NA E PELA LUTA DAS MULHERES: PRECISAMOS FALAR SOBRE A LEI MARIA DA PENHA À LUZ DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DA MULHER  

17/11/2020

Muito se tem discutido – e é até compreensível que assim o seja –, no Brasil e no mundo, os avanços e (des) avanços da ‘’Lei Maria da Penha’’ – Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 –, bem como os mecanismos, civis e criminais, de natureza material (como a tipificação e definição do crime de violência contra a mulher em física, psicológica, patrimonial ou moral, nos termos dos incisos do art. 7º, da referida lei), e de ordem processual (tais como a definição e fixação da competência para processar e julgar crimes de violência contra a mulher, e a concessão de medidas protetivas de caráter urgente), nela colimados.

A título introdutório, a ‘’Lei Maria da Penha’’, decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 07 de agosto de 2006, sobretudo inspirada no emblemático caso nº 12.051 da Organização dos Estados Americanos (OEA), onde a principal figura era a farmacêutica, Maria da Penha Maia Fernandes (que, durante 23 anos sofreu violência doméstica intrafamiliar), trata-se de uma lei federal brasileira cujo objetivo principal é coibir, através de seus mecanismos, materiais e processuais, punitivos; mas que, por razão perene e justificável, queda em, também, promover – e que bom que ela assim o faz – os direitos (sobretudo fundamentais e humanos, como a dignidade da pessoa) da mulher.

O caso em comento, de Maria da Penha Maia Fernandes, deu ensejo a Lei 11.340/2006, sobretudo em razão da história da primeira pessoa indicada. Maria da Penha Maia Fernandes, farmacêutica, era casada com Marco Antônio Heredia Vivero, contudo este relacionamento era marcado pela prática de violência doméstica intrafamiliar, onde a vítima era a Maria da Penha. Em 1983, o marido, por duas vezes, tentou assassiná-la. Na primeira tentativa, com emprego de arma de fogo, deixou-a paraplégica. Já na segunda, por eletrocussão, seguida de afogamento, deixou-a com traumas severos de difícil cura. Após tais tentativas de homicídio, ambas dolosas, Maria da Penha registrou ambas as ocorrências, numa delegacia comum (leia-se não especializada em casos de violência contra a mulher, pois, à época, não existia delegacias que tratavam especificamente desses crimes). Com efeito, fora proferida, em favor da vítima, Maria da Penha Maia Fernandes, uma ordem judicial que permitia que Maria da Penha deixasse o ambiente familiar, e que, em razão da violência doméstica praticada contra ela, o seu agressor, Marco Antônio Heredia Vivero, fosse condenado.

Tamanha é a importância desse tema que, em 2011, fora publicado, na biblioteca digital da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, conhecida como ‘’ONU Mulheres’’ (em inglês: ‘’ONU Women’’; em francês: ‘’ONU Femmes’’), um projecto, intitulado ‘’Progress of the World’s Women: In Pursuit of Justice’’ (em tradução livre: O Progresso das mulheres no mundo: Em busca da justiça’’), que fora presidido pela atual presidente do Chile, Michele Bachelet, a nível global, onde fora analisado como o sistema jurídico, através dos operadores do direito (juízes, advogados, legisladores, defensores, etc), pode desempenhar um papel positivo nas mulheres que acessam seus direitos, através de casos mudaram a vida das mulheres tanto no nível local quanto, às vezes, global (como o caso da Maria da Penha Maia Fernandes).

Registre-se que, para a felicidade e orgulho da nação brasileira (em especial, as mulheres), a Lei Maria da Penha fora considerada, pela ONU (Organização das Nações Unidas), consoante este estudo, uma das três melhores leis, no mundo, a tratar da violência contra a mulher (MICHELLE BACHET. Progress of the World’s Women: IN PURSUIT OF JUSTICE. 2011. p. 20. Disponível em: https://www.unwomen.org/en/digital-library/publications/2011/7/progress-of-the-world-s-women-in-pursuit-of-justice. Acessado em: 10 jan 2020).

Não à toa, dados demonstram a efectividade da referida Lei, no tocante ao enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil.

‘’Desde 2006, quando a Lei Maria da Penha (Lei 11.340) determinou a criação das varas e juizados especializados para tratar dos casos de violência doméstica, o número de varas exclusivas nesses casos cresceu mais de 26 vezes. Nos últimos 13 anos, passou de 5 para 131 unidades judiciárias, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Esse e outros dados relativos à implementação da Política de Enfrentamento à Violência Doméstica do Poder Judiciário podem ser consultados no Painel de Monitoramento da Política de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, disponível no site do CNJ.’’ (CNJ, 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/painel-disponibiliza-dados-atualizados-de-unidades-em-violencia-domestica-2/. Acessado em: 10 jan 2020)

Ademais, consoante pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no ano de 2015, a Lei Maria da Penha fez reduzir cerca de 10% na taxa de crimes de homicídio contra as mulheres cometidos dentro das residências das próprias vítimas. (IPEA,2015.Disponívelem:htttp://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=24610. Acessado em: 10 jan 2020).

