NEORREALISMO DE ESQUERDA E SEU POTENCIAL DE TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE SOCIAL:  UMA ANÁLISE A PARTIR DE FRIEDRICH ENGELS E KARL KAUTSKY

27/06/2020

 

Da criminalização do racismo pela lei n.º 7.716/89 (BRASIL) à criminalização da LGBTfobia pelo STF na ADO n. 26; do clamor pela punição exemplar de policiais que abusam de seus poderes à dos autores dos chamados crimes de colarinho branco, movimentos sociais que historicamente levantam bandeiras tidas “de esquerda” pedem mais intervenção do Estado, em forma de criminalizações e punições, buscando, assim, uma suposta justiça ou reparação social.

Friedrich Engels e Karl Kautsky, em 1887, publicaram na Alemanha, na revista “A Nova Gazeta”, o texto “O Socialismo Jurídico”, que posteriormente seria consagrado em livro de igual nome, denunciando as tentativas do Sr. Anton Menger de desqualificar os trabalhos de Marx e Engels, bem como de reelaborar o socialismo de um ponto de vista jurídico em que se prestigiariam as instituições e ficções burguesas como da democracia, do sistema eleitoral, em um revisionismo que em nada contribuiria, realmente, para uma revolução dos meios de produção.

Diante disso, cumpre analisar, a partir de então, por meio de revisão bibliográfica de Engels e Kautsky (ENGELS; KAUTSKY, 2017), o potencial revolucionário dos mencionados movimentos “de esquerda” que, no sistema jurídico, buscam alterações substanciais na desigualdade histórica experenciada por negros, povos originários, mulheres, LGBTQI’s, dentre outras minorias sociais.

Para além disso cumpre indagarmos se existe, de fato, interesse revolucionário na disputa pelo Direito.

 

DO NEORREALISMO DE ESQUERDA E SUAS PRETENSÕES

O nome “neorrealismo de esquerda” surge como resposta ao “neorrealismo de direita”, sendo movimento político criminal de utilização e clamor por mais Direito Penal (criminalizações e punições) em “defesa” de pautas tidas como tradicionalmente de esquerda. Sob esse enfoque, largamente utilizado no início pelos pensadores da Criminologia Crítica, se pretendeu inverter, via Direito Penal, a “balança da desigualdade”, buscando-se a responsabilização nos crimes de colarinho-branco, nos crimes de discriminação (principalmente contra negros, mulheres e LGBTQI’s), de ódio (movimentos neonazistas e milícias), nas lesões ao meio ambiente e aumentando-se as penas dos mais favorecidos (“co-culpabilidade às avessas”[1]).

Juarez Cirino dos Santos, antes da mea-culpa realizada na 4ª edição de sua obra A Criminologia Radical (SANTOS, 2018), defendia que

“a proposta para o processo de criminalização, comprometida com a redução das desigualdades de classe (variável determinante da criminalização), segue duas direções: a) uma política de criminalização e penalização da criminalidade das classes dominantes, como a criminalidade das classes dominantes, como a criminalidade econômico-financeira, o abuso de poder público, a corrupção administrativa, as práticas anti-sociais em áreas de segurança do trabalho, da saúde pública, da ecologia, da economia popular e do patrimônio social e estatal; b) uma política de descriminalização e despenalização da criminalidade das classes dominadas, mediante a contração do sistema punitivo em crimes de bagatela, crimes punidos com detenção ou de ação penal privada, crimes políticos e de opinião, drogas etc., com substituição de sanções estigmatizantes por não-estigmatizantes nos demais casos”. (SANTOS, 2018)

Afrânio Silva Jardim publicou artigo (JARDIM, 2018) onde, apesar de se declarar “marxista, fruto de sólida leitura e reflexão”, entende que “não podemos esperar por uma revolução social para depois termos legitimidade para segregar aqueles que matam, estupram, roubam com violência à pessoa, etc.”. Tais delitos, segundo ele, “não apresentam qualquer conotação ideológica direta”, sendo que “em todos os países, nos quais se tentou aplicar o pensamento de esquerda, o Direito Penal sempre foi severo e rígido, em prol da afirmação dos valores da sociedade socialista, que nada tem de liberal”. Em sua leitura, “o Direito sempre foi e será um instrumento do poder para satisfazer os interesses da classe dominante”.

