Ninguém tem o monopólio do discurso (da razão ou virtude). Quando é que vamos aprender que não precisamos de heróis? Quem foi que disse que a lei criminal não se aplica às autoridades públicas da repressão? - Por Jorge Coutinho Paschoal

15/12/2016

Por Jorge Coutinho Paschoal – 15/12/2016

O direito e o processo penal, para regozijo – ou desespero (risos) - dos penalistas, são matérias apaixonantes e de inquestionável interesse da população. Ninguém fica alheio à sua discussão.

Em matéria penal, todos, efetivamente, tornam-se grandes juristas, falando como se tivessem PhD em Harvard. Certamente, não se vê tanto interesse das pessoas em discutirem um Projeto de Novo Código Comercial como se constata com os projetos de leis penais, como se deu, mais recentemente, com o Projeto de Novo Código Penal, em 2012 e, hoje, de novo, com o Pacote de Medidas de combate à corrupção.

Ao contrário do que muitos pensam, é bom que haja esse amplo interesse e debate em nossa sociedade, pois, em uma verdadeira República, é desejável que não apenas os professores, os advogados e as autoridades encarregadas da repressão se apropriem do assunto, mas também as pessoas comuns, isto é, o homem do povo, desde o mais simples ao mais culto. Afinal, era este o modelo de democracia que sempre almejamos, não é mesmo? É bonito ver que as pessoas passaram a se participar do debate, acompanhando até sessões legislativas para discutir projetos de lei. Quando pensaríamos assistir a algo assim, com pessoas tão engajadas?

Reputo saudável que todas as pessoas sejam ouvidas, que as sugestões sejam feitas, não para serem desprezadas ou humilhadas, por mais despropositadas que algumas possam parecer (afinal, muitas pessoas são leigas), já que, em prol da dignidade humana e do respeito ao ser humano, ninguém deve ser excluído do diálogo, devendo ser levado a sério e em consideração.

Devem ser feitas, obviamente, as filtragens necessárias, devendo ser respeitados os princípios e garantias fundamentais, que o homem comum muitas vezes não entende a razão de sua importância, passando a compreendê-la quando é alvo da persecução penal e de abusos.

Seja como for, TODOS devem ser ouvidos, não tendo ninguém o monopólio do discurso, da virtude ou da razão, ou a prerrogativa de restringir (ou pautar) o debate público.

Um dos problemas em nosso país é se almejam salvadores da pátria. E o dilema é quando os eleitos a tanto passam a agir como se fossem deuses na terra e incorporam um papel (e uma responsabilidade) que não é seu (ou sua). Nada contra quem quer que seja, quer seja A, B ou C, seja Tício, Mévio ou Caio.

Deve-se atentar para o perigo das paixões, que cegam a ponto de uma mesma pessoa condenar uma ditadura, mas não se ver qualquer problema em endeusar um governante que instituiu, justamente, outra ditadura (mas simpática à causa que se gosta).

O erro está em endeusar (ou demonizar) PESSOAS, sem se olhar para o mérito (ou demérito) das IDEIAIS, da AÇÃO e da CONDUTA de cada qual. E, sob certa medida, o ponto deste artigo é precisamente este: todas essas reformas penais, que se querem aprovar para ontem, estão impregnadas de ideologias e de cultos a personalismos, que, não obstante a boa-fé de muitos, podem incorrer em equívocos e nos levar, mais uma vez, para o buraco.

De um lado há aqueles que pregam a mudança da lei, visando diminuir a impunidade que, ao ver de muitos, impera no país, com foco no combate à corrupção. Para tanto, foram propostas as assim intituladas “10 (dez) medidas contra a corrupção”, por iniciativa do Ministério Público Federal. Ao ver de alguns, seriam “desmedidas”, com o que não concordo, considerando, em parte, o viés pessoal e também ideológico nas críticas.

Em prol da aprovação, argumenta-se que milhões de pessoas assinaram o projeto enviado ao Congresso Nacional; contudo, poucos leram, efetivamente, as propostas.

Na verdade, ao se ler a proposta, ali havia bem mais que dez medidas, transcendendo (em muito) a persecução penal quanto aos delitos de corrupção.

A esse respeito, entre nós se queria instituir o Plea Bargain, nos moldes de um direito penal norte americano, em que há ampla negociação da pena e do próprio procedimento criminal. A um leigo mais desavisado isso poderia parecer algo bom e simples, mas o ponto é que isso “apenas” mudaria todo o nosso sistema criminal.

Se lá nos EUA essa sistemática dá certo (aqui não faço juízo de valor do direito estadunidense, afinal cada povo tem a sua cultura jurídica e é um erro querer fazer importações apressadas e acríticas de um ordenamento a outro), no Brasil haveria problemas, sendo de se apontar para o próprio fracasso da Lei 9.099/95, com o acordo previsto para algumas hipóteses legais.

O risco que se teria ao aprovar aquilo (e que já ocorre, em certa medida, com a colaboração premiada) é que os grandes corruptos não mais passariam a ser presos, cumprindo as suas penas em regime domiciliar, no aconchego de suas imensas mansões, por meio de acordos muito bem discutidos e avaliados por seus advogados. Enquanto isso, os clientes preferenciais do sistema penal, as pessoas mais carentes, passariam a não ter sequer um devido processo legal, já que o acordo lhe seria imposto goela abaixo[1]. Ora, já não é assim que ocorre com as já discutíveis propostas de transação penal, em que sequer há, muitas vezes, legitimidade à acusação? A diferença é que, com a reforma que se pretendia aprovar, o patamar das coisas mudaria um pouco, já que se passaria a negociar não mais “apenas” a multa ou uma pena restritiva de direitos, mas sim a privação da liberdade.

E, por ironia, todos os que assinaram o projeto, clamando por mais punição aos poderosos, iriam referendar mais negociações penais e aplicação de penas sem cumprimento em prisão (leia-se, com possibilidade de cumpri-las em suas mansões).

Vendeu-se a (falsa) ideia de que se as dez (ou mais) medidas não fossem aprovadas, então a repressão ao crime estaria em perigo e a própria Operação Lava Jato. Pergunta-se: por acaso, com base em qual lei estaria se pautando a Lava Jato?

A premissa quanto à urgência na aprovação dessas medidas improcede, pois, a rigor, tudo que foi feito até hoje se baseia e se baseou na lei VIGENTE. Fosse a nossa lei penal tão ruim, como querem alguns, a Lava Jato não seria possível, não é mesmo?

Muitos dirão: no que concerne à responsabilização de pessoas poderosas, a Lava Jato é um ponto fora da curva? De fato, nesse quesito, ela é sim uma exceção, mas, que fique bem claro, isso não ocorre devido à falta de lei, mas de (falta de) aplicação da lei existente, o que é algo diferente.

Não se precisa de lei para isso (a qual, aliás, já existe), mas de peito para aplicá-la. Essa é a questão. Convenhamos: não é todo agente estatal que vai querer arriscar a sua vida batendo de frente com criminosos de porte considerável. A aprovação dessas 10 (ou mais) medidas não contribuirá para a repressão ao crime se não houver uma vontade (e cultura) para tanto.

E quanto aos abusos (e os crimes) cometidos pelas autoridades? Outra questão que acabou sendo enviesada, para todos os lados. Ninguém há de negar que abusos são cometidos. Ainda que não sejam dolosos os atos praticados (e nem sempre a autoridade está de má-fé), diversas ilegalidades ocorrem cotidianamente, em todo tipo de persecução penal.

Uma atualização da Lei de Abuso de Autoridade vigente (Lei n. 4898), que data de 1965, talvez já devesse ter ocorrido há algum tempo.