Em estudos realizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano de 2017, e divulgados pela Agência Brasil, em 12 de março de 2018, foi revelado que, uma em cada 100 (cem) mulheres brasileiras recorreram a via judicial em razão de violência doméstica. (BRASIL,Agencia.Disponívelem:http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-03/uma-em-cada-100-mulheres-recorreu-justica-por-violencia-domestica. Acessado em 10 jan. 2020).

Dados divulgados no dia 12 de março de 2018, pela Agência Brasil, e que fora elaborado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ, relevaram que, 1.273.398 (hum milhão, duzentos e sententa e três mil e trezentos e noventa e oito) processos dessa natureza tramitavam no âmbito judiciário dos Estados brasileiros, dentre os quais 388.263 (trezentos e oitenta e oito mil e duzentos e sessenta e três) eram casos novos. Se comparado ao ano de 2016, percebe-se que, o número dos processos foi 16% maior. (BRASIL,Agencia,2018:http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-03/uma-em-cada-100-mulheres-recorreu-justica-por-violencia-domestica. Acessado em 10 jan. 2020).

Muito em que pese à Lei Maria da Penha, têm-se um registro, colhido pelo 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de que cerca de 25% (vinte e cinco por cento) dos homicídios [quantificados em 1.133 (mil cento e trinta e três)] cometidos contra mulheres [sendo, na estimativa, 4.539 (quatro mil quinhentos e trinta e nove)] foram feminicídios, isto é, ocorreram em âmbito intrafamiliar ou doméstico. (CNJ, 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/painel-disponibiliza-dados-atualizados-de-unidades-em-violencia-domestica-2/. Acessado em: 10 jan 2020).

Todavia, mister se faz recordar que, esta lei traz, insculpida em seus artigos, mecanismos inovadores, que, em favor da mulher, muito felizmente:

Tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher em física, psicológica, sexual, patrimonial e moral;

Determina que a mulher somente poderá renunciar à denúncia perante o juiz (evitando, desta sorte, que a vítima renuncie à denúncia por ameaça do agressor).

Veda as penas pecuniárias, como pagamento de multas ou de cestas básicas (evitando, assim, que o agressor possa livrar-se da pena mediante pagamento de um valor, por vezes irrisório, quando comparado ao dano direcionado à vítima);

 Retira dos juizados especiais criminais (Lei n. 9.099/95) a competência para julgar os crimes de violência doméstica contra a mulher.

Altera o Código de Processo Penal, para possibilitar ao juiz a decretação da prisão preventiva, quando houver riscos à integridade física ou psicológica da mulher.

Altera a lei de execuções penais, para permitir ao juiz que determine o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.

Determina a criação de juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher com competência cível e criminal para abranger as questões de família decorrentes da violência contra a mulher.

Atribui aumento de pena em 1/3, para os crimes de violência contra a mulher com deficiência não compensada.

Cria as medidas acautelatórias de urgência, cuja finalidade é reduzir, que bom seria extinguir, a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Impõe responsabilidades jurídico-estatais, para promover e resguardar o desenvolvimento de políticas públicas de promoção dos direitos humanos das mulheres.

Havemos de considerar que, árdua é a tarefa de colocar-se frente a frente de um caso como este, onde os dois maiores bens agredidos (leia-se violados) são, senão, o direito (fundamental) à integridade física e moral, encartados, respectivamente, em nossa Constituição da República Federativa do Brasil, no caput de seu artigo 5º, III, e inciso X da mesma Carta, que decorrem de um direito fundamental e princípio-valor de todo o ordenamento jurídico brasileiro e do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III, de nossa Carta Política brasileira.

O direito, neste sentido, desempenha um papel primordial:

Sistema jurídico de leis, normas, condutas, costumes, dentre outras fontes que lhe são inerentes, o direito responsabiliza-se por impor aos indivíduos regras (de condutas morais, éticas, etc.), a fim de tornar possível a boa convivência em sociedade, de modo que, todos, (está-se diante de um dever coletivo, de interesse público, e não tão somente de interesse privado, restrito à vontade das partes), quer se trate de Pessoa Física (de pai ou mãe, filho (a), herdeiro (a), empresário (a), proprietário (a), autor (a), réu, consumidor (a), empregado (a), empregador (a), etc., quer se trate de Pessoa Jurídica (seja ela de direito privado, como empresas e sociedades, ou de direito público, como os Estados, municípios, etc). FRANCELINO, R. S. A MATRIZ CORPÓREA FUNDAMENTAL TRANSCENDENTE: A CASA ENQUANTO MÍNIMO EXISTENCIAL DIGNO NECESSÁRIO, 2019. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-matriz-corporea-fundamental-transcendente-a-casa-enquanto-minimo-existencial-digno-necessario. Acessado em 20 jan. 2020.

