Numa visão constitucional, em se tratando de flagrante, o ônus da prova ainda é da acusação!

24/10/2015

Por Aphonso Vinicius Garbin - 24/10/2015

Quando começamos a tratar do ônus da prova no processo penal, ainda na faculdade, nos é ensinado (via de regra) que ele compete a aquele que alega, e que a acusação deve provar a autoria e materialidade delitiva, enquanto a defesa deve provar a inocência. Iniciamos a prática jurídica, passamos a pesquisar a jurisprudência (e alguns códigos e manuais), e lá vemos novamente os mantras.

De tão ecoadas que são, as afirmativas de que “o ônus da prova compete a aquela que alega[1] e que “a acusação deve provar o crime e a defesa a inocência do réu”, nos faz crer que um flagrante de delito é algo absoluto, extreme de dúvidas, porque: o crime foi presenciado por testemunhas; ou o réu foi pego logo após os fatos em poder da res, ou do instrumento do delito; com notas miúdas e uma porção de droga. Esta prova (que ainda é indiciária) deve ser derruída pelo réu, deve ele provar que é inocente, sob pena de condenação. Inverte-se, portanto, o ônus da prova (veja-se aqui do TJSC, e aqui do aqui do TJMG, por exemplo), numa indevida importação da teoria do Direito do Consumidor, e a aplicação dela não é rara nas lavras de julgados Brasil afora.

Pois bem. Ao tratar do ônus da prova, o art. 156, caput, do Código de Processo Penal define que “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício”, contudo sua primeira parte deve ser vista sob o manto da garantia constitucional da presunção de inocência (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 551), sob pena de, caso não se fizer, fazer dela uma letra morta na Carta Magna. A leitura que carece ser feita do artigo é a de que o réu deve rebater as provas produzidas em seu desfavor, desobrigado de provar a sua inocência sob pena de presumir-se culpado (CHOUKR, 2014, p. 370).

A Constituição Federal veda que o legislador ordinário transmita o ônus da prova ao réu, tendo ele de provar ser inocente, de modo que a presunção de inocência lança o dever probatório totalmente à acusação, onde ela deverá provar cabalmente que o réu incorreu num tipo penal, numa conduta “objetiva e subjetivamente típica, ilícita e reprovável” (CHOUKR, 2014, p. 370), com provas produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa (CRFB, art. 5º, LV).

Assim, sob a ótica constitucional, mesmo em hipóteses de flagrante de delito, o ônus da prova ainda compete à acusação, não havendo o que se falar em “inversão do ônus da prova”!‏

É que uma sentença condenatória no Direito Processual Penal deve estar acompanhada prova inequívoca produzida sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, cabendo ao órgão acusador providencia-las para corroborar sua pretensão punitiva, enquanto o réu as contrapõe; havendo dúvida, ela milita em favor deste.

O processo penal pátrio, sob qualquer ângulo que seja visto, deve estar alinhavado à exigência constitucional da presunção de inocência do réu, a qual tem valor fundamental no sistema probatório. Dizer que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença criminal condenatória transmite todo o ônus da prova à acusação, cabendo a esta provar a existência do crime e a sua autoria (OLIVEIRA, 2014, p. 335), nada pode ser presumido em desfavor do réu, tudo que se afirmar contra ele deve ser provado.

Assim é que, tratando do tema em caso concreto, Amilton Bueno de Carvalho, enquanto Desembargador do Tribunal de Justiça Gaúcho, afirmou em seus julgados que "Quanto ao entendimento de que os acusados tinham ônus no processo, outra vez, vênia, penso diferente: acusado não tem carga probatória alguma; a carga alcança unicamente àquele que persegue. A dita inversão da carga não tem respaldo no sistema: o autor da ação penal é quem deve provar" (BRASIL - Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.  Quinta Câmara Criminal. Ap. Crim. nº 70049217607, julgado em 04/07/2012).

Não quer se dizer que o réu não deve fazer prova alguma. Sem medo de errar, afirma-se que à defesa compete provar a excludente de culpabilidade ou antijuricidade, operando uma “divisão de funções” na atividade probatória (CHOUKR, 2014, p. 371), de maneira justa, alinhavada à ordem constitucional.