Nessa mesma linha podemos encontrar julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apostando na punição como forma de reparação da violação de direitos humanos. Conforme nos traz Raquel da Cruz Lima:

“a conclusão da Corte Interamericana de que as leis de anistia do Brasil e do Uruguai também eram incompatíveis coma Convenção Americana deixou claro, que, independentemente do procedimento pelo qual essas leis forem aprovadas, a criação de óbices legais para o cumprimento do dever de investigar e punir graves e sistemáticas violações de direitos humanos jamais é aceita. O caso Gomes Lund é bastante didático ao reunir diversos argumentos sobre o dever de investigar e punir que a Corte invocou ao longo da sua jurisprudência: o dever de investigar e punir como uma norma que deriva do artigo 1.1 da CADH, a obrigação estatal de iniciar investigações sérias e imparciais ex officio, o direito das vítimas de participar de todas as etapas processuais e a posição de órgãos dos sistemas regionais e universal contrárias às leis que anistiem graves violações (CtIDH, 2010i, par. 137-160)”. (LIMA, 2018)

Aliás, é farta a variedade de instrumentos normativos em âmbito internacional que incitam os países a promover a responsabilidade penal de indivíduos (como a Convenção de Palermo sobre o tráfico de pessoas, Convenção de Nova York contra o crime organizado e a Convenção Única de Nova York sobre Entorpecentes, todas da ONU), bem como a própria existência de um Tribunal Penal Internacional.

 

DA INSUFICIÊNCIA DO NEORREALISMO DE ESQUERDA E DO “SOCIALISMO JURÍDICO”

O grande equívoco do neorrealismo de esquerda é acreditar nas mesmas ideias do movimento neorrealista de direita: de necessidade de criminalização de certas condutas para proteger suficientemente certos bens jurídicos; do “poder simbólico” da criminalização; da existência de “bons” e “maus”; e de vingança. Sem a devida reflexão proporcionada pelos teóricos do labelling approach e da Criminologia Crítica quanto à seletividade, como nos é exemplo o tráfico de drogas que, em tese, é praticado por pessoas ricas e pobres, mas apenas os últimos são selecionados, processados e estigmatizados pelo controle social formal, cai-se no “canto da sereia” de ver no Direito Penal a cura milagrosa para os males que acometem a sociedade, esse corpo orgânico que pode ser topicamente sarado (YOUNG, 2002, p. 191-215). Daí o nome pejorativo de “esquerda punitiva” (KARAM, 1996).

Curiosamente, esse mesmo apelo jurídico à defesa de pautas tradicionalmente “de esquerda” já foi debatido e rechaçado em 1887 por Friedrich Engels e Karl Kautsky em sua obra “O Socialismo Jurídico” (ENGELS; KAUTSKY, 2017), ao criticarem o pensamento de Anton Menger, professor e reitor da Universidade de Viena, “um dos mais expressivos representantes do socialismo jurídico”. Márcio Bilharinho Naves, no prefácio à obra, destaca que enquanto Menger propunha-se a reelaborar um socialismo jurídico, Engels e Kautsky defenderam um ponto de vista “irredutivelmente antijurisdicista”, compreendendo o Direito como “núcleo duro da ideologia burguesa”, algo que viria a ser melhor trabalhado, em momento posterior, na União Soviética, por Evguiéni Pachukanis (2017).

Inicialmente, Engels e Kautsky tratam da ideologia que sustentava a organização feudal, a Igreja Católica. Conforme os autores, a Europa apenas pôde alcançar uma união – faticamente inexistente – em torno do cristianismo e contra o inimigo comum representado pelo sarraceno. Tratando-se o clero da única classe culta, seus dogmas eram a medida e a base do pensamento, sendo que a consagração religiosa dada pela Igreja proporcionava a legitimidade necessária aos monarcas seculares regerem os demais.

Para além, a estrutura da Igreja era o modelo político-organizacional a ser seguido. Com o Papa na figura central do primeiro suserano – o centro monárquico – e sua estrutura hierarquizada e baseada na propriedade fundiária, “a Igreja se constituía no verdadeiro vínculo entre os vários países”, propagando e incentivando o sistema baseado na servidão.

