Hoje em dia, na sociedade, também no direito, mais do que pacificada está a ideia de que a casa é o bem de maior importância no patrimônio do indivíduo – e havemos de enxergá-la como tal. Mas, ainda sim, indaga-se, sumariamente: I. por que há-de ser assim? II. Qual é a importância da casa para o Direito brasileiro? III. É possível mensurar a relevância da casa para o indivíduo? Questionemos, ainda: IV. qual o papel do Estado neste contexto? Este texto enfoca o tema da casa enxergada, a longas datas, e na literalidade da lei, como residência, e de sua relevância para a sociedade brasileiro e para o direito pátrio.
Prima facie, o direito, para grande parte dos Estados nacionais e internacionais, é um conjunto de regras, que disciplina as diversas dimensões de nossa vida (sobretudo aquela que diz respeito a nossa personalidade, qualquer que seja a teoria a ela aplicada). Sistema jurídico de leis, normas, condutas, costumes, dentre outras fontes que lhe são inerentes, o direito responsabiliza-se por impor aos indivíduos regras (de condutas morais, éticas, etc.), a fim de tornar possível a boa convivência em sociedade, de modo que, todos, (está-se diante de um dever coletivo, de interesse público, e não tão somente de interesse privado, restrito à vontade das partes), quer se trate de Pessoa Física (de pai ou mãe, filho (a), herdeiro (a), empresário (a), proprietário (a), autor (a), réu, consumidor (a), empregado (a), empregador (a), etc., quer se trate de Pessoa Jurídica (seja ela de direito privado, como empresas e sociedades, ou de direito público, como os Estados, municípios, etc).
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, por sua vez, não fica para trás. Constituída em Estado Democrático de Direito, na forma do artigo 1º, da Carta Magna brasileira, a República Federativa do Brasil está diretamente vinculada a cinco principais finalidades garantidoras – eis os pilares do Estado Democrático de Direito, que erguem-nos e regem-no –, encartadas em seus incisos, quais sejam: I. a soberania; II. a cidadania; III. a dignidade da pessoa humana (destaquemos esta); IV. os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e V. o pluralismo político. (BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 25 out. 2019).
É-nos ensinado, ainda, na Teoria Geral do Estado, da Política, e do Direito, que, o direito trata-se do instrumento (aparato estatal legislativo) do Estado, criado e utilizado para assegurar direitos dos indivíduos e resolver conflitos de interesses (entre eles, ou entre eles e o Estado, quer seja em âmbito nacional, quer seja em âmbito internacional), dentro de sua Soberania. Por esta razão, o direito serve como único mecanismo através do qual é possível assegurar os direitos e garantias, assim como solucionar, de modo civilizatório-civilizado (e não bárbaro), mediante concessão de tutela (jurisdicional) – eis o papel jurisdicional do Estado (Democrático) de Direito na sociedade –, os conflitos de interesses de seu povo.
Pois bem.
Não é – e nem deveria ser – diferente com a casa. Aliás, injusto e desarrazoado seria tratar de bem de cuja essência extrai-se o que se tem de mais humano: o mínimo existencial digno necessário, na vida de qualquer do povo (lembremos desta expressão, por demais das vezes utilizada pela nossa Suprema Corte, quando ao fazer referência aos direitos fundamentais e humanos, que regem o nosso Estado Democrático de Direito e que conferem um pouco de sentido às nossas vidas) – eis a matriz corpórea fundamental transcendente.
