Novo CPC e a mudança paradigmática na solução de conflitos tributários: tendências e desafios da advocacia pública nesse novo cenário

26/08/2016

Por Dayana de Carvalho Uhdre - 26/08/2016

O Novo CPC entrou em vigor em meados de março do ano corrente, e apesar das críticas (muitas das quais pertinentes) que recebeu, está tendo papel fundamental na mudança paradigmática pela qual o processo judicial tem passado. O judiciário, em que pese os esforços empreendidos a tanto, não consegue resolver, o que atualmente significa sentenciar, com a rapidez que os demandantes esperam, os conflitos a ele submetidos.

Ainda que se aumente o número de magistrados, de servidores, bem como amplie-se a estrutura do Poder Judiciário brasileiro, o ponto a ser questionado é quanto à própria eficiência e saturação máxima de uma tal organização. Dito de outra forma, há de se perquirir qual seria a perspectiva de crescimento de conflitos sociais a desembocar no judiciário nos próximos anos, levando-se em conta a taxa de crescimento populacional, a complexização das relações sociais, a fim de se dimensionar a necessidade estrutural do Judiciário para os próximos anos. Ainda, é de se perguntar qual seria o custo econômico envolvido na manutenção de superestruturas versus os benefícios diretos (valor demandado, por exemplo) e indiretos (satisfação dos litigantes, maior necessidade de arrecadação tributária) auferidos em tal forma organizacional.

Pois bem, mesmo não sendo economista, é possível se deduzir que há uma saturação máxima dessa forma de organização estrutural. É dizer, há um limite para que o aumento da estrutura Judiciária responda de forma ótima e positiva ao crescimento das demandas judiciais submetidas a esse Poder. Para além desse “ponto ótimo”, as “falhas de mercado”, as externalidades negativas tendem a ser cada vez mais intensas que os benefícios obtidos. Daí a necessidade de se vislumbrar outras formas de solução dos conflitos sociais. Há quem nomine tais formas como “meios alternativos de soluções”, colocando-os como coadjuvantes ao protagonismo da resolução judicial. Porém, crê-se que o momento seja de inauguração de novas possibilidades, mais adequadas à tipologia dos conflitos que se apresentem. É dizer, consoante o conflito que se apresente, há formas mais adequadas à determinação do litígio. Fala-se, portanto, em “sistema multiportas”.

O novo CPC está imerso a esse contexto e tem a importante missão de estabelecer as novas tendências, direcionar a forma como os conflitos sociais deverão ser resolvidos. E aqui, vislumbramos o pontapé inicial à mudança paradigmática: para além de um diploma legislativo regente do processo judicial – isto é, dos ritos, atos e trâmites dos processos judiciais -, o novo CPC adota o mencionado “sistema multiportas” de resolução de conflitos sociais.

Está-se vivenciando, portanto, uma mudança no trato dos conflitos sociais: o Direito apresenta mais de um caminho possível, além da judicialização. Porém, apenas uma mudança legislativa não é suficiente para romper com a tradição belicosa da processualização judicial das lides, tão arraigada na cultura brasileira. E, é justamente nesse ponto que reside os desafios para a Advocacia em geral, e especialmente para a Advocacia Pública: implementar uma nova cultura de determinação de litígios, mais afeta a consensualidade que a beligerância pura e simples. E, tal desafio é especialmente direcionado a Advocacia Pública ante o volume tanto em termos absoluto quanto proporcionais de ações propostas pelos, ou em face dos Entes Públicos.

Nota-se, porém, uma certa resistência a essa ideia, isto é, de a Administração Pública estar submetida à solução de conflitos, inclusive de natureza tributária, por meio da autocomposição. E tal resistência é fulcrada, dentre outros, nos princípios da indisponibilidade do interesse público, da legalidade, da isonomia entre os administrados.

No entanto, creio que é necessário desmitificar alguns desses postulados, reconhecendo-se que, em que pese algumas peculiaridades inerentes e cuidados necessários, não só é possível à “Administração Pública” autocompor seus conflitos, como tal resolução consensual pode-se mostrar bastante eficiente – o que atende a outro princípio constitucional igualmente relevante (art. 37, caput da Constituição Federal).

A discussão acerca da possibilidade de se prever em diplomas normativos a resolução autocompositiva pelos entes federados (inclusive as Fazendas Públicas), a perdeu fôlego. E, assim o é em razão de que nas última décadas, tal previsão restar expressa em inúmeros diplomas normativos (lei do juizado especial da fazenda pública, nova lei de arbitragem, NCPC). Têm-se verificado, ainda, a expedição, no âmbito interno das procuradorias públicas, de atos administrativos que permitam a seus membros não contestarem ou recorrerem em matérias pacificadas na jurisprudência ou cujo custo do litígio é desproporcional ante o diminuto proveito que eventualmente o ente público goze.