Com o advento das revoluções iluministas, gestadas no seio das disputas políticas entre os nobres e o monarca, a concepção de mundo teológica cedeu em prol da burguesa que transferiu a ideologia religiosa para a lei, quando da criação do modelo de Estado Nacional e da repartição dos Poderes.

Um Estado forte, protegido externamente pelo exército a comando de seu único líder, teria que lidar internamente com o povo, buscando uma nova legitimação para a dominação de poucos contra muitos. A saída encontrada foi a lei, um comando externo aos reais detentores do poder – a classe burguesa – que permitisse a exploração da massa proletária e o escoamento da produção.

Com essa ficção, “as relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado”. E o que seria o Estado senão a soma das vontades do seu povo? Eis a falácia que sustenta a nova estrutura social, na medida em que nem todos poderiam ser eleitores, normalmente apenas os homens, adultos, detentores de propriedades – portanto excluem-se as mulheres, os escravos e os pobres. Para além, o poder econômico, diretamente interessado nos destinos políticos do Estado, seria o principal subsidiador de campanhas, favorecendo aqueles que se alinhassem a seus interesses.

Um Legislativo que criasse as leis em favor da classe econômica, um Executivo que as executasse e um Judiciário que garantisse o cumprimento das decisões adotadas pelos outros dois Poderes, criam a estrutura necessária para a terceirização do poder político, permitindo que os detentores do poder econômico se estabilizassem como classe dominante, sem que estejam à vista de críticas por parte do povo.

As leis, assim, passam a alienar as relações de fato, substituindo o real pelo imaginário. As regras que determinariam como seriam regidas as relações de trabalho, como seriam as obrigações firmadas em contratos e como seriam punidos os que atentassem aos valores protegidos pelo Legislativo, passaram a ser jurídicas e, portanto, não se apresentando como provenientes das relações reais de produção e exploração da força do trabalho, do poder exercido por uma classe sobre outra. Apenas como “decretos formais do Estado”. O Estado passa a ser visto como o centro emanador do que se pode e do que não se pode fazer. Não é por outra razão que “a igualdade jurídica se tornou o principal brado de guerra da burguesia”. Vender a fé no Estado era a ordem do dia.

Conforme Engels e Kautsky (2017), da mesma forma que, inicialmente, a burguesia incipiente buscou na concepção teológica de mundo meios para combater o estado das coisas feudal, o proletariado, de início, tentou se valer das mesmas regras da classe dominante. Pretendendo voltar contra os burgueses o sistema jurídico por eles implantado, surgiram os primeiros Partidos proletários, bem como seus representantes teóricos, pautados na ideia de fortalecer o conceito de igualdade jurídica e de estabelecer a igualdade social. O resultado obtido foi o mesmo da pequena burguesia no medievo: nenhum.

As regras do jogo não existem senão no jogo, mas o jogo se estrutura por razões outras, essas sim determinantes para a criação das regras. Enquanto o debate permanecer na duração da jornada de trabalho, na redução da tomada de mais-valor pelo patrão, na concessão de folgas semanais remuneradas, e assim por diante, o máximo que se poderá estabelecer são perdas pontuais à arrecadação da classe burguesa – retomadas na primeira “crise econômica” que imponha “cortes necessários” ou com incremento de mais-valor relativo decorrente da evolução tecnológica (MARX, 2013, p. 305-374; 387-410) –, mas a forma jurídica que garante as relações reais de produção e escoamento das mercadorias, portanto da exploração de uns sobre os outros e do enriquecimento de uns às custas da miséria dos outros, permanecerá intacta.

O ponto mais relevante da estabilização do capitalismo é o de substituição do conflito manifesto entre a classe burguesa e a proletária por um conflito jurídico, em que os detentores do poder – garantidos em sua atividade exploratória – permaneceriam resguardados, competindo ao Estado – e aos “representantes do povo” da vez – ser o alvo da ira popular. Qualquer alteração de peças nos Poderes não resultaria abalo no sistema econômico imposto.

A luta do proletariado pelo direito é a garantia de que as coisas permanecerão como estão.

Com a alienação da exploração às regras do Estado, não apenas verifica-se a – latente – luta entre proletariado e burguesia, mas agora também entre os trabalhadores que acreditam na luta pelo direito, entorpecidos pela truncada tecnologia burguesa – a dogmática –, e os trabalhadores que enxergam a esterilidade em debater nesse cenário. “Em geral, a velha concepção é defendida por políticos vulgares, com os argumentos de costume. Mas agora há também os assim chamados cientistas do direito, que fazem da jurisprudência uma profissão específica” (ENGELS; KAUTSKY, 2017, p. 21).

