Moral e velocidade: quando a ética fica para trás

17/03/2017

Por Thais Silveira Pertille e Marcelo Pertille - 17/03/2017

A ética deveria ser o caminho óbvio em tempos de desestabilização política, insatisfação social e maniqueísmo ideal. Todavia, o que se percebe, mesmo por meio de uma análise perfunctória dos acontecimentos no cenário social brasileiro, é que muitas crises atuais são fruto justamente da ignorância de reflexão. É verdade que tal fenômeno não é exclusividade brasileira, sendo que a globalização da informação apresenta-se como um dos instrumentos responsáveis por permitir que se vivencie também aqui os reflexos dos diversos automatismos característicos de diferentes comunidades em escala global.

Cabeças rolam em nome de Deus e também em função dele normalizam-se processos de exclusão e preconceitos, muros sobem para preservar culturas que deveriam ser compartilhadas, barragens rompem matando as vidas de quem deveriam melhorar. Ou a moral destes tempos estabeleceu claramente o “cada um por si” e o “salve-se quem puder” ou há algo muito errado no que a humanidade estabeleceu como meta a perseguir e proteger. Mas como saber?

É comum identificar que já as crianças, na incoerência tolerada aos iniciantes de todo o complexo projeto (viver em comunidade é, sem dúvida, um deles) já saibam praguejar, agindo como vítimas desde a semente, como quem experimentando as vantagens dessa condição nas relações de poder frente aos desejos que têm. O curioso é que os pais, a quem a tolerância pelos comportamentos infantis já não mais se aplica, cresceram e passaram a exercer suas responsabilidades de adultos culpando outros pelas desgraças do cotidiano. Logo, o que não se ensina, justamente porque não se sabe, é o autoquestionamento acerca do papel que todos temos enquanto responsáveis pelo meio no qual estamos.

Fundamental, então, retornar à estrutura do sistema que reflete as razões dos processos de escolhas vividas pelos seres humanos, conhecer e idealizar as condições humanas, o que pode ter o seguinte ponto de partida: qual o papel da ética nessa questão?

Ética pode ser tida como a reflexão sobre os referenciais da ação humana, o que se faz para extrair deles um possível conjunto de ações (CANDIOTTO, 2017). Jelson Oliveira explica que a atividade de refletir, adquirindo sabedoria, “não é uma atividade abstrata e estéril, mas uma capacidade de empregar a razão para alcançar o bem e a verdade, com o fim de dirigir as condutas humanas da melhor maneira possível, orientando-as para a felicidade” (2016, p. 13).

Ética, então, é reflexão, é a análise da moral que permeia uma cultura. É o conjunto de exercícios que são praticados no sentido de compreender até que ponto determinada moral de fato está guiando um grupo de pessoas para o melhor que seu potencial autoriza.

E nesse contexto, tem-se que a moral é temporal e diz respeito às sociedades individualizadas. Como exemplo, vale invocar a moral brasileira do século passado, a qual colocava a fidelidade entre os cônjuges como um dos pilares estruturantes do conceito família, de tal forma que havia até mesmo no Código Penal (ramo pautado pela intervenção mínima do Estado) tipo específico para punir quem infringisse esse aspecto da moral vigente. Por conseguinte, perfazia-se o adultério um crime. Com o passar do tempo (dos anos 40 até 2005, quando o tipo foi revogado) a mudança da moral social brasileira provocou reflexão sobre o fato de que a fidelidade não era mais uma questão a ser defendida pela lei penal. A Constituição e as demais leis continuaram protegendo a família, no entanto, viu-se que a fidelidade já não se adequava como algo indispensável para o estabelecimento da instituição familiar. O que se pretende enfatizar é que o Direito passou a deixar de vê-la com uma de suas grandes preocupações justamente em decorrência de uma nova moral.

Portanto, moral, enfatiza-se, é um conjunto de hábitos e costumes de determinada sociedade em determinado tempo, sendo que o Direito, como um dos importantes mecanismos destinados a proteger e tentar alterar essas culturas, torna-se imprescindível no processo de evolução e instrumentalização da ética. É comum que muitos comportamentos sejam julgados tão importantes em determinado período a ponto de que ecloda a necessidade de sua implementação também por meio das leis.

A lei pode ter sua função resumida diante da moral basicamente em dois papéis: a) positivar os bens que a sociedade julga demasiadamente importantes a ponto de criar mecanismos de tutela e b) implementar/vedar comportamentos numa espécie de tentativa de corrigir a moral. Isto é, quando se percebe que a moral de um local não está proporcionando o desenvolvimento social esperado para uma determinada sociedade, a lei se impõe como uma correção a ser implementada rumo aos objetivos éticos.

Exemplo de lei atuante no sentido corretivo da moral pode ser identificado na conhecida “Lei Maria da Penha”, a Lei 11.340/06. No Brasil, como em boa parte do mundo, a ideia patriarcal impregnou-se na cultura criando sensação de normalidade quanto aos atos de subjugação das mulheres, o que permitia (permite) aos homens entenderem-se donos de suas esposas, companheiras, como se estivessem autorizados a usufruir dessas pessoas como se objetos fossem. Sem temer(!) o exagero nessa absurda objetificação, recorda-se que no Brasil, somente após o ano de 1962, com o Estatuto da mulher casada, Lei 4.121, é que pessoas do gênero feminino começaram a poder trabalhar sem que fosse necessária a “autorização marital”. Sem a intervenção das normas, em sociedades onde ditados populares enfatizam a cultura machista sob sentenças de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, “mulher gosta de apanhar”, e de que “se apanhou foi porque mereceu”, dificilmente seria possível evoluir contando-se apenas com a reflexão ética dos cidadãos em espaços diversos do Legislativo e Judiciário.

Assim, analisando, compreendendo e criticando esse, dentre tantos outros tantos aspectos da moral, é que a ética edifica sua função. Conforme José Roberto Goldim, ética “é o estudo geral do que é bom ou mau. Um dos objetivos da Ética é a busca de justificativas para as regras propostas pela Moral e pelo Direito” (UFRGS, 2003).

Por meio dela é que se analisa como e para onde a moral da sociedade está indo e por quais aspectos está se guiando. A finalidade ética resume-se em ações ideais, e seguindo-se esse primado é que se conclui que por meio dela é que devem ser questionados e protegidos certos hábitos, determinadas leis e as estratégias políticas.

Denota-se que viver a ética, questionar diariamente a moral na qual se está inserido é potencializar a função humana. A capacidade reflexiva é, até onde se sabe, exclusividade do homo sapiens, porém, a moral atual parece não comportar, nem sequer estimular a atividade reflexiva. Vive-se a chamada tacocracia, que originada do grego (tákhos) estimula a velocidade e a predominância de ideais que sintetizam que “a principal qualidade de uma atividade é a rapidez” (CORTELLA, 2000). A ética, de outro ponto, como atividade reflexiva que é, portanto complexa, demanda naturalmente tempo e, por isso, passa a ser desqualificada, entendida, literalmente, como “perda de tempo”.

O produto da tacocracia é uma sociedade de moral sem questionamentos, que apenas reproduz o costumeiro, que, numa espécie de autofagia, se alimenta exclusivamente de sua própria moral, de sua própria cultura, de seus próprios medos e, por consequência, de suas próprias ilusões. A mudança é vista com maus olhos e tudo o que constituí o diferente passa a ser simplesmente eliminado para que não gere desconforto, para que não exija reflexão, porque, afinal, pensar pode ser emocionalmente desgastante, incômodo. Refletir a ponto de pôr em xeque costumes e hábitos dói, promove desconfortos e bem ilustra a metáfora daqueles que se dizem sem chão. O devir, ao mesmo tempo que impactante, é sempre revelador e admiti-lo como próprio do ser humano para uma vida social de proteção de dignidades mostra-se fundamental! Do contrário, políticas inclusivas, leis que prevejam isonomia e alterações culturais em quaisquer medidas são de pronto rechaçadas, pois deslocam os seres de suas zonas preestabelecidas.

Pensar para além de si mesmo é uma prática imprópria para quem adaptou-se a condição a que Immanuel Kant chamou de “situação de menoridade” onde, por comodismo ou oportunismo, as pessoas não pensam por si e ficam submetidas ao pensamento dos outros. Reflete o autor que o contrário da situação de menoridade é o “esclarecimento”, para o qual só se evolui com o uso público e habitual da razão. Esclarecimento é “a combinação do conhecimento profundo sobre um assunto específico com a autonomia crítica do sujeito do conhecimento” (KANT, 1784, p.).

Portanto, viver a ética é ser capaz de refletir acerca da moral que permite ao ser humano ser retirado da posição de vítima, aquela tão em voga atualmente. A capacidade ética está, por conseguinte, diretamente relacionada ao grau de autonomia do ser humano, de sua liberdade de escolha a partir de pensamentos próprios. Aquele que pensa por si jamais será vítima de suas paixões. Nas palavras de Jean-Paul Sartre, “não existe determinismo, o homem é a liberdade” (2010, p. 23), podendo ser considerada essa a grande missão humana, uma capacidade tão plena de reflexão a ponto de fazer livre as pessoas, permitindo-lhe, sem culpas e omissões, assumir a responsabilidade por todas as medidas consequentes de suas próprias escolhas. Pensar o pensamento, discutir e colaborar comas políticas inerentes ao projeto de uma sociedade ética é genuinamente uma das mais importantes manifestações de liberdade.


Notas e Referências:

CORTELLA, Mario Sérgio. Cuidado com a Tacocracia. São Paulo – SP. Folha de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/cp1805200031.htm

GOLDIM, José Roberto. Ética, moral e direito. Porto Alegre – RS. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2003. Disponível em: https://www.ufrgs.br/bioetica/eticmor.htm

KANT, Immanuel. “O que é Esclarecimento?”. 1784. Traduzido por Alexander Martins Vianna. Departamento de História – FEUDUC. Revista Espaço Acadêmico – Nº 31 – Dezembro de 2003.

OLIVEIRA, Jelson. Sabedoria Prática. Curitiba - PR. Editora Universitária Champagnat. 2016.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os Pensadores. 2010.


Thais Silveira PertilleThais Silveira Pertille é Mestranda em Direito (UFSC), pós-graduanda em Filosofia e Direitos Humanos (PUCPR) e graduada em Direito (UFSC). Membro do Observatório de Justiça Ecológica (UFSC) - Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPq e membro do grupo de pesquisa Centro Brasileiro de Pesquisa sobre a Teoria da Justiça de Amartya Sen: Interfaces com direito, políticas e desenvolvimento e democracia (IMED). Pesquisa na área de Direito Internacional e Direitos Humanos. Advogada.


Marcelo Pertille. Marcelo Pertille é Mestrando em Ciências Criminais (PUCRS), especialista em Direito Processual Penal (UNIVALI) e em Direito Público (UNIVALI). Professor de Direito Penal e Direitos Humanos da UNIVALI e FASC. Professor do curso de especialização em Ciências Criminais do CESUSC. Advogado. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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