É estranho, contudo, que - justamente neste momento, quando poderosos começam a sentir o peso da lei penal – queira-se aprovar nova lei de abuso de autoridade, desengavetando-se projeto que estava parado desde o ano 2009 – para, agora, se coibirem os abusos...

Muitas críticas têm sido apontadas ao referido projeto, no sentido de que seria uma tentativa de intimidação, a qual não se descarta e, de fato, parece ser a hipótese mesmo. Outras há no sentido de que haveria tipos penais abertos, no que existe razão, sendo de observar, contudo, que nossa legislação está infestada de tipos penais assim, bastando atentar para a própria Lei de Abuso de Autoridade vigente, que criminaliza condutas até mais abertas. Há manifestações curiosas, comemorando-se que a ofensa às prerrogativas profissionais dos advogados será criminalizada, muito embora na lei vigente já exista essa criminalização.

A crítica mais consistente ao projeto, contudo, reside nesta incoerência: se de um lado se quer punir condutas imprecisas com penas altas, por outro, outras condutas, frise-se, bem graves (como a de abusar sexualmente de um(a) preso(a)[2]), seriam punidas com penas até mais leves às previstas no próprio projeto, e brandas se comparadas a tipos penais previstos no Código Penal, como o estupro (de alguém não preso). O mesmo fenômeno ocorre com a pena prevista para a autoridade que permite que uma mulher seja presa em cela em que há outros homens[3]... O lamentável desfecho disso a gente já viu em um caso concreto, quando uma juíza permitiu que uma moça fosse mantida presa com outros homens, sendo a magistrada “punida” a ficar em disponibilidade, recebendo os seus vencimentos[4]!

Pergunta-se: será que este projeto quer mesmo coibir o abuso de autoridade?

Em um cenário tão acirrado como o vivenciado pelo país, nesse clima de tensão, em que todas as instituições – legitimamente ou não – passam a apontar o dedo uma para a outra, melhor que não se aprove nenhuma lei, pois tudo que vem em “pacotes” vem com alguma surpresa.

Não precisamos de novas leis para se reprimir (civilizada e responsavelmente) o crime. Não precisamos de novas leis para coibir os abusos de autoridade. Basta aplicar a lei vigente a todos os que a infrinjam as normas, seja aos particulares, seja entre os agentes públicos, tanto aos membros do Poder Executivo, do Legislativo e (por que não?) do Poder Judiciário e ao Ministério Público, quando for necessário!

O que não queremos é viver em uma República de intocáveis, em que para alguns a pena se restrinja a recebimento de vencimentos (quando não de supersalários). Com todo respeito aos que pensam diversamente, mas ninguém – e, sobretudo, as autoridades que aplicam a lei - pode estar imune à aplicação da lei (ou passar ao largo da lei penal).


Notas e Referências:

[1] Aqui não se tem um discurso deslegitimador do Direito Penal, ou de cunho abolicionista, que reputo inadequado e improcedente, pois o Direito Penal não pode ser visto como um sistema de opressão, pois tutela a todos (inclusive ataques a bens jurídicos de pessoas carentes contra outras pessoas igualmente carentes), protegendo bens fundamentais; seja como for, embora entenda que o Direito Penal é legítimo, por questão de honestidade, não se pode fechar os olhos para a sua seletividade, sendo visto com bons olhos esse novo movimento para punição de pessoas que antes eram intocáveis (desde que, obviamente, respeitado o devido processo legal).

[2] Artigo 19, do Projeto 280/2016 (cf.: http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=196675&tp=1). A pena prevista é de 1 a 4 anos, no caso, sendo que o estupro, na legislação comum, tem pena de 6 a 10 anos, considerando-se que a vítima não está presa.

[3] Artigo 20, do referido projeto.

[4] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83661-juiza-que-manteve-menina-em-cela-masculina-recebe-pena-de-disponibilidade


jorge-coutinho-paschoal. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


Imagem Ilustrativa do Post: Heros // Foto de: Kieran Lynam // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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