Neste norte, mesmo que o agente seja preso em flagrante, a carga probatória de ser ele o autor do delito ou a materialidade do crime compete unicamente à acusação. O flagrante, conforme já dito, é apenas prova indiciária, e não absoluta, não exime a confecção de novas provas pelo autor da ação penal, devendo ele trazer elementos probatórios que tragam ao juízo a certeza fundamental dos fatos lançados na denúncia, na medida em que os incisos II, V e VII, do art. 386 do Código de Processo Penal definem que a ausência ou carência de prova é um dos vetores que levam o julgador a promover a absolvição do réu.

É que “a presunção de inocência deve ser colocada como o significante primeiro, pelo qual, independentemente de prisão em flagrante, o acusado inicia o jogo absolvido. A derrubada da muralha da inocência é função do jogador acusador. Aqui descabem presunções de culpabilidade. O processo, como jogo, deverá apontar pelas informações obtidas no seu decorrer, a comprovação da hipótese acusatória, obtida por decisão judicial fundamentada” (ROSA, 2013).

Conforme ensina Nestor Távora (2013, pp. 405-406) o silêncio do réu não deve ser tido como confissão, a ausência de produção de provas por ele, a inercia total da defesa, jamais eximem acusação de provar suas alegações, deve ela corroborar o que diz, posto que a dúvida sempre está em favor do réu, inobstante a ocorrência do flagrante.

Lenio Luiz Streck (2015), quando escreveu que “No TJ-MG o MP não precisa provar acusação; lá invertem o ônus da prova”, bem esclareceu o tema do dever probatório e a prova indiciária mesmo que em flagrância, afirmando que "Não há — e não pode haver — presunção de culpabilidade no direito penal. Além disso, o artigo 5º do Código de Processo Penal (CPP) ainda vale. E não há responsabilidade objetiva. Não há inversão do ônus prova. Nem mesmo é permitido usar a tese em direito penal de que álibi não provado, réu culpado. Quem deve provar a acusação é o Estado. O réu pode permanecer em silêncio. Esse silêncio não é imoral. Não é inconstitucional. A responsabilidade é só do Ministério Público. Mesmo que o sujeito seja pego com a mão na massa, isso não quer dizer que se inverta o ônus da prova. Aliás, se alguém é encontrado de posse da res furtivae, tal circunstância não passa de prova indiciária. Não há uma relação de causa e efeito inexorável. É como o sujeito que entra em uma sala molhado. E lá fora está chovendo. Isso quer dizer que ele veio da chuva? Provavelmente. Mas não prova que, por exemplo, não possa ter sido molhado de outro modo. Simples assim [...] É lamentável que ainda hoje, no Brasil, queira-se aplicar no direito processual penal uma tese do, pasmem, direito do consumidor. Sim, no CDC existe a inversão do ônus da prova porque... Por que será? Ah, sim. Porque o consumidor é a parte mais fraca. Hipossuficiente. Pois é. Inverter o ônus da prova no direito penal-processual penal é o mesmo que dizer que, no confronto entre o Estado e o réu, a parte fraca...é o Estado. Dureza".

Desta forma, podemos concluir, sem medo de errar, que mesmo nas hipóteses de flagrante, sob a ótica constitucional ainda compete à acusação o ônus da prova dos fatos imputados ao agente, que sempre está sob o manto da presunção de inocência até que se prove fidedignamente o contrário.


Notas e Referências:

[1] No caso da defesa: sob pena de presumir-se culpado.

BRASIL - Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.  Quinta Câmara Criminal. Ap. Crim. nº 70049217607, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, julgado em 04/07/2012.

CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

ROSA, Alexandre Morais da. Devido processo (penal) substancial: 25 anos depois da CR/88. Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional, v. 1, n. 01, p. 145-164, dez. 2013. Disponível em http://revistadocejur.tjsc.jus.br/cejur/article/download/29/33 <Acessado em 16dez2014>

OLIVEIRA, Eugenio Pacelli. Curso de processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

STRECK, Lenio Luiz. No TJ-MG o MP não precisa provar acusação; lá invertem o ônus da prova. Revista Consultor Jurídico, 05 de fevereiro de 2015. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2015-fev-05/senso-incomum-tj-mg-mp-nao-provar-acusacao-la-invertem-onus-prova>. Acessado em 06fev2015.

TÁVORA, Nestor. Curso de direito processual penal. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2013.


Aphonso Garbin

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Aphonso Vinicius Garbin é Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Advogado Criminalista.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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