No dia 12 de dezembro próximo passado, o Conselho Federal de Medicina divulgou a atualização dos critérios para a definição de morte encefálica, revogando a Resolução nº 1.480/97, que até então regia o assunto, substituindo-a pela Resolução nº 2.173/17.
Há muito tempo o critério de morte encefálica substituiu o critério de morte clínica. O conceito de morte fundado no coração deu lugar ao conceito de morte fundado no cérebro.
Mas seria isso o mais correto do ponto de vista legal? Seria a morte cerebral a morte do indivíduo?
A discussão acerca dos contornos da morte cerebral se tornou mais contundente com a publicação, em 5 de agosto de 1968, pelo “Journal of the American Medical Association (JAMA)”, de um “report” da “Harvard Medical School”, intitulado “A Definition of Irreversible Coma”, que, pela primeira vez, reconhecia o critério de morte cerebral.
Esse documento foi produzido por um comitê da “Harvard Medical School” denominado “Ad Hoc Committee of the Harvard Medical School to Examine the Definition of Brain Death”, coordenado pelo anestesista Henry Knowles Beeker e composto por cirurgiões, anestesistas, neurologistas, psiquiatras, um advogado, um teólogo e um historiador.
Analisando mais a fundo a questão, no entanto, e entendendo o contexto em que o citado “report” foi produzido e publicado (pouco depois do primeiro transplante de coração), percebe-se claramente o motivo pelo qual a equipe de Harvard foi levada a estabelecer essa nova definição de morte: a morte cerebral representava a condição “sine qua non” para o transplante de órgãos.
Isso fica bastante claro já no início do “report”, onde os especialistas declaram:
“Our primary purpose is to define irreversible coma as a new criterion for death. There are two reasons why there is need for a definition: (1) Improvements in resuscitative and supportive measures have led to increased efforts to save those who are desperately injured. Sometimes these efforts have only partial success so that the result is an individual whose heart continues to beat but whose brain is irreversibly damaged. The burden is great on patients who suffer permanent loss of intellect, on their families, on the hospitals, and on those in need of hospital beds already occupied by these comatose patients. (2) Obsolete criteria for the definition of death can lead to controversy in obtaining organs for transplantation.”
No Brasil, a preocupação é a mesma, uma vez que, de acordo com o disposto no art. 3º da Lei nº 9.434/97, a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e de transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
A nova Resolução CFM nº 2.173/17 estabelece que os procedimentos para a determinação da morte encefálica devem ser iniciados em todos os pacientes que apresentem coma não perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal e apneia persistente. O quadro clínico do paciente também deve apresentar os seguintes pré-requisitos: presença de lesão encefálica de causa conhecida e irreversível; ausência de fatores tratáveis que confundiriam o diagnóstico; tratamento e observação no hospital pelo período mínimo de seis horas; temperatura corporal superior a 35 graus; e saturação arterial de acordo com critérios estabelecidos pela Resolução.
O mais preocupante, entretanto, é que o próprio Conselho Federal de Medicina informou que, segundo pesquisa realizada com 320 pacientes com morte encefálica, 88% deles tiveram parada cardíaca em até 24 horas após o diagnóstico e 100% em até 5 dias.
Isso demonstra que, mesmo com diagnóstico de morte cerebral, o indivíduo continua vivo, e, em alguns casos, por até 5 dias!
Ou seja, se a morte cerebral for constatada e, em decorrência disso, for feita a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, a pessoa poderá estar sendo morta pelo corpo clínico que efetuar o procedimento de retirada.
Portanto, a conclusão a que se chega é a de que, desde a origem da adoção do conceito de morte cerebral, o intuito sempre foi o de permitir a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, mesmo com o indivíduo vivo, criando-se, indefectivelmente, um instigante conflito legal, ético e religioso de difícil solução e que, no mínimo, demandaria um amplo debate sobre o assunto, envolvendo não apenas as classes médica e jurídica, mas toda a sociedade.
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