Uma das questões mais tormentosas envolvendo a dosimetria da pena do crime de tráfico de drogas vem sendo a possibilidade de se considerar a quantidade e a natureza da droga apreendida tanto para a fixação da pena-base quanto para a modulação ou afastamento da causa de diminuição no chamado tráfico privilegiado, previsto no art. 33, §4º, da Lei n. 11.343/06.
O tráfico privilegiado, como se sabe, é uma causa de diminuição de pena, de um sexto a dois terços, que demanda, para o seu reconhecimento, que o agente satisfaça os seguintes requisitos:
- a) ser primário;
- b) possuir bons antecedentes;
- c) não se dedicar às atividades criminosas;
- d) não integrar organização criminosa.
As duas cláusulas finais negativas devem favorecer o agente, sendo do Estado (acusação) o ônus da prova. Caberá ao Ministério Público, no processo, provar que o agente se dedica às atividades criminosas ou integra organização criminosa. Sem essa prova, a causa de diminuição de pena não poderá deixar de ser aplicada, ainda que satisfeitos os demais requisitos legais.
Nesse sentido é a Tese n. 22 do Superior Tribunal de Justiça (Jurisprudência em Teses – STJ – edição n. 131), do seguinte teor: “A causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei de Drogas só pode ser aplicada se todos os requisitos, cumulativamente, estiverem presentes”.
Com relação ao “quantum” da diminuição, o Superior Tribunal de Justiça já vinha entendendo, em vários precedentes jurisprudenciais, que a redução deveria se pautar também pela quantidade de droga apreendida, que, no caso concreto, pode ser um fator a mais para influir no convencimento do juiz acerca da oportunidade de aplicação da minorante.
Mais recentemente, em 27.04.2022, no julgamento do HC 725.534/SP, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça confirmou entendimento anterior do Tribunal – endossado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE 666.334/AM, com repercussão geral – sobre a possibilidade de valoração da quantidade e da natureza da droga na fixação da pena-base e na modulação da causa de diminuição.
Assim, segundo a orientação do Superior Tribunal de Justiça, a quantidade e a natureza da droga apreendida podem ser consideradas tanto para a fixação da pena-base quanto para a modulação da causa de diminuição no chamado tráfico privilegiado.
É bem verdade, como ressaltou o eminente relator do HC mencionado, Ministro Ribeiro Dantas, que a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Eresp 1.887.511/SP, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, em 09.06.21, fixou as seguintes diretrizes para a aplicação do art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/06:
1 - a natureza e a quantidade das drogas apreendidas são fatores a serem necessariamente considerados na fixação da pena-base, nos termos do art. 42 da Lei n. 11.343/06.
2 - sua utilização supletiva na terceira fase da dosimetria da pena, para afastamento da diminuição de pena prevista no § 3º do art. 33 da Lei n. 11.343/16, somente pode ocorrer quando esse vetor conjugado com outras circunstâncias do caso concreto que, unidas, caracterizem a dedicação do agente à atividade criminosa ou a integração a organização criminosa.
3 - podem ser utilizadas para modulação da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei n. 11.343/06 quaisquer circunstâncias judiciais não preponderantes, previstas no art. 59 do Código Penal, desde que não utilizadas na primeira etapa, para fixação da pena-base.
Portanto, o Superior Tribunal de Justiça considera possível que a natureza e a quantidade da droga apreendida possam ser consideradas tanto na fixação da pena-base quanto na modulação da eventual diminuição de pena em caso de reconhecimento do tráfico privilegiado, ensejando dupla valoração.
Entretanto, o Ministro Ribeiro Dantas propôs à Terceira Seção que as duas primeiras diretrizes acima apontadas fossem revistas, de modo que se harmonizasse o entendimento da Corte com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, estampado na Tese oriunda do julgamento do ARE 666.334/AM, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em que o pleno desta Corte, em análise da matéria reconhecida como de repercussão geral, entendeu que "as circunstâncias da natureza e da quantidade da droga apreendida devem ser levadas em consideração apenas em uma das fases do cálculo da pena". A Tese foi aprovada nos seguintes termos: “As circunstâncias da natureza e da quantidade da droga apreendida devem ser levadas em consideração apenas em uma das fases do cálculo da pena.”
A proposta do relator, assim, é de que se retorne à valoração da natureza e da quantidade da droga apreendida em apenas uma das fases da dosimetria da pena.
Vale ressaltar, outrossim, que a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em 03.05.22, afetou para julgamento sob o rito dos repetitivos os Recursos Especiais 1.963.433, 1.963.489 e 1.964.296, nos quais se discute se a quantidade ou a natureza da droga apreendida, isoladamente, são capazes de indicar dedicação a atividades ilícitas ou participação em organização criminosa ligada ao tráfico, o que excluiria a incidência do privilégio.
A controvérsia foi cadastrada como Tema 1.154 e tem relatoria do Ministro João Otávio de Noronha. A questão submetida a julgamento é a seguinte: "Isoladamente consideradas, a natureza e a quantidade do entorpecente apreendido, por si sós, não são suficientes para embasar conclusão acerca da presença das referidas condições obstativas e, assim, afastar o reconhecimento da minorante do tráfico privilegiado".
Aguardemos, pois, o julgamento dessa relevante questão para que, enfim, seja possível estabelecer um parâmetro mais adequado para a dosimetria da pena do crime de tráfico de drogas, uma vez que, até o momento, há sensível dissídio jurisprudencial no que tange especificamente à consideração da natureza e da quantidade da droga apreendida.
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