A única solução possível para a modificação da estrutura é a luta política que implica na revolução, na destruição das formas política e jurídica que garantem as formas sociais reais de exploração (MASCARO, 2013). Nesse sentido, Antonio Gramsci (2019, p. 21-22) trata da grande/alta política como compreendendo “as questões ligadas à fundação de novos Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânico-sociais”, em contraponto à pequena política, aquela relacionada às práticas “do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas”, dentro da estrutura já pré-concebida – no caso o capitalismo. Ainda em sua concepção, “é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política”.

A luta pela edição de leis penais em nossa sociedade se insere dentro do que se concebe por “pequena política”, sem qualquer possibilidade de rompimento político da estrutura capitalista, compreendendo meros reformismos pontuais que apenas solidificam a situação real de correlação de forças. 

“A monopolizadora reação punitiva contra um ou outro autor de condutas socialmente negativas, gerando a satisfação e o alívio experimentados com a punição e conseqüente identificação do inimigo, do mau, do perigoso, não só desvia as atenções como afasta a busca de outras soluções mais eficazes, dispensando a investigação das razões ensejadoras daquelas situações negativas, ao provocar a superficial sensação de que, com a punição, o problema já estaria satisfatoriamente resolvido. Aí se encontra um dos principais ângulos da funcionalidade do sistema penal, que, tornando invisíveis as fontes geradoras da criminalidade de qualquer natureza, permite e incentiva a crença em desvios pessoais a serem combatidos, deixando encobertos e intocados os desvios estruturais que os alimentam. Chega a ser, assim, espantoso que forças políticas que se dizem (ou/ pelo menos, originariamente, se diziam) voltadas para a luta por transformações sociais prontamente forneçam sua adesão a um mecanismo tão eficaz de proteção dos interesses e valores dominantes de sociedades que supostamente deveriam ser transformadas”. (KARAM, 1996, 82-83)

Em rebate às afirmações de Menger de que seria possível um socialismo jurídico, “reduzindo-o a pequenas fórmulas jurídicas, a ‘direitos fundamentais’ socialistas, reedição dos direitos humanos para o século XIX” (ENGELS; KAUTSKY, 2017, p. 28), tais “direitos fundamentais” teriam pouca eficácia prática na vida das pessoas, limitando-se a palavras de ordem que “confessadamente, não têm nenhum valor prático! Tanto barulho por nada”.

“Marx nunca reivindicou o ‘direito ao produto integral do trabalho’, nem jamais apresentou reivindicações jurídicas de qualquer tipo em suas obras teóricas. [...] Marx compreende a inevitabilidade histórica e, em consequência, a legitimidade dos antigos senhores de escravos, dos senhores feudais medievais etc. [...] reconhece também a legitimidade histórica temporária da exploração, da apropriação do produto do trabalho por outros; mas demonstra igualmente não apenas que essa legitimidade histórica já desapareceu, mas também que a continuidade da exploração, sob qualquer forma, ao invés de promover o desenvolvimento social, dificulta-o cada vez mais e implica choque crescentemente violentos”. (ENGELS; KAUTSKY, 2017, p. 34)

Investir no direito como espaço de disputa para uma modificação social revolucionária, de fundo, não só é infecundo, mas despolitizador, relegando a conceitos inventados um debate que é real. De que serve a noção de direitos fundamentais se eles

“não determinam nem realizam o desenvolvimento social, mas são determinados e realizados por este, para que então esse esforço de reduzir todo o socialismo a direitos fundamentais? Para que o esforço de despir o socialismo de seus ‘ornamentos’ econômicos e históricos, se posteriormente ficamos sabendo que os ‘ornamentos’ constituem seu real conteúdo?” (ENGELS; KAUTSKY, 2017, p. 46)

No âmbito do Direito Penal, esse cenário é especialmente agravado. A delimitação das condutas proibidas encontra seu núcleo na manutenção das relações de produção. É a forma mais violenta e manifesta que o sistema possui para evitar condutas que lhe são atentatórias. A “hegemonia do capital depende, especialmente, da definição legal do conceito burguês de crime, que descreve ações contrárias à estrutura das relações sociais que assenta seu poder de classe” (SANTOS, 2018, p. 49).

