judicial, com todas as suas agruras, ainda tem sido um lugar menos sombrio ao ser humano do que a fase de inquérito, pois lá, ao menos, a ausência de sua defesa gera nulidade absoluta, aqui, em sede de inquérito, apega-se a todos os santos para reconhecer o direito mínimo ao conhecimento das informações. Em sendo assim, qual a desgraça perpetrada por um indivíduo a ponto de fazê-lo merecer a mordaça, a palidez e os ouvidos moucos do Judiciário, para se negar a mínima face do contraditório constitucionalmente assegurado a ele?

Entretanto, o texto constitucional foi sapiente, embora extremamente mal interpretado aos insensíveis que negam o contraditório (até mesmo quando se conhece o breve cenário demonstrado acima), ao vaticinar a aparição de almas inquisitorialmente maculadas que buscariam esvaziar o seu sentido. Lançou em seu texto a expressão “em geral” e, nesta senda, impossível não fazer reminiscências novamente a Lopes Jr. (2015, p. 170):

Sucede que a expressão empregada não foi só acusados, mas sim aos acusados em geral¸ devendo nela ser compreendidos também o indiciamento e qualquer imputação determinada (como a que pode ser feita numa notícia-crime ou representação), pois não deixam de ser imputação em sentido amplo. Em outras palavras, qualquer forma de imputação determinada representa uma acusação em sentido amplo. Por isso o legislador empregou acusados em geral, para abranger um leque de situações, com um sentido muito mais amplo que a mera acusação formal (vinculada ao exercício da ação penal) e com um claro intuito de proteger o sujeito passivo.(LOPES JR., 2015, p. 170)

Tendo estas máximas acima lançadas como premissas imprescindíveis, faz-se necessário, como já se afirmou anteriormente que toda a atividade que possibilita o contraditório não é idêntica àquela que tem lugar em sede processual, como concretou Giacomolli (2015, p. 162). Isto porque, não há (repise-se!) a dialeticidade intrínseca ao escorço do processo, há, uma atividade voltada essencialmente para a apuração de indícios de suposta violação de infração penal. De mesmo modo, não há motivos para diminuir a importância do inquérito, mas conformá-lo a uma lógica constitucionalmente estabelecida, pois este mesmo inquérito que é processo serve para a tomada de medidas essenciais à liberdade humana, por exemplo.

Deste breve relato essencial, vê-se que acompanhar a doutrina que diz ausente o contraditório em fase de inquérito é negar sentido aos princípios constitucionalmente arregimentados, possibilitando que a Lei Fundamental do Estado, transforme-se em mera folha de papel, no dizer de Lassalle (1998, p. 53). 

3. Conclusão

Daí então nota-se que o inquérito policial, além das suas finalidades doutrinariamente professadas (servir à formação da opinio delicti para a denúncia ou arquivamento das peças informativas do inquérito policial), tem o condão de restringir a liberdade, por exemplo, do cidadão, sem ter processo e com a sua inocência presumida. É um cenário em que os direitos fundamentais são extremamente rarefeitos, como cotidianamente assistimos. O estado de desolação e a violência psicológica que pode ser (e é freqüentemente) praticada pelo Estado por meio de suas investigações silenciosas e ocultas é absolutamente incompatível com o império dos direitos fundamentais, pacificado, sobretudo, com o neoconstitucionalismo e concretizado na dignidade da pessoa humana.

Negar a mínima face do contraditório em um cenário permissivo de medidas cautelares que tem o mesmo grau de afetação das garantias constitucionais, quando se está diante de um processo judicial é absurdamente incompatível com o modelo de ordenamento jurídico tracejado pela Lei Fundamental. Além disso, as vestes inquisitoriais que deitam raízes nos ombros de membros das Cortes deste país devem ser combatida com a eficácia e a interpretação em ampliado dos fundamentais direitos do indivíduo. A Súmula Vinculante nº 14 é um instrumento a serviço do represamento das desgraças diariamente praticadas, onde indivíduos tem a sua prisão decretada ao menos sem saber o que cometeram, famílias investigadas pelo só fato de ser família. Os instrumentos penais a serviço do Estado são extremamente invasivos e as garantias constitucionais são as maiores contenções dos destemperos praticados. A instrumentalização do homem é modelo incompatível e que já deveria estar proscrito dessas nossas práticas judiciárias, servindo tão somente para recontar a história do povo, causando vergonha aos ouvintes.

O processo penal tem em sua própria estrutura um palco montado que favorece à atenção de uma sociedade. A ritualística inafastável (começando pelas vestes judiciárias, passando-se pelos debates das partes tomados por palavras nunca ouvidas) forma um cenário propício para a descoberta do caminho pelo qual transpassará o corpo cidadão. Um processo democrático é aquele visto como necessário à aparição de uma pena (se formada estiver a culpa do sujeito) ou a absolvição se imporá. Para qualquer dos resultados, os atos que compuserem e servirem a este percurso deve ser encharcado com as suas limitações necessárias. Vê-se nos direitos fundamentais uma barreira a este poder, logo, inafastável a sua aplicação deste caminho.

In fine, em entrevista à revista Época nos anos de 2.005, José Saramago acenava que “na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente, somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto”. Em sendo o inquérito um instrumento também de persecução às mãos do Estado e, portanto de poder, é imprescindível permitir que o cidadão possa colocar os olhos acerca do que se tem produzido sobre ele e tenha possibilidades efetivas de alterar a sua situação jurídica, prezando pelo efetivo conhecimento, com a capacidade de não ser tomado pela surpresa de uma imputação extremamente violadora à sua culpabilidade. O inquérito não deve ser um instrumento de coerção por ser oculto, nem mesmo o Estado prevalecer-se deste argumento para desviá-lo da sua finalidade!


Notas e Referências:

BADARÓ, Gustavo H. Processo Penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

BRASIL. Constituição Federal de 1988, de 05 de Outubro de 1988.

BRASIL. Código de Processo Penal – Decreto-Lei nº 3689, de 03 de Outubro de 1941.

CANOTILHO GOMES, J. J.; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

CUNHA Jr.; Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. Salvador: Juspodivm, 2013.

Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/SUV_14__PSV_1.pdf, acessado em 17 de Dezembro de 2015.

Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT1061569-1666-2,00.html, acessado em 18 de Dezembro de 2015.

GIACOMOLLI, Nereu J. O devido processo penal: Abordagem Conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1998.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, 2015

MALAN, Diogo. Investigação defensiva no processo penalRBCCrim, ano 20, vol. 96, p. 296, 2012

ROIG, Rodrigo D. E. Aplicação da pena. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

ZAFFARONI, Eugenio, R. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.


Vinícius Ferraz de Andrade Simões.
Vinícius Ferraz de Andrade Simões é Bacharelando em Direito pela Universidade Católica do Salvador, 6º semestre. Ex-estagiário da Defensoria Pública do Estado da Bahia e Estagiário do Ministério Público do Estado da Bahia. Associado ao IBCCRIM.
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