Visando proteger à integridade moral de qualquer do povo (lembremos desta expressão, por demais das vezes utilizada pela nossa Suprema Corte, quando ao fazer referência aos direitos fundamentais e humanos, que regem o nosso Estado Democrático de Direito e que conferem um pouco de sentido às nossas vidas), pois, o legislador originário prevê e assegura, no art. 5º, V, de nossa carta Magna, que, ‘’são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, tendo como pilar o direito à intimidade e à honra (objetiva ou subjetiva), sendo esta objeto de um direito da personalidade, e que confere o direito a tal valor indenizatório, nos termos do art. 20, do Código Civil de 2002[1].

No intuito de proteger à integridade física de qualquer do povo (inclusive a da mulher), o legislador constitucional prevê e assegura, em nossa Carta Magna, no artigo supracitado, em seu inciso III, que ‘’Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida’’, assim, consoante este inciso, ‘’ninguém será submetido à tortura ou a tratamento desumano ou degradante’’.

Está-se diante, todavia, e aqui é preciso deixar este registro, de uma lei que, muito em que pese seu objetivo principal [de coibir crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher (que, por demais as vezes, deixam marcas e traumas incuráveis)], há muito tem enfrentado, juntamente à comunidade social, jurídico e política, feminina, também masculina (percebe-se, muito felizmente, que, a cada dia, mais homens conscientizam-se, ainda que de modo gradual-reduzido, da violência pratica contra as mulheres e que, diante desta nefasta e lastimável realidade, apoiam-nas, moral e juridicamente, na luta pelos seus direitos), todo o ciclo de violência causado pelo cenário social-discriminatório, no qual as mulheres estão inseridas.

Ilusório, pois, seria pensar que, uma Lei, ainda que federal, seria capaz de pôr fim a um ciclo de violência causado pelo cenário social-discriminatório, onde elas, as mulheres, estão inseridas – está-se diante de um problema estrutural institucional. Verdade é que, todo esse ciclo trata-se de um processo histórico-evolutivo de um sistema patriarcal, marcado e movido pelo uso da violência física e/ou psíquica, tendo por finalidade, além de tudo, calar a voz da mulher no âmbito intra ou extra familiar – eis uma temática a qual inúmeros pesquisadores, das Ciências Humanas e das Ciências Sociais Aplicadas, dispensam seu tempo de estudo e de pesquisa, para melhor compreender seus fenômenos.

Injusto (sobretudo danoso) e desarrazoado (em termos de isonomia, por assim dizer), todavia, seria tratar a mulher de modo diferente. Ora, a mulher tem sua dignidade, além de compor o que chamamos, no direito, de ‘’povo’’, assim, por esta razão, deve, de jure et de facto, gozar do tratamento adequado (isonômico). Não só em razão da Lei específica (a Lei Maria da Penha) que a resguarda, como (também) em razão do princípio-valor da dignidade de sua pessoa, isto é, da dignidade da pessoa humana da mulher. Princípio este que consagra-se como princípio-valor pilar de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Eis que, qualidade e princípio-valor, de relevância incomensurável, a dignidade carrega em sua essência elemento fundante e fundamentador dos direitos humanos, notadamente dos direitos fundamentais, quer estejam positivados (tal como se observa nos múltiplos incisos do art. 5º da Carta Magna brasileira), quer não (havemos de lembrar o disposto no parágrafo segundo da mesma Carta).

Não pensou de modo diferente a jurista e advogada pública brasileira, Flávia Piovesan, quando afirmou que:

A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4ed. São Paulo: Max Limonad, p. 54, 2000).

Eis que,

É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o Interno. (PIOVESAN, passim).

Na mesma linha, contudo buscando apontar dois argumentos plausivelmente imprescindíveis, que inauguram, por assim dizer, uma tarefa, por conseguinte, uma responsabilidade – aquela que a Lei Maria da Penha traz insculpida em seus artigos –, além de localizar o caráter normativo-vinculante do princípio da dignidade da pessoa humana, Ingo afirma que: a dignidade deve ser observada a) como princípio, em tudo e por todos (notadamente na seara legislativa, com ênfase na atividade funcional legislativa de elaborar leis substantivas e leis procedimentais); deve ela, ainda, ser observada b) como valor, vez que é “valor fonte que anima e justifica a própria existência de um ordenamento jurídico” (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 70).

Que nós não deixemos – e, em razão disso, lutemos quantas vezes e de quantas formas se fizer necessária, consoante dizia o jurista Rudolf Von Ihering, em obra renomada de título ‘’A Luta Pelo Direito’’ –, todavia, ante esta realidade, a matriz singular genuína humana da dignidade (da pessoa humana, da mulher) perder sua essência humana autêntica dignitária: A dignidade da pessoa está em vossas mãos: conservai-a. (Der Menchheit Würde ist in eure Hand gegeben, bewahrt siei). (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 07).

 

 

Notas e Referências

[1] Nos termos do art. 20 do Código Civil de 2002, Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.

 

 

 

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