No entanto, apesar desses avanços de índole normativa, vige muitos outros obstáculos, agora de natureza institucional e cultural, para que a resolução de conflitos em que os entes públicos participe se dê com a celebração de conciliações. Destarte, apesar da existência, como vimos, de diplomas legislativos expressamente prevendo a possibilidade da Administração Pública transigir, dúvidas persistem sobre a possibilidade de transação em categorias específicas de litígios.

A distinção mais comum nessa matéria, no plano doutrinário é o que se faz entre direitos disponíveis e indisponíveis. Consoante a doutrina mais moderna, fulcrada nas lições de RENATO ALESSI, direitos disponíveis seriam aqueles de cunho eminentemente patrimonial, correspondendo ao chamado “interesse público secundário” da Administração Pública, e direitos indisponíveis seriam aqueles atinentes, por exemplo, ao exercício do poder de polícia da Administração ou, ainda, vinculados aos “interesses públicos primários” em geral, os quais também podem ser vistos como todos aqueles que em maior ou menor medida afetem direitos fundamentais.

Na primeira categoria enquadra-se, sem maiores dificuldades, os conflitos de natureza tributária, os conflitos envolvendo pagamento de indenizações por parte do Estado ou do particular (ação de reparação de danos ou desapropriação), os conflitos decorrentes de relações contratuais privadas nas quais o Estado se vê envolvido, ou ainda aqueles decorrentes da atuação direta do Estado na esfera econômica, por intermédio de empresas públicas. Já na segunda categoria, parece ser possível enquadrar o chamado poder de polícia, bem como os conflitos surgidos da prestação de serviços públicos.

No entanto, ainda do que tange aos chamados direitos indisponíveis, há de se destacar que “indisponibilidade” não significa “intransigibilidade”. Dois exemplos clássicos ilustram o que se está a afirmar: o direito a alimentos, associado que está à própria subsistência, e portanto ao direito à vida, mesmo sendo indisponível, sempre foi objeto entre o alimentante e alimentado. Da mesma forma, os direitos trabalhistas, associados à sobrevivência, à segurança do trabalhador, em que pese serem indisponíveis sempre foram negociáveis.

No que nos interessa mais de perto, isto é, no que se refere à transação em matéria tributária, ainda que nos apeguemos ao argumento, exarado por alguns, de que seria direito indisponível, tal indisponibilidade não significa intransigibilidade. No entanto, consoante supra mencionamos, nem de direito indisponível se trata, posto que os créditos tributários referem-se aos interesses públicos secundários. É dizer, muito da resistência que se mostra à transação em matéria tributária, notadamente no que tange ao argumento da indisponibilidade desse direito, não se sustenta.

O reconhecimento da possibilidade da transação em matéria tributária (assim como relativamente a outros direitos disponíveis e aos direitos indisponíveis) não afasta a necessidade de superar-se os inúmeros outros obstáculos, apontados em doutrina. É necessário que, para além da previsão de tal possibilidade em diplomas legislativos (obstáculos de natureza normativa, de mais fácil superação, como assinalamos), institucionalmente se delineie, de forma adequada, tal possibilidade, disciplinando quais os agentes competentes à transigirem, em que casos e em que limites, e prevendo eventual responsabilidade se não o fizerem. Obviamente que, em face aos princípios da legalidade e da isonomia entre os administrados (contribuintes), tais previsões, ao menos em seus caracteres fundamentais, devem vir disciplinado em lei, e observar as situações semelhantes – regulamentando-as de forma semelhante – e discrepantes – normatizando-as de forma distinta à medida de suas desigualdades.

Ainda, é preciso que os advogados públicos, justamente por serem os agentes responsáveis pelas conciliações, modifiquem a cultura jurídica por demais burocratizada, educando-se e atualizando-se a fim de atender as demandas atuais de utilização de técnicas conciliatórias. Por outro lado, é necessário que se prevejam prerrogativas e garantias ao advogado público que transija dentro dos limites que lhe foram normativamente impostos, a fim de salvaguardá-lo de eventual responsabilização pelo Tribunal de Contas ou pelo próprio Ministério Público, em razão de divergências interpretativas quanto a proteção ao interesse público.

Lançado o desafio pelo Novo CPC, muitos são os obstáculos a serem superados para que se possa, enfim, superar a beligerância inerente a judicialização dos conflitos sociais, e ingressar-se num paradigma em que a consensualidade, pela autocomposição dos conflitos, seja preponderante..


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Dayana de Carvalho Uhdre é Procuradora do Estado do Paraná. Pós-Graduação pelo IBET. Mestre em Direito pela UFPR. Professora de Graduação e Pós-Graduações.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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