Ora, que seria de nós sem uma casa? Que seria de nós sem um local onde pudéssemos recolher-nos a nossa privacidade e intimidade? Que seria de nós sem um mínimo existencial digno para viver? Erguida por princípio-valor norteador de toda a vida humana e do Estado Democrático de Direito (a dignidade da pessoa humana), a casa, bem imóvel ou móvel (em que pese o douto arrazoado dos doutrinadores mais conservadores, havemos considerar, ainda que de maneira breve, por não ser objeto deste estudo, toda a discussão acerca da emblemática mobile home), traduz um dos, se não o principal, direito fundamental ao qual devemos expressa e digna reverência: o direito à moradia, encartado no artigo 6º, do Texto maior:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 25 out. 2019)
Subjaz ao que fora exposto, têm-se, e é de todo razoável tê-lo, o memorável e irrenunciável inciso XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), proclamada em 1948, que consignou o reconhecimento, em sede internacional, dos direitos econômicos, sociais e culturais, dentre eles o direito à moradia:
todos têm direito ao repouso e ao lazer, bem como a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, e serviços sociais indispensáveis, o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. (Assembleia Geral da ONU. "Declaração Universal dos Direitos Humanos". "Nações Unidas", 217 (III) A, 1948, Paris, art. 1, http://www.un.org/en/universal-declaration-human-rights/. Acessado em 23 out. 2019)
Como incremento deveras relevante para o texto em comento, e trazendo para o contexto do reconhecimento internacional do direito à moradia e à dignidade da pessoa humana, Ingo Wolfgang Sarlet registra, e não o fez em momento indevido, que,
A partir do citado dispositivo, já no âmbito do direito internacional convencional, o direito à moradia passou a ser objeto de reconhecimento expresso em diversos tratados e documentos internacionais, destacando-se, seja pela sua precedência cronológica, seja pela sua relevância, o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966, também ratificado e incorporado ao direito interno brasileiro, onde, no artigo 11, consta que “os Estados signatários do presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma contínua melhoria de suas condições de vida. (SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas Anotações a Respeito de seu Contexto, Conteúdo e Possível Eficácia. Rio de Janeiro: Renovar, vol. IV, 2002, p. 338).
Importa ressaltar, ainda que, em que pese ter sido o direito à moradia reconhecido internacionalmente, notadamente pelo dispositivo proclamado no Texto Maior da ONU, o direito à moradia fora incorporado ao texto de nossa constituinte vigente (art 6º, CRFB/88) através da Emenda Constitucional nº 26, do ano de 2000.
Matriz corpórea fundamental, a casa é o refúgio, por excelência, do ser humano – logo, simboliza a âncora para revigorar suas energias gozando do refrigério do lar –, não podendo, por bem, e por lei, ser inviolada, salvo em hipótese prevista em lei. Isso porque, além de figurar como refúgio para o indivíduo, a casa é o lar do mesmo, assim, o indivíduo lá permanece com o animus de permanência (ius permanendi), podendo transformar-se em bem de família (eis a impenhorabilidade do bem de família convencional), na forma do Código Civil, ou, ser considerada bem de família (eis a impenhorabilidade do bem de família legal). Mas, que é casa?
Iniciemos uma breve abordagem acerca do conceito de casa no direito positivado.
Em primeiro lugar, não confundamos domicílio com casa. Apesar de serem enxergados como se análogos fossem, o domicílio, previsto no Código Civil em vigor, no artigo 70 e seguintes, pode ser o local onde a pessoa estabelece a sua residência definitiva (daí a confusão entre domicílio e residência, que, neste sentido aproximam-se consideravelmente), ou local onde a pessoa exerce suas atividades profissionais (talvez seja isto que melhor caracteriza o que chamamos de domicílio). A casa, por sua vez, difere do domicílio pois aproxima-se do conceito de residência, do qual depreende-se, conforme a ACS:
Residência é o local onde a pessoa mora com intuito permanente, que pode coincidir com o domicílio legal. Diferente das moradas provisórias, como os casos de hotéis ou aquelas temporadas em casa de um amigo ou um parente. A residência exige o intuito de permanência. (TJDFT. Residência e Domicílio.Disponívelem:https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/residencia-e-domicilio. Acessado em: 25 out. 2019)
Muito se tem discutido, na doutrina, ambos os institutos (domicílio e residência). Dizem os estudiosos da dogmática jurídica que, a residência (moradia, eis o direito à moradia, ‘’el derecho a la vivienda’’) caracteriza-se como um bem imóvel (tendo em vista a sua natureza imobiliária, em que pese estarmos vivendo em uma era onde a tecnologia já nos demonstra a possibilidade de sua mobilidade). Nas palavras de Sílvio de Salvo Venoza, configura-se como o lugar onde a pessoa natural se estabelece habitualmente, ainda, a residência ‘’é o local em que se habita, com ânimo de permanência’’ (Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Direito de Família, Volume VI, ed. 14ª, p. 228, editora Atlas). Nos dizeres de Roberto de Ruggiero, classifica-se a moradia como sendo a permanência habitual e costumeira, do indivíduo, num determinado local, isto é, ‘’o sujeito que mora e permanece habitualmente em uma cidade, local onde costumeiramente é encontrado, tem, aí, a sua residência’’ (RUGGIERO. Instituições de Direito Civil. 6. ed. São Paulo: Bookseller, p. 501, 1999).
