NÃO OCORRÊNCIA DE CONTINUIDADE NORMATIVA ENTRE O ART. 18 DA REVOGADA LEI 7.170/83 (LEI DE SEGURANÇA NACIONAL) E O NOVO CRIME DO ART. 359-L DO CÓDIGO PENAL

05/05/2022

O princípio da continuidade normativo-típica ganhou destaque, recentemente, no julgamento, em sessão plenária ocorrida no dia 20.04.2022, da Ação Penal 1044/DF, em que o Supremo Tribunal Federal, por maioria, condenou o deputado Daniel Silveira como incurso, dentre outros, no art. 18 da revogada Lei n. 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional). A condenação na pena do art. 18 da revogada Lei de Segurança Nacional se fundou no entendimento de que teria havido continuidade normativa entre o citado dispositivo e o novo art. 359-L do Código Penal.

O princípio da continuidade normativo-típica “ocorre quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário” (STJ — HC 187.471/AC — Rel. Min. Gilson Dipp — j. 20-10-2011).

O novo crime denominado “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” foi inserido no Código Penal pela Lei n. 14.197/21, que acrescentou o Título XII na Parte Especial do Código Penal, relativo aos crimes contra o Estado Democrático de Direito, o qual já foi objeto de análise em artigo anterior nesta coluna.

Esse novo crime vem previsto no art. 359-L do Código Penal, com a seguinte redação:

“Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.”

De maneira semelhante ao outro crime que compõe o capítulo “Dos Crimes contra as Instituições Democráticas”, a objetividade jurídica do delito é a tutela do chamado Estado Democrático de Direito.

A conduta típica vem representada pela expressão “tentar abolir”. Abolir significa extinguir, anular, banir. O que se pune é a tentativa de abolição, com emprego de violência ou grave ameaça, do Estado Democrático de Direito. A forma de execução do crime é, justamente, “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, quais sejam, o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário.

Impedir significa obstar, inibir, tolher. Restringir significa limitar, reduzir, confinar.

Por meio dessa nova figura típica, o agente tenta, com o emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito (bem jurídico protegido), impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais (Executivo, Legislativo e Judiciário).

A redação do art. 18 da revogada Lei de Segurança Nacional era a seguinte:

“Art. 18 - Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados.

Pena: reclusão, de 2 a 6 anos.”

Somos de opinião que, embora haja sensível similitude entre o crime previsto no art. 18 da revogada Lei de Segurança Nacional e o novo crime do art. 359-L do Código Penal, não ocorreu, na espécie, continuidade normativa, não se podendo aplicar o princípio da continuidade normativo típica.

De fato. Além de os crimes apontados terem objetividades jurídicas diversas, as condutas também são diferentes, o que se desume de uma análise mais atenta dos dois tipos penais.

Vale ressaltar, nesse ponto, ser necessária uma abordagem absolutamente fiel ao texto dos dispositivos penais, até e principalmente em atenção à estrita literalidade que constitui um dos corolários ou subprincípios da legalidade (“lege stricta”).

A conduta do crime previsto no art. 18 da revogada Lei de Segurança Nacional vem representada por “tentar impedir” o livre exercício de qualquer dos poderes da União ou dos Estados, com o emprego de violência ou grave ameaça. Ou seja, o que se punia era justamente a “tentativa” de impedimento, e não o impedimento em si. Há evidente diferença, no âmbito da tipicidade, entre “tentar impedir” (não obtendo o agente seu intento por circunstâncias alheias à sua vontade) e “impedir” efetivamente, oportunidade em que o agente alcançaria o resultado pretendido, que seria obstar o livre exercício de qualquer dos poderes da União ou dos Estados.

Ademais, o bem jurídico protegido, no art. 18, era o livre exercício de qualquer dos poderes da União ou dos Estados e não o Estado Democrático de Direito, como ocorre no art. 359-L do Código Penal.

Já no crime do art. 359-L, a conduta vem representada por “tentar abolir” o Estado Democrático de Direito. Para tanto, diz a lei, “impedindo ou restringindo” o exercício dos poderes constitucionais. É necessário prestar muita atenção: ao estabelecer o modo de execução do crime de “tentativa de abolição” do Estado Democrático de Direito, o legislador exige do agente que efetivamente impeça ou restrinja o exercício dos poderes constitucionais. O agente, portanto, impedindo (e não tentando impedir – que são modos de execução diversos) de fato, efetivamente, o exercício dos poderes constitucionais, estaria a “tentar abolir” o Estado Democrático de Direito.

Não se trata de uma mera filigrana jurídica, mas de uma necessária e literal interpretação de um dispositivo penal de acentuada importância, ainda mais quando se pretende evitar que uma análise mais açodada de ambos os dispositivos penais possa ensejar uma indevida condenação lastreada no princípio da continuidade normativo-típica.

Em suma, a nosso ver, não ocorreu continuidade normativa entre o art. 18 da revogada Lei n. 7.170/83 e o art. 359-L do Código Penal, acrescentado pela Lei n. 14.197/21. Ocorreu, isso sim, “abolitio criminis” em relação ao delito previsto no referido art. 18 e “novatio legis” incriminadora em relação ao art. 359-L do Código Penal.

Portanto, a partir da vigência da Lei n. 14.197/21, foi extinta a punibilidade do agente em relação ao crime contra a segurança nacional previsto no art. 18 da Lei n. 7.170/89.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ronmacphotos/8704611597

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura