Morolização do Poder Judiciário?

10/03/2016

Por Maurilio Casas Maia - 10/03/2016

Há algum tempo, o magistrado judicante da denominada “Operação Lava Jato”, Sérgio Moro, partiu em sua cruzada contra a corrupção com diversas ideias facilitadoras da punição no processo penal. Dentre os pontos defendidos pelo famoso juiz inevitavelmente estaria a diminuição das garantias decorrentes da presunção de inocência – para maiores detalhes vide o PLS n. 402/2015 (saiba mais aqui), como ainda almeja também, de certo modo, a PEC “Peluso” (a qual confere força rescisória aos Recursos Excepcionais).

Os argumentos do Juiz Sérgio Moro transitavam entre a demora na tramitação processual, um suposto grande número de recursos e a sensação de impunidade – omitindo qualquer análise do fenômeno da “impunização” (vide lições de Ricardo Genelhú, com obra referenciada ao fim).

Embora exista um forte apelo social na argumentação do magistrado Moro, percebeu-se que algo faltava: falava-se em abreviar, reduzir e minar garantias constitucionais-penais, mas nada – repita-se, nada –, foi dito sobre fortalecer o Poder Judiciário e as demais agências punitivas do Estado a fim de evitar nulidades (uma das causas de insucesso da empreitada punitiva) e a demora no tramitar processual. Nada foi dito sobre o reforço, uso e melhoramento das técnicas de punição em caso de má-fé do recorrente protelatório. A proposta era simplesmente de minimizar a garantia da presunção de inocência.

Nesse ponto, sobreveio crítica anterior na qual se indagou: “A culpa é da Jabulani”? (Ver aqui). E quem se lembrar da Copa do Mundo de 2010 lembrará também como a bola passou a ser a culpada dos resultados ruins obtidos pelas seleções em campo. Em outras palavras e agora no mundo jurídico, as regras decorrentes do devido processo legal passam a ser apontadas como as grandes vilãs e é aí que mora o perigo: quem é seduzido por tal argumentação, deixa de incentivar os participantes do “jogo” ao treino saudável, passando a concentrar suas energias em culpar a boa técnica processual penal e a buscar alguma maneira de vencer o “jogo” com o menor esforço possível. Isso pode ser ótimo para quem julga e acusa, mas é insofismavelmente antidemocrático e prejudicial às garantias conquistadas pelos TODOS os cidadãos brasileiros em 1988, na Constituição da República.

Dessa maneira, percebe-se que a ideologia “morolizante” do processo penal é altamente favorável à diminuição de garantias processuais penais a fim de facilitar a condenação de supostos “inimigos” sociais. E, por outro lado, a técnica morolizante torna todos os cidadãos (sim, todos) mais vulneráveis à ação condenatória nessa via punitiva facilitada.

Outro ponto da ideologia morolizante do Poder Judiciário: É importante jogar com a torcida ao seu lado. Não importa se você já tem garantias constitucionais para julgamento livre, mas é preciso ainda trazer a mídia e a opinião pública (ou “publicada”?) para si.

Óbvio que se fosse um jogo de futebol – algo levado muito a sério no Brasil –, um juiz que “apita” para a torcida contrária teria extrema dificuldade de apitar novos jogos, ao menos daqueles mesmos times, sendo otimista. Todavia, aparentemente a arbitragem de futebol parece envolver uma exigência de imparcialidade implacável no cotidiano do brasileiro – fica a reflexão ou a ironia...

Longe de se falar em uma moralização do poder judiciário, pode-se falar em uma morolização da esfera judiciária: por meio dessa tal morolização judiciária, buscar-se-á a quase todo custo a aceleração da punição de supostos inimigos da sociedade com a redução das conquistas civilizatórias do devido processo legal penal – esta garantia conquistada por cada brasileiro em 1988 e que agora vai sendo dilapidada em nome da sanha do “ismo” do punitivismo.

Enfim, os planos de morolização do Poder Judiciário parecem envolver: (1) A “técnica” de culpar as regras do processo pela demora na tramitação processual; (2) O “esquecimento” de que essa sobredita demora poderia ser evitada com maiores investimentos na estruturação e treinamento do Poder Judiciário e assim também das demais agências de punição do Estado; (3) A redução de garantias fundamentais conquistadas por cada cidadão brasileiro a fim de evitar decretos de nulidades das instâncias superiores. Tais nulidades seriam decorrentes do açodamento ou da falta de estrutura investigativa (sim, não se fala em ser mais cauteloso para evitar nulidades, este é um argumento fora do projeto de morolização); (4) Uma postura judicial proativa e inquisitiva, com alta proximidade quanto à parte punitiva do processo penal e às agências de investigação, como se o Judiciário mantivesse certa simbiose institucional com tais órgãos – tudo findando em detrimento da defesa, vista sempre com certa dose de desconfiança; (5) busca de medidas facilitadoras ou antecipadoras do cumprimento de pena, decorrentes do enfraquecimento e menoscabo da presunção de inocência; (6) a prisão preventiva – dentre outras finalidades –, como instrumento “incentivador” da obtenção de apoio “espontâneo” dos acusados com a delação “premiada”; (7) a atração da mídia para si com o uso de disfarçadas técnicas de “marketing” a fim de conquistar a opinião pública (ou publicada) de maneira que as instâncias superiores sintam-se à vontade para diminuir (ou violar?) direitos fundamentais dos acusados sem sofrer qualquer sanção midiática – ou seja, a função contramajoritária do Judiciário de garantir direitos fundamentais mesmo contra a vontade da maioria parece ser mais um fator esquecido na onda de morolização do poder judiciário; (8) a exposição das garantias de imparcialidade e independência do juiz (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos subsídios) como algo insuficiente, que de nada vale sem a marcha da sociedade e da mídia ao lado do juiz na punição. Ou seja, busca-se “a torcida como um novo jogador em campo”.

Enfim, eis algumas questões a serem investigadas a partir de agora: quais os impactos comportamentais decorrentes da “entrada da torcida em campo” sobre os atores processuais penais? Haveria mudança de perspectiva no processo penal quando o mesmo é levado (pelo próprio juiz) para a televisão, internet e redes sociais? Passemos aos estudos.


Notas e Referências:

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______.  Guia compacto do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

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. Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM). 

Email:  mauriliocasasmaia@gmail.com / Facebook: aqui


Imagem Ilustrativa do Post: CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania // Foto de: Senado Federal // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/20675160553 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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