A aplicação de punições, de seu turno, é historicamente determinada pela estrutura social e varia de acordo com o sistema econômico adotado, eis que “todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 19-20). Sua aplicabilidade provém da consequência lógica do descumprimento da norma proibitiva, somado à conveniência de punição no caso em concreto – em muito influindo aqui a seletividade – e da utilidade em se exercer determinada intervenção naquele que atentou contra a lei. Acaso se demonstre necessário o incremento da força de trabalho proletária a atender os anseios do mercado, serão acatadas as teorias doutrinárias que permitam um alargamento do controle estatal, e as penas serão preponderantemente voltadas ao trabalho forçado ou a moldar as subjetividades para formar, em larga escala, mais gente apta ao trabalho (FOUCAULT, 2013). Ao seu revés, acaso a força de trabalho seja excedente, maior será a incidência de penas capitais ou incapacitantes, preponderando-se a ideia de probation, nos casos mais leves, e de neutralização, nos casos mais graves, daqueles que apresentem riscos ao sistema econômico vigente (DIETER, 2013).

Assim, qualquer debate sobre a inclusão de algum tipo penal específico, ou de uma interpretação mais “literal” ou “alternativa” do direito, ou ainda o clamor para que se investigue e puna com o mesmo furor dos “crimes dos pobres” os “crimes dos poderosos”, não alterará em nada a estrutura social, muito menos terá como consequência a equalização da balança da desigualdade jurídica – propositalmente concebida como espelho da desigualdade real de classe social. Pelo contrário, acirrará a desigualdade.

Esse clamor, meticulosamente alimentado pelos meios de comunicação de massa, ignora, propositalmente, o conhecimento acumulado das funções reais do sistema penal que, para além de constituir uma violência de classe – alcance de fundo –, aumenta o grau de violência na sociedade nas ações cotidianas – alcance de superfície –, sendo um determinante de reincidência e marginalização social em razão do estigma criado e não elidido, por ser relevante caracterizador de periculosidade para controle permanente.

Por tais razões, inclusive, ainda que abandonemos por completo a discussão da força legitimante que o Direito Penal traz para a manutenção da estrutura de exploração capitalista – que deveria ser o cerne de qualquer “esquerda” –, resta desacreditada a ideia de que “não podemos esperar por uma revolução social para depois termos legitimidade para segregar aqueles que matam, estupram, roubam com violência à pessoa, etc.” (JARDIM, 2018), pois o Direito Penal acentua a violência e a desigualdade social ao se apresentar como uma gestão diferencial dos indesejados, dos vulneráveis, da clientela preferencial do sistema, ainda que se coloque como meta acabar com a LGBTfobia, o machismo, o racismo, a xenofobia etc.

Tais questões, que não se configuram “de esquerda” ou “de direita” por não dizerem respeito ao conteúdo de fundo do sistema econômico – ainda que venham bem a calhar para criar subclasses e assim facilitar a dominação proletária – poderiam ser bem trabalhadas, no capitalismo ou em um sistema econômico alternativo, fora do sistema jurídico, por meio da desconstrução de mitos oriundos de determinadas ideologias. São questões enraizadas na sociedade, ao que a noção de punição por reprovação individual em razão da culpabilidade não possui sentido. A sociedade é LGBTfóbica, machista, racista e xenofóbica, pois fundada nesses valores, sendo improfícuo selecionar individualmente um ou outro que externaram tais valores, assim como se valer da tipificação criminal como “palavra de ordem”, como sustentado por Menger.

O apelo à criminalização dos “maus policiais”, igualmente, carece de sentido, eis que seu proceder não só é incentivado pela classe dominante como pelos adeptos à “esquerda punitiva”, estando o trabalhador – lembrando que a maioria dos quadros da Polícia são compostos justamente por proletários – entre a cruz e a espada: de um lado exigem-lhe uma condição sobre-humana de herói, em uma guerra contra “o mal”, o que é repetido na mídia de massa diuturnamente, exaltando-se o policial duro, até mesmo “fora da lei”, no combate ao “bandido”; do outro lhe chamam de bandido por agir justamente conforme esperam que ele aja.