Mister se faz considerar, com base no exposto, que, residência é o local onde o sujeito, devido à fatores atrelados à sua vontade, demonstra querer estabelecer um vínculo permanente (ius permanendi), dando origem, pois, a um sinônimo: o lar (MALUF, Carlos Alberto Dabus; MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de Direito de Família. São Paulo: Saraiva, p. 723, 2013); outrossim, a casa é, a residência do indivíduo que, por sua vez, figura como seu principal bem (leia-se mínimo patrimonial de que buscou tratar o Ministro Edson Fachin, em sua obra chamada de ‘’Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo’’, e de que fala, a longas datas, e de modo irrenunciável e inescusável, Ingo Wolfgang Sarlet), que está, sob a égide da lei, a salvo da penhora (conf. as normas da Lei 8.009/90).
Uma vez tratado dos aspectos gerais sobre a casa, a fim de melhor compreender o seu conceito e significado, voltemos as questões primeiramente colocadas, relembremo-las: Qual é a importância da casa para o Direito brasileiro? Inexoravelmente, ainda: qual o papel do Estado neste contexto?
Árdua é a tarefa de falar sobre um bem cujo significado e relevância sequer se pode mensurar.
A importância da casa, talvez (talvez seja este o termo mais apropriado para ar início ao discurso), justifica-se por sua excelência (a matriz corpórea fundamental transcendente) de servir ao indivíduo como mínimo patrimonial existencial, e de reviver um querido e genuíno princípio-valor de nosso Estado Democrático de Direito: a dignidade da pessoa humana, direito, garantia e, sobretudo, qualidade, que nenhum outro, quer esteja positivado, quer não, jamais poderá suprir a ausência, outrossim, ‘’valor fonte que anima e justifica a própria existência de um ordenamento jurídico” (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 70).
Ao fazê-lo, com a devida excelência, a ela inerente, a casa serve como moradia (concretizando o velho e querido direito à moradia, pilar da sociedade, proclamado no Texto Maior da ONU, e trazido para a Carta Política brasileira) e, acima de tudo, como subsistência de si e de sua família (eis a incidência do instituto familiar).
Em sendo, pois, o refúgio (logo, a âncora a qual o mesmo recorre para revigorar suas energias, valendo-se do refrigério do lar), por excelência, do ser humano, e de, ainda, reviver um princípio-valor de nosso Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana, mister se faz recordar o papel do Estado de zelar por esse bem, ou, em não podendo zelar por referido bem, conferir, utilizando-se de seus instrumentos (aparatos legais), a quem o possui, os meios necessários e cabíveis (leia-se razoáveis) para que aja em seu lugar, a fim de assegurar a sua vida (no sentido metafórico do termo).
A título de um arremate, cabe deixar consignado uma reflexão amparada por um paralelo entre o que fora proclamado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), e o que fora inserido e performatizado em nossa Constituição da República Federativa do Brasil (1988).
Vejamos.
Muito bem, têm-se, por um lado, o Preâmbulo do Texto Maior da ONU:
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla (Assembleia Geral da ONU. "Declaração Universal dos Direitos Humanos". "Nações Unidas", 217 (III) A, 1948, Paris, art. 1, http://www.un.org/en/universal-declaration-human-rights/. Acessado em 23 out. 2019)
Lado outro, 40 (quarenta) anos após, têm-se o Preâmbulo de nossa Constituinte:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 25 out. 2019)
Imagem Ilustrativa do Post: casa // Foto de: pexels // Sem alterações
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