“Não conseguem ver estes setores da esquerda que o discurso histérico e vazio contra a corrupção policial é análogo ao discurso mais geral sobre a criminalidade, selecionando preferencialmente nas classes subalternizadas (de onde vem a imensa maioria dos agentes policiais) personagens que, convenientemente estigmatizados, desempenham o papel de maus, para que os demais possam seguir desempenhando seu papel de ‘cidadãos de bem’. [...] Não percebem que o clima geral de exacerbação do desejo punitivo, que conta com seu decidido apoio, é o grande incentivador da violência da repressão informal, dirigida contra aqueles que correspondem à imagem de criminosos. [...] Quando se concilia com a ideia de que o enfrentamento da criminalidade corresponde a uma situação de guerra, não se pode, ao mesmo tempo, hipocritamente pretender que os agentes da repressão pautem sua atuação pelo respeito aos direitos de eventuais violadores da lei. Em guerras, como é sabido, o combate ao inimigo significa sua eliminação, não parecendo assim lá muito coerente exigir rigorosa punição para quem, atuando, como se estivesse em guerra, ponha em prática tal ensinamento. [...] Dominados pelo desejo da repressão e do castigo, deixam de lado – como ocorre sempre que se opta pela monopolizadora e superficial reação punitiva – a questão maior consubstanciada na militarização da atividade policial. (KARAM, 1996)

A única resposta que traria efetivo abalo ao estado das coisas seria a abolição pura e simples das proibições e punições, algo inimaginável no seio da pequena política, pois o Direito Penal é imprescindível para a manutenção do sistema capitalista seja em virtude da necessidade de manutenção das relações reais de exploração, seja a conferir legitimidade ao exercício da punição por parte do Estado que, por sua vez, atua como representante dos interesses da burguesia.

Engels e Kautsky, ao final de sua obra, fazem uma ressalva que impede que os critiquem de descolados da realidade e de insensíveis aos dramas reais. A noção de que a grande política não se faz nas leis “não significa que os socialistas renunciem a propor determinadas reivindicações jurídicas” (2017, p. 47), mas sempre restritas ao contexto específico de cada agrupamento e sem a fé cega de que tais mudanças serão definitivas para estabelecer a igualdade entre todos.

As reivindicações resultantes dos interesses comuns de uma classe só podem ser realizadas quando essa classe conquista o poder político e suas reivindicações alcançam validade universal sob a forma de leis. Toda classe em luta precisa, pois, formular suas reivindicações em um programa, sob a forma de reivindicações jurídicas. Mas as reivindicações de cada classe mudam no decorrer das transformações sociais e políticas e são diferentes em cada país, de acordo com as particularidades e o nível de desenvolvimento social. Daí decorre também o fato de as reivindicações jurídicas de cada partido singular, apesar de concordarem quanto à finalidade, não serem completamente iguais em todas as épocas e entre todos os povos. Constituem elemento variável e são revistas de tempos em tempos, como se pode observar nos partidos socialistas de diversos países. Para essas revisões, são as relações reais que devem ser levadas em conta (ENGELS; KAUTSKY, 2017, p. 47-48)

Nesse cenário, Eugênio Raul Zaffaroni (2012) apresenta o que de melhor se produziu em termos de teorias deslegitimadoras do sistema, ainda que dentro do sistema. Sua Criminologia Cautelar, considerando todas as mazelas do sistema punitivo – formal e informal – bem como as limitações atuais de alcançarmos o abolicionismo, propõe deixar os espaços meramente acadêmicos e disputar os mesmos espaços midiáticos em que predomina o discurso hegemônico de reprodução de estereótipos. Pugna por realizar um verdadeiro trabalho de base, a uma só vez, trabalhando as questões de fundo e de superfície.

“ir para rua, para os meios de comunicação, participar da formação de profissionais, de operadores do sistema penal, do pessoal das agências executivas e penitenciárias, escrever para o grande público, participar do sistema, compreender as vivências dos operadores, acalmar suas angústias, falar com as vítimas, com os criminalizados, com seus parentes, estimular aqueles que têm a responsabilidade de equilibrar ou prevenir o desequilíbrio, investigar os discursos midiáticos, não desanimar diante dos fracassos e não se amedrontar, não se deixar levar pelo ódio, compreender as motivações para evitar erros de conduta, interferir na política, acostumar-se a ser mal visto, assumir o papel de portador de más notícias (denunciar que somos vítimas de um embuste é sempre uma má notícia) e, sobretudo, reproduzir militância” (ZAFFARONI, 2012, p. 467).

Não se deixar levar pelo discurso do sistema, mas sem descurar das pessoas de carne e osso que são vitimizadas, punidas e/ou participantes passivas/ativas de replicação das regras de dominação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O neorrealismo de esquerda é um embuste em que se esconde a sanha punitiva legitimadora da dominação de classe. Seus adeptos, ainda que militantes por causas justas, são enganados quanto aos meios. Alienados quanto ao funcionamento da sociedade e da estruturação das relações de poder que, em última instância, se prestam a resguardar as formas de reprodução do Capital, acreditam no discurso oficial – curiosamente ainda calcado na crença cristã – de responsabilidade pessoal pelos males causados, sem compreender as estruturas estruturantes (BOURDIEU, 2012) dos comportamentos sociais, nem as consequências da operação do sistema ante um indivíduo, perante a sociedade.

Por tais razões, chamar esse movimento de “neorrealismo de esquerda” é uma contradição em termos, na medida em que ser de esquerda é justamente compreender e se opor ao estado das coisas, rompendo o status quo e, então, subverter as bases em que se funda o Capitalismo. Compreender como de esquerda um movimento que se apega a pautas identitárias – que, ressalte-se, são importantes – é falacioso e novamente esconde o conteúdo da luta anticapitalista.

Um verdadeiro movimento “de esquerda” só pode se construir pautado na noção de luta de classes, de exploração de mais valor e de alienação do poder econômico na forma jurídica. As teorias do labelling approach e da Criminologia Crítica dão o substrato para a desmistificação do discurso oficial e, ao que nos apresenta, a Criminologia Cautelar de Zaffaroni nos traz os mais importantes passos já apresentados para fazer uma resistência verdadeira, de esquerda, pautada na base, aos detentores do poder econômico.

 

Notas e Referências 

 

BATISTA, N. “Só Carolina não viu”: violência doméstica e políticas criminais no Brasil. In MELLO, A. R. (org.). Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

DIETER, M. S. Política criminal atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013;

DIVAN, G. A. Revisitando a esquerda punitiva: relações sociais, poder e agenda atual da criminologia crítica. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI. Itajaí, v.14, n.1, 2019.

ENGELS, F.; KAUTSKY, K. O socialismo jurídico. Trad. Lívia Cotrim e Márcio Bilharino Naves. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 41. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere, volume 3. Trad, Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

JARDIM, A. S. Esquerda punitiva? Esclarecimento sobre o nosso pensamento atual em relação à aplicação do 'sistema penal'. Florianópolis: Empório do Direito, 2018. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/esquerda-punitiva-esclarecimento-sobre-o-nosso-pensamento-atual-em-relacao-a-aplicacao-do-sistema-penal. Acesso em: 05/01/2020.

KARAM, M. L. A esquerda punitiva. In Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade n.1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1º semestre 1996. Disponível em: https://we.riseup.net/assets/369699/74572563-Maria-Lucia-Karam-A-esquerda-punitiva.pdf. Acesso em: 05/01/2020.

LIMA, R. da C. O Direito Penal dos Direitos Humanos: paradoxos no discurso punitivo da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 1. Ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2018.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

MASCARO, A. L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.

PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.

ROBERT, M. What works? Questions and answers about prison reform. [S. l.]: The Public Interest, 1974, p. 22-54. Disponível em: https://www.gwern.net/docs/sociology/1974-martinson.pdf. Acesso em: 22/04/2020.

RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. Punição e estrutura social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

SANTOS, J. C. dos. A Criminologia radical. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.

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YOUNG, J. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

ZAFFARONI, E. R. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. Trad. Sérgio Lamarão. São Paulo: Saraiva, 2012.

[1] Em alusão à teoria da co-culpabilidade, em que se pretendia mitigar a responsabilidade penal do acusado em razão de uma corresponsabilidade do Estado, eis que ao não permitir que todos os cidadãos tenham as mesmas condições para se autodeterminar, torna-se parcialmente responsável pelo ilícito